Superexploração da força de trabalho

O mecanismo essencial na relação social de produção capitalista, na manutenção por seus elevados lucros.

Francisco Eduardo de Oliveira Cunha

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 12/02/2022

Admite-se que a categoria que melhor caracterize a peculiaridade do capitalismo dependente – à luz da teoria marxista da dependência – seja a superexploração da força de trabalho.[i] Logo, no desenvolvimento teórico de Ruy Mauro Marini,[ii] a superexploração da força de trabalho é apresentada como parte de um mecanismo de compensação em que o capitalismo dependente se utiliza para fazer frente às transferências de valor ao capitalismo central.

Ruy Mauro Marini parte da tese das trocas desiguais que se refere a mecanismos dissimulados que permitem a realização de transferências de valor entre as diversas regiões produtivas (países), burlando as leis de troca determinadas pelos preços de produção e expressas nos preços de mercado. Com efeito, a inter-relação de regiões periféricas e centrais (desenvolvidas e não desenvolvidas/dependentes) – com menor e maior produtividade do trabalho, respectivamente (ou entre produtores de matérias-primas e bens manufaturados), deixa patente o processo de transferência de valor (ou mais-valia), uma vez que a defasagem entre as composições de capital do centro e da periferia, escancara a distância da produtividade do trabalho entre ambos os espaços produtivos, condicionando aos países periféricos à manutenção de sua condição de subdesenvolvidos e dependentes do centro, a partir da integração global (como determinação da divisão internacional do trabalho).

Entretanto, a lógica da manutenção desse sistema de trocas, embora desigual e desvantajosa para os países dependentes, é extremamente viável sob a ótica do capital e sua reprodução (seja o central ou o periférico), uma vez que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam corrigir esse desequilíbrio (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a produtividade do trabalho), mas conduzidas por suas burguesias, procuram “compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador”.[iii]

Isso nos permite deduzir, portanto, que os capitalistas que operam nas economias dependentes, impacientes talvez, para a realização de seus lucros, preferem reduzir salários do que elevarem suas capacidades produtivas com investimentos, consequentemente que viessem a concorrer para o aumento da composição orgânica do capital (elevação da produtividade do trabalho). Até porque, uma vez que produzem hegemonicamente para fora, suas demandas independem dos salários praticados (e dos consumidores) internamente.

Dito isto, a superexploração do trabalho significa a queda dos preços da força de trabalho, abaixo de seu valor, implicando maior desgaste e redução de vida útil do ser humano trabalhador. Em linhas gerais, pode ser compreendida como a representação de “uma forma de exploração em que não se respeita o valor da força de trabalho”,[iv] entendida, portanto, como uma transgressão à lei do valor em Marx.

Embora se impetrem críticas, a referida tensão entre o valor da força de trabalho e sua transgressão, não foi deixada de lado por Karl Marx. Entretanto, o elemento de maior investida crítica contra o filósofo alemão se direciona à sua teoria da exploração que se refere à condição da remuneração do trabalhador pela venda, ou aluguel, da sua mercadoria força de trabalho. A partir de Marx é possível se considerar, pelo princípio da equivalência do valor, que a taxa de salário (W) remunera as condições de reprodução física, mental e moral do trabalhador, sendo, portanto, que se concebe que o valor da força de trabalho (Vft) seja monetariamente igual ao salário (W), assim observa-se, sob condições gerais do capitalismo central que W* = Vft[v].

Baseado nisso, Alfredo Saad Filho[vi] desenvolve uma crítica à abordagem de Marx acerca da concepção de equivalência entre salário e valor da força de trabalho, que corrobora para a confirmação da transgressão à lei do valor (embora não seja o foco de sua crítica), sustentando-se em três pontos. Primeiro, porque ela se baseia em uma leitura pobre de Marx, ou seja, pouco desenvolvida em profundidade teórica-empírica. Segundo, por ela ser incapaz de explicar a composição da cesta de bens de salário ou a taxa salarial, ou diferenças entre os salários em distintos segmentos do mercado de trabalho.

E por fim, o referido autor entende que essa interpretação obscurece a natureza mercantil da força de trabalho, ou seja, ela implicitamente nega o pagamento de salários monetários, e confunde os trabalhadores com os bens que eles consomem ou, alternativamente, confunde os gastos dos trabalhadores com a “tecnologia de produção” da força de trabalho, “como se essa capacidade humana fosse produzida para lucro”[vii].

Em contraposição à essas possíveis insuficiências teóricas em Marx, Saad Filho apresenta uma abordagem alternativa na definição do valor da força de trabalho como a fatia dos salários na renda nacional. Segundo o referido autor, o valor da força de trabalho é o comando sobre o trabalho abstrato que os trabalhadores recebem em troca de sua força de trabalho na forma de um salário monetário. E complementa que “os trabalhadores na sociedade capitalista não negociam nem recebem uma cesta de mercadorias como pagamento por sua força de trabalho, eles recebem uma quantia de dinheiro, o salário monetário”, logo, a moeda não pode ser desaparecer como elemento mediador do processo”.[viii]

Por essa interpretação, Alfredo Saad Filho traz a moeda para o debate e mostra a especificidade da exploração no capitalismo como uma apropriação de mais-valia na forma de moeda. Essa interpretação deixa patente o reconhecimento do papel dos conflitos distributivos na determinação dos salários, bem como evidencia que, ao contrário das demais mercadorias, o valor da força de trabalho não se justifica (ou se limita) apenas por elementos de natureza física, mas sobretudo por elementos de natureza histórica e social.[ix]

O caráter transgressor à lei do valor é também explorado por Luce[x], quando este apresenta a superexploração da força de trabalho como determinação negativa do valor contido na lei do valor. Neste sentido, contribui para o entendimento de que a corporeidade viva da força de trabalho é submetida a um desgaste prematuro, ou seja, a substância viva não é restaurada em condições normais, o que acarreta ao rebaixamento de seu valor. Com efeito, o autor busca explorar a essência da superexploração, assumindo-a enquanto determinação negativa do valor da força de trabalho contida no âmbito da lei do valor, conforme apresenta que “A lei do valor é simultaneamente a assunção e negação do valor. É simultaneamente o intercâmbio de equivalentes e sua negação. É simultaneamente o pagamento da força de trabalho próxima de seu valor e o pagamento abaixo de seu valor”. E complementa, que “é tanto o consumo da força de trabalho em torno de seu valor, quanto seu consumo acelerado esgotando-a prematuramente.

A superexploração é, pois, a agudização da tendência negativa, inscrita na lei do valor”[xi]. Desta forma, Luce deixa patente que ao mesmo tempo em que a superexploração está submetida à lei geral do valor, está também às determinações mais específicas desta. Logo é também entendida como “transgressão do valor contida na lei do valor”[xii].

Com o exposto, reitera-se que a superexploração da força de trabalho, se trata, portanto, de uma lei de compensação que é flexibilizar o consumo (um eufemismo para superexploração ou superconsumo) da mercadoria força de trabalho, como condição de sobrevivência nessa competição desigual global, inter capitais. Com isso, a superexploração requer que o mercado de trabalho brasileiro mantenha condições estruturais de “flexibilidade”, impondo uma constante pressão pela redução da taxa de salário real e pela manutenção de condições precárias permanentes de reprodução material (e fisiológica) do trabalhador, conforme se observa no Gráfico 01, onde se verifica nos últimos anos uma intensificação do hiato entre o salário médio no Brasil e uma proxy do valor da força de trabalho assumida pelo salário