“Depois de uns dias, a pele começa a descolar das mãos”, conta Laura, 36 anos, que trabalha sem luvas separando e empacotando mangas em uma cidade do nordeste brasileiro. Mas esse é apenas um dos problemas enfrentados pelos trabalhadores da fruticultura brasileira, que incluem violações e abusos trabalhistas como falta de equipamento de segurança, contratos de apenas três meses e chefes que controlam idas ao banheiro ou o tempo do lanche.
Enquanto os colhedores de frutas estão submetidos a baixos salários e a práticas degradantes nas lavouras, o Brasil é o terceiro maior produtor de frutas do mundo – setor que gera PIB de R$ 40 bilhões por ano. As frutas, colhidas, separadas e empacotadas por trabalhadores que estão entre os 20% mais pobres do país, terminam nas prateleiras dos maiores supermercados brasileiros.
Essas conclusões fazem parte de relatório “Frutas Doces, Vidas Amargas – a história dos trabalhadores por trás das frutas que comemos”, produzido pela ONG Oxfam Brasil, que ressalta a responsabilidade dos grandes supermercados nas condições de trabalho do setor.
“Os esforços atuais dos maiores supermercados do Brasil estão muito tímidos com relação às condições trabalhistas na cadeia produtiva de frutas. Eles têm poder de negociação no setor e, por essa razão, podem exigir de seus fornecedores uma maior transparência em cada etapa da produção dos alimentos que vendem”, avalia Gustavo Ferroni, coordenador político da área de Setor Privado, Direitos Humanos e Desigualdades da Oxfam.
O estudo rastreou a cadeia produtiva que abastece três dos principais grupos varejistas do país – Carrefour, GPA (antigo Pão de Açúcar) e Big (ex-Walmart Brasil). A conclusão é que por detrás das frutas nas prateleiras dos supermercados, há mulheres e homens que trabalham para os fornecedores dessas redes em situação de pobreza e sob a sombra da fome.
A Oxfam lembra que a responsabilidade empresarial em identificar, prevenir e remediar abusos de direitos nas suas cadeias de fornecimento ficou clara com os Princípios Orientadores da Organização das Nações Unidas (ONU) para Empresas e Direitos Humanos. As empresas podem, inclusive, “ser percebidas como cúmplices nas ações de uma outra parte”.
O relatório mostra ainda que Carrefour, Pão de Açúcar e Grupo Big controlam 46,6% do setor no Brasil e investem em divulgar seus esforços em sustentabilidade. Neste sentido, podem “liderar uma reformulação nas condições de trabalho no plantio, colheita e processamento das frutas de seus fornecedores, a partir da implementação de políticas e práticas”, propõe o documento.
Procurado pela Repórter Brasil, o Carrefour informou que “a companhia repudia qualquer conduta que configure trabalho escravo ou sob condições diferentes daquelas previstas em lei”.
Já o GPA, grupo controlador das redes Extra e Pão de Açúcar, informou em nota que desde 2015 monitora e rastreia fornecedores de frutas, verduras e legumes. “Os fornecedores devem provar, por exemplo, que não possuem trabalho infantil ou escravo (e também não compram de quem possui essa prática); e a contratação de seus colaboradores esteja em conformidade com o estabelecido na lei trabalhista vigente.”
O Grupo Big afirmou “que está comprometido em manter uma cadeia de suprimentos em conformidade com as legislações social e ambiental” e que, para isso, mantém um programa de auditoria focado em monitorar e investigar seus fornecedores para atestar o cumprimento das leis socioambientais vigentes. Leia aqui a resposta na íntegra.
Na avaliação da Oxfam, a corresponsabilização para melhora das condições estende-se também a outras empresas que compram frutas da região – como a indústria de alimentos e bebidas –, bancos e investidores que financiam a produção.
Às empresas produtoras, o relatório sugere diálogo com trabalhadores e seus sindicatos e investimento em pesquisa no tema dos agrotóxicos. Outra frente consistiria em mapeamento e multiplicação das experiências bem-sucedidas – ainda raras e tímidas, mas já merecedoras de atenção, segundo o texto.
