Os avanços em tecnologia, genética e inteligência artificial podem transformar a desigualdade econômica em desigualdade biológica? O autor e historiador Yuval Noah Harari se fez essa pergunta.
Professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, ele estuda o passado para olhar para o futuro. Autor de dois best-sellers, Sapiens: Uma breve história da humanidade (editora L&PM)e Homo Deus: Uma breve história do amanhã (editora Companhia das Letras), Harari foi entrevistado pelo programa The Inquiry, da BBC, em 6 de maio passado, sobre a possibilidade de a tecnologia alterar o mundo e a espécie humana.
Eis o depoimento.
“A desigualdade existe há no mínimo 30 mil anos. Os caçadores-coletores eram mais igualitários do que as sociedades subsequentes. Eles tinham poucas propriedades, e propriedade é um pré-requisito para desigualdade de longo prazo. Mas até eles tinham hierarquias. Nos séculos 19 e 20, porém, algo mudou. Igualdade tornou-se um valor dominante na cultura humana em quase todo o mundo. Por quê? Foi em parte devido à ascensão de novas ideologias como o humanismo, o liberalismo e o socialismo.
Mas também se tratava de mudanças tecnológicas e econômicas – que estavam ligadas a essas novas ideologias, claro.
De repente, a elite começou a precisar de um grande número de pessoas saudáveis e educadas para servir como soldados nos exércitos e como trabalhadores nas fábricas. Os governos não forneciam educação e vacinação porque eram bondosos. Eles precisavam que as massas fossem úteis. Mas agora isso está mudando novamente.
Os melhores exércitos da atualidade demandam poucos soldados, mas altamente treinados e com equipamentos de alta tecnologia.
As fábricas também estão cada vez mais automatizadas.
Esse é um dos motivos pelos quais poderemos – num futuro não tão distante – ver a criação das sociedades mais desiguais que já existiram na história humana. E há outros motivos para temer esse futuro.
Com rápidos avanços em biotecnologia e bioengenharia, nós podemos chegar a um ponto em que, pela primeira vez na história, desigualdade econômica se torne desigualdade biológica.
Até agora, humanos tinham controle sobre o mundo ao seu redor. Eles podiam controlar rios, florestas, animais e plantas. Mas eles tinham muito pouco controle do mundo dentro deles.
Eles tinham capacidade limitada de manipular seus próprios corpos, cérebros e mentes. Eles não podiam evitar a morte. Talvez esse não seja sempre o caso.
Há duas maneiras principais de aprimorar humanos: ou você altera algo em sua estrutura biológica por meio de alteração de seu DNA, ou – o jeito mais radical – você combina partes orgânicas e inorgânicas, talvez conectando diretamente cérebros e computadores.
Os ricos – ao adquirir tais melhorias biológicas – poderiam se tornar literalmente melhores que os demais: mais inteligentes, saudáveis e com vidas mais longas. Nesse ponto, será fácil que essa classe “aprimorada” tenha poder. Pense desta forma: no passado, a nobreza tentou convencer as massas que eles eram superiores a todos os outros e que deveriam deter o poder. No futuro que estou descrevendo, eles realmente serão superiores às massas.
E como eles serão melhores que nós, fará mais sentido ceder a eles o poder e a prerrogativa de tomada de decisões.
Podemos também constatar que a ascensão da inteligência artificial – e não apenas automação – pode significar que grandes contingentes de pessoas, em todos os tipos de emprego, simplesmente perderão sua utilidade econômica.
Os dois processos casados – aprimoramento humano e ascensão de inteligência artificial – podem resultar na separação da humanidade em uma pequena classe de super-humanos e uma gigantesca subclasse de pessoas “inúteis”.
Eis um exemplo concreto: pense no mercado de transporte.
Há centenas de motoristas de caminhões, táxis e ônibus no Reino Unido. Cada um deles comanda uma pequena parte do mercado de transporte, e todos ganham poder político em função disso. Eles podem se sindicalizar e, se o governo faz algo que não gostam, eles podem fazer uma greve e travar todo o sistema.
Agora, avance 30 anos no tempo. Todos os veículos conduzem a si próprios e uma corporação controla o algoritmo que comanda todo o mercado de transporte. Todo o poder econômico e político previamente compartilhado por milhares agora está nas mãos de uma única corporação.
Depois que você perde sua importância econômica, o Estado perde ao menos um pouco do incentivo de investir em saúde, educação e bem-estar. Seu futuro dependeria da boa vontade de uma pequena elite. Talvez haja boa vontade mas, em tempo de de crise – como uma catástrofe climática -, seria muito fácil te descartar.
Tecnologia não é determinista. Ainda podemos fazer algo para lidar com tudo isso. Mas acho que deveríamos estar cientes de que descrevo um futuro possível. Se não gostamos dessa possibilidade, precisamos agir antes que seja tarde.
Existe mais um passo possível no caminho rumo à desigualdade previamente inimaginável. A curto prazo, a autoridade pode se centrar em uma pequena elite que detenha e controle os algoritmos e os dados que os alimentam. A longo prazo, porém, a autoridade poderá se transferir completamente dos humanos aos algoritmos.
Quando uma inteligência artificial for mais inteligente que nós, toda a humanidade poderá se tornar inútil.
O que aconteceria depois disso? Não temos nenhuma ideia – literalmente não podemos imaginar. Como poderíamos? Estamos falando de uma inteligência muito maior do que a que a humanidade possui.”
Fonte: Instituto Humanitas, com BBC Brasil
Data original da publicação: 06/05/2017