“Tem patrão que é desumano” Conheça Luiza Batista, liderança das domésticas no Brasil

Eleita presidenta da Fenatrad EM 2016, Luiza não sabe se se candidatará novamente. Fotografia: Justino Passos/ECOS

Em março de 1956 um casal de trabalhadores rurais deu as boas vindas à filha Luiza Batista, que chegava após um intervalo de 6 anos sem novas crianças e que encerrava a fila de 8 filhos do casal. A família vivia na zona rural de São Lourenço da Mata, em Pernambuco, já que o pai trabalhava no corte de cana de açúcar. Quando o pai foi trabalhar no Engenho Veneza, pertencente à família Guerra, em Vitória de Santo Antão, a família foi junto, viver na vila de casas de taipa pertencentes aos donos do Engenho.

Mas logo o pai viria a falecer, quando Luiza ainda tinha seis anos de idade, e a família foi obrigada a deixar a casa para viver na rua. “Ele era um homem bom, trabalhador. Nunca presenciei brigas sérias entre ele e a minha mãe. Mas quando morreu ele não deixou nada, não por culpa dele. Na época trabalhador rural não tinha direito a nada”, diz Luiza Batista, hoje com 63 anos. O Brasil de Fato entrevistou a liderança na cozinha do Sindicato das Domésticas de Pernambuco, no bairro de São José, centro do Recife.

Quando da morte do pai, boa parte de seus irmãos já eram adultos. O primeiro, Manoel, era 20 anos mais velho que a caçula. Completam a família Severino, José, Messias, Margarida (que faleceu com uma semana de vida), Josefa, Antônio e Maria, antes de Luiza. Antônio é o único que segue em vida. E Luiza aos 15 descobriu, com orgulho, que seu nome era uma homenagem à primeira filha de sua mãe, morta por uma picada de cobra aos dois anos de idade, décadas antes.

A mãe, Severina, ou “Biu”, levou os três filhos mais jovens consigo e, com poucos pertences, foi morar nas ruas de Chã de Alegria, que naquela época não era município, mas um distrito de Glória do Goitá, na zona da mata norte do estado. Os irmãos adultos, já com suas famílias, trabalhavam no corte de cana ou fazendo bicos, em condições econômicas similares às dos pais. Eles não tinham condições de abrigar a mãe e os caçulas.

“Não tínhamos dinheiro para aluguel e passamos duas semanas dormindo nas ruas. Na época minha mãe tinha tuberculose, vomitava sangue, e com um menino e duas meninas”, recorda Luiza, sem esconder a emoção. “Ali conhecemos a solidariedade de pessoas tão boas e cuja religião é tão atacada por preconceito”, completa. Mãe Bilinha e seu Paulo, uma família de candomblecistas, decidiu abrigar a mulher e seus três filhos no salão onde realizavam as cerimônias religiosas. Lá a família viveu por dois meses, até que Mãe Bilinha mobilizou seus filhos de santo para erguerem uma casa para Severina e as crianças. “Construíram uma casinha de taipa com dois vãos para nós, coberta com folhas de sapé. Era o nosso teto, a nossa casa. Foi ótimo. Moramos dois anos nessa casa”, diz Luiza.

O primeiro emprego

Em 1964, os quatro foram morar no Recife, num barraco de madeira na “Ilha João de Barros”, nas proximidades de onde hoje fica o Campus Santo Amaro da UPE, muitos anos antes de serem erguidos os viadutos. Aos nove anos de idade foi levada por uma amiga de sua mãe para trabalhar na casa de uma senhora que atuava na “Aliança para o Progresso”, programa do Regime Militar em parceria com os Estados Unidos visando “frear o socialismo” na América Latina. Luiza deveria cuidar de uma criança pouco mais nova, com cinco anos de idade.

“Foi uma experiência terrível”, afirma Luiza. “Eu não recebia salário. Meu pagamento era comida e roupa, além de uma cesta básica para a minha família”, conta. Já nos primeiros dias percebeu onde estava, quando precisou acender uma lâmpada. “Na minha casa não havia luz elétrica, então perguntei pelo fósforo, o que fez a mulher me chamar de ‘burra, imbecil, idiota’ enquanto me mostrava como acendia a lâmpada”, lembra, deixando escapar uma lágrima.