Vulnerabilidade e humilhações
Um dos casos retratados pelo relatório da Oxfam mostra a dura realidade do casal Robson, 32 anos, e Cícera, 28 anos. Eles moram com os três filhos em uma casa ainda em construção, em um terreno ocupado na cidade de Curaçá, na Bahia.
Ele trabalha há cinco anos no packing house (galpão de seleção, limpeza e empacotamento das frutas) de uma grande produtora de manga, e ela, há três anos como safrista da mesma firma – o que a mantém contratada por apenas um trimestre por ano.
É nesses três meses que eles conseguem pagar a dívida no mercado onde compram comida. Quando um dos filhos começou a ter convulsões, Cícera teve de voltar para sua cidade natal e pedir dinheiro na rua para pagar o tratamento.
Maria é outra trabalhadora do setor. Há seis anos ela trabalha trimestralmente com carteira assinada – sendo demitida e recontratada pela mesma empresa continuamente. Ela reclama do tratamento dado às mulheres, que envolve controle sobre as idas ao banheiro, as conversas com as colegas e o tempo bebendo água.
“Frutas Doces, Vidas Amargas” destaca que, só em 2017, a produção de manga, melão e uva foi responsável pela criação de cerca 88 mil postos de trabalho – e que cerca de 45% deles não duraram mais que seis meses.
“Mesmo em uma cadeia com alto índice de formalização como essa, o uso em grande escala dos trabalhadores safristas – cerca de metade –, com contratos muitos curtos, coloca-os entre os 20% mais pobres do país”, observa Ferroni.
Outra irregularidade constatada pelos trabalhadores da fruticultura é a falta de banheiros e refeitórios, com as refeições às vezes sendo feitas em meio a agrotóxicos. A pesquisa afirma que essas más condições de trabalho acontecem inclusive em produtores certificados, ou seja, com selos de qualidade.
“O argumento de que qualquer emprego é melhor que nenhum emprego coloca sobre os trabalhadores o peso de aceitarem qualquer condição de trabalho e exime setores econômicos de suas responsabilidades. E isso não é justo”, afirma Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil. “A cadeia das frutas gera riqueza e é necessário que essa riqueza seja mais bem distribuída.”
Desmonte trabalhista
A pesquisa da Oxfam atesta ainda que as condições de vida dos trabalhadores da fruticultura pioraram com a reforma trabalhista aprovada durante o governo do ex-presidente Michel Temer e estão se agravando com medidas tomadas pelo governo de Jair Bolsonaro.
A reforma trabalhista, aprovada em 2017, retirou direitos desses trabalhadores ao ampliar a terceirização, validar o trabalho intermitente (prestação de serviço por hora sem garantia de pagamento mínimo mensal) e extinguir o pagamento pelo tempo in itinere (deslocamento entre a casa e o trabalho).
A capacidade dos trabalhadores de se organizarem também foi prejudicada, afirma o estudo, por conta do fim da contribuição sindical obrigatória, que deixou os sindicatos rurais sem capacidade e sem recursos para preparar as negociações coletivas e articular suas bases.
“É um quadro de desmonte da legislação brasileira, contra os trabalhadores, que estamos assistindo”, afirma o presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais Assalariados e Assalariadas do Estado do Rio Grande do Norte (Fetraern), José Saldanha. “Estamos fechando negociações coletivas em que as empresas cada vez mais resistem em garantir os direitos dos trabalhadores”, diz Saldanha, que é também o atual presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Baraúna (RN).
Outro retrocesso destacado no relatório é a dissolução do Ministério do Trabalho e Emprego e os cortes na fiscalização de trabalho escravo no campo, medidas tomadas pelo atual governo.
Diante da realidade constatada pelo estudo da Oxfam, a recomendação da entidade é pela retomada da política de valorização do salário mínimo e uma postura mais restritiva com relação a agrotóxicos.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Antonio Biondi e Pedro Biondi
Data original da publicação: 11/10/2019