Após seis meses na casa, a filha da patroa mordeu Luiza, que respondeu com uma tapa na criança. “Eu jamais faria isso novamente. Mas eu era uma criança de nove anos, vinda do interior”, conta. A mulher surrou Luiza usando fio do ferro de engomar, deixando o corpo da criança todo marcado. No dia seguinte sua mãe iria à casa buscar a cesta básica, o que fez com que a patroa mandasse Luiza para uma casa em Olinda, impedindo que a mãe visse a filha. Mas uma cozinheira disse a Severina o que acontecera. No dia seguinte, a mãe tirou Luiza daquele lugar e passaram a vender milho cozido na Igreja do Espinheiro.

Educação e os filhos

Nessa época, Dona Biu se curou da tuberculose e passou a trabalhar como doméstica. “Dona Juanita nos ajudou bastante e permitiu que eu também morasse lá com minha mãe, num quartinho no fundo do quintal”, lembra Luiza. Lá elas passaram três anos. Aos 12 Luiza foi levada para trabalhar numa casa na zona norte do Recife, com Dona Inácia. “Eu recebia bem pouco, o que seria hoje cerca de R$50. Mas eu recebia um tratamento totalmente diferente do primeiro emprego”.

Marta, jovem de 19 anos nora de Dona Inácia, era professora. Ela levou Luiza para estudar na escola espírita em que lecionava, no Espinheiro. “Isso me fazia tão feliz que você não faz ideia. Foi a minha primeira escola. Até os 12 anos eu via os estudantes no desfile de 7 de setembro e tinha um pouco de inveja, porque eu não poderia estar ali. Entrar na escola me fez muito bem”, afirma Luiza Batista, trazendo de volta a alegria daquele momento. Quarenta anos depois, em meados de 2010, também num 7 de setembro, Luiza já presidia o Sindicato das Domésticas quando esbarrou com sua primeira professora no Grito dos Excluídos, tradicional manifestação dos movimentos sociais no feriado da Independência.

A jovem trabalhou por dois anos na casa de Dona Inácia, que faleceu e Luiza retornou à casa onde a mãe trabalhava. Mas também lá a patroa estava com a saúde frágil e faleceu. Nesses anos o barraco delas na Ilha João de Barros passava dias fechado, o que as levou a perder os cadastramentos do governo do estado e ficar fora da divisão dos lotes em Ouro Preto e no Ibura. Elas acabaram indo morar na Bomba do Hemetério, sem casa própria.

Com 18 anos, entre o trabalho, os estudos à noite e um tratamento contra tuberculose, Luiza engravidou de seu primeiro filho. Na reta final da gravidez, foi preterida pelo namorado, que a desqualificou por ser
trabalhadora doméstica. Ela prometeu que ele nunca veria o rosto do filho. E cumpriu. “A minha mãe me ajudou muito nessa época. E acabou que ele nunca conheceu o pai biológico. Até houve uma época em que o governo estava incentivando a busca pelo reconhecimento de paternidade e eu tinha o nome completo do pai. Mas meu filho foi lá só para dizer que não queria nem saber quem era a criatura”, diz Luiza.

Seis meses após o primeiro filho, Luiza engravidou do segundo. O pai, desta vez, sugeriu o aborto, o que ela negou e mais uma vez contou com o apoio e ajuda da mãe. Anos depois ela teria uma terceira criança, uma menina, que nasceu com problemas cardíacos e morreu com 18 dias de vida.

Patrão e empregada

Em 1976, ela começou a trabalhar como cobradora de ônibus, seu primeiro emprego com carteira assinada. Atuou na função por dois anos. Mas uma queda a obrigou a ficar com a perna no gesso, recebendo benefício junto ao INSS. “Quando fui buscar a carteira vi que eles haviam assinado como se eu tivesse trabalhado apenas seis meses. Isso me aborreceu e no mesmo dia pedi demissão. Era ditadura, então os sindicatos não podiam atuar em defesa do trabalhador”, recorda. Luiza Batista avalia que este episódio foi um ponto importante na formação política dela.

Luiza voltou a trabalhar em casas de família até conhecer Dona Eleniza, que seria sua patroa pelos 26 anos seguintes, “carteira assinada, pagando previdência e foi lá que me aposentei”, conta com alegria. Naquele mesmo dia da entrevista Luiza estava trocando mensagens com a filha de Dona Eleniza, Ana Cláudia, que tem idade próxima à de Luiza. Com alegria, exibe fotos da referida família e conta que Rafaela, filha de Ana Cláudia, prometeu ainda criança que colocaria na filha o nome de Luiza. E cumpriu. Na foto, Ana Cláudia está ao lado dos filhos e netos, ainda bebês, sendo a menina Luiza.

Para Luiza Batista, hoje diretora do Sindicato das Domésticas, “patrão e trabalhador não precisamos ser inimigos”. “Basta se respeitarem e cada um entender seus direitos e deveres. Mas tem patrão que é desumano”, reclama, mencionando um caso que recebera naquele mesmo dia, de uma jovem trabalhadora que tentou suicídio e não conseguia falar devido abusos do patrão. “Se o patrão tem algum problema, não desconte naquela pessoa que teve menos oportunidade que ele na vida”, pede.

Ela também alerta que ter respeito não é calar sempre e ser submissa. “Tive boa relação com todos com quem trabalhei, sem precisar ser puxa-saco e respondendo quando discordava de algo. Sou doméstica, a parte fraca da relação, mas isso não quer dizer que eu deva escutar calada tudo o que me disserem”, diz Luiza. E aponta um caminho. “Acho que as companheiras precisam participar mais do sindicato, para aprenderem sobre seus direitos e sobre como dialogar sobre isso com o patrão”.

Mas antes do sindicato, Luiza participou da luta por moradia, nos anos 1980. “Eu vivia de aluguel e sonhava ter casa própria. Morava no Alto Santa Terezinha e participava de reuniões do Conselho de Moradores do Morro da Conceição, que reivindicava moradia para muitas famílias daquela área”. A luta deu origem ao Passarinho, bairro em que Luiza vive até hoje e onde ajudou a fundar o Espaço Mulher, com Edicléa Santos – liderança feminina que também já entrevistamos e que Luiza considera como uma irmã.

Questionada sobre como as diversas experiências de vida forjaram a liderança que é hoje, Luiza enumera os pontos cruciais. “O que aconteceu quando eu era criança não me despertou politicamente, porque eu não tinha consciência política. Mas o episódio com a empresa de ônibus foi algo que me revoltou”, lembra. “Já na luta por moradia foi quando tive contato com a luta coletiva, uma indignação conjunta por não termos lugar para morar. E depois o sindicato, onde cheguei ainda verde. As viagens internacionais somaram também, me fizeram enxergar outras realidades”, resume.

Câncer

Sua mãe, Severina, morreu em 1990, de câncer. Dois anos depois Luiza percebeu, durante o banho, um nódulo na mama. “Senti uma ondulação no seio. Mas não fui ao médico. Já em junho passei uma tarde ralando coco, o que me fez sentir muitas dores no seio e fui parar na emergência”, recorda.

Durante o tratamento ficou sem trabalhar e contou com ajuda da patroa, Dona Eleniza, que mandava itens para ajudar na feira; e principalmente a ajuda do seu companheiro Francisco, zelador do edifício em que trabalhava e com quem já estava havia seis anos. “Ele me deu toda a assistência que podia, todo apoio necessário. Sempre levava uma água de coco. Foi uma pessoa incrível. Mas era muito mulherengo”, diz com um riso no rosto, mas sem esconder o tom de lamento.

Foram mais de 10 anos juntos e ela lembra, satisfeita, que ele foi e continua sendo pai de seus filhos. “Ele hoje tem um filho da nova companheira, mas diz para todo mundo que tem dois do primeiro casamento”. Na separação, a casa própria – que foi uma conquista de ambos – ele deixou para ela, oficializado em cartório.

Aos 40 anos, recebeu a notícia de que o câncer voltara. “Tive que tirar a mama toda. No mesmo ano, meses depois, tive que fazer histerectomia total (remoção do útero e ovários), porque tive metástase de câncer no ovário esquerdo, havia muitos miomas. Em 1999 tive câncer na outra mama. A última
cirurgia de remoção de tumor foi em 2006″.

Apesar dos anos de batalha, a marca que esse período lhe deixou não é de puro sofrimento. “Muitas mulheres, quando descobrem que estão com câncer e que perderão a mama, elas entram em depressão. Eu não tive isso. A minha antiga patroa dizia que após o câncer eu fiquei mais atrevida. Perdi o medo de me jogar na vida”, afirma orgulhosa.

Aposentadoria e sindicalismo

Em 2006, já aposentada por invalidez, Luiza passou a contribuir mais no Espaço Mulher e, por insistência da amiga-irmã Edicléa, voltou a estudar através do projeto Trabalho Doméstico Cidadão, que envolvia sete cidades, com 30 estudantes em cada, todas trabalhadoras domésticas que não haviam concluído o Ensino Fundamental. Nas aulas Luiza conheceu mulheres que já eram da diretoria do sindicato.

“Naquela sala de aula descobri sobre as tantas lutas que haviam garantido direitos às trabalhadoras domésticas. E decidi contribuir com a luta, me filiei ao sindicato e passei a ir às reuniões – que até hoje acontecem sempre no 2º domingo do mês”. No projeto Luiza concluiu o Ensino Fundamental e se matriculou numa escola do governo, onde cursou o Ensino Médio, concluindo em 2009. Ainda em 2006, durante o projeto, Luiza viajou para Salvador (BA) onde participou do 9º Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas do Brasil. Em 2007 viajou com as companheiras para a Marcha das Margaridas. E em 2009 foi eleita presidenta do Sindicado das Domésticas de Pernambuco.

Seu principal desafio naquele momento era adequar o estatuto da organização à Portaria 186 do Ministério do Trabalho e Emprego, publicada em 2008. Tremendo de nervosa, ela foi à Central Única dos Trabalhadores (CUT Pernambuco) reivindicar apoio. A entidade bancou todos os custos financeiros (superiores a R$10 mil) da reforma estatuária. Naquele mesmo ano ela faria sua primeira viagem de avião, para Brasília, onde participou de atividade com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) com domésticas de todo o país.

Em 2011 organizou, no Recife, o 10º Congresso Nacional das Domésticas. Em 2013 organizou o primeiro encontro estadual de trabalhadoras domésticas. No mesmo ano, após aprovação da Emenda Constitucional que igualou os direitos das empregadas domésticas aos demais trabalhadores, viveu a loucura da batalha midiática e das rescisões de contrato, seguidas de readmissões. Luiza foi reeleita duas vezes, totalizando nove anos a frente do sindicato, que presidiu até 2018. Em 2019 assumiu a diretoria administrativa do sindicato, agora presidido por Ana Borges.

Em 2016, foi eleita presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Agora, em agosto de 2020, há um novo congresso, em Brasília, para eleger nova direção. Ela ainda não sabe se disputará a reeleição. As domésticas integram ainda a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio e Serviços (Contracs), além da Federação Internacional das Trabalhadoras Domésticas (IDWF).

O Sindicato das Domésticas de Pernambuco tem, hoje, cerca de 1.200 filiadas, mas menos de 100 estão em dia com a entidade. O último levantamento da Secretaria Estadual da Mulher afirma que há 116 mil trabalhadoras domésticas no estado, número que mostra o tamanho do desafio do sindicato. “A reforma sindical (2016) afirma que os sindicatos de base devem ter filiados no mínimo 10% dos trabalhadores que representamos”, o que daria mais de 11 mil domésticas sindicalizadas. “É muito preocupante. Um sindicato atuante como nós, que atende as trabalhadoras, que encaminha processos na Justiça, e estamos nesse risco. Imagine se houver uma piora na democracia”, alerta.


Sobre o momento político, Luiza Batista mostra apreensão e entendimento da gravidade. “Eu só não quero um dia ter que me esconder, sem ter cometido crime algum. Mas com o aumento da perseguição aos sindicatos, assassinato de lideranças camponesas e urbanas, acho que a gente está caminhando para isso”. As coisas têm piorado desde o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff em 2016. “No dia em que completei 60 anos, em março de 2016, eu estava em Brasília (DF) levando carreira da polícia e tomando bomba de gás lacrimogênio. Este ano completo 64 anos e, novamente, no dia 18 de março, deve haver um grande ato. Espero não levar carreira da polícia novamente” diz, entre risos.

Fonte: Brasil de Fato
Texto: Vinícius Sobreira
Data original da publicação: 18/03/2020

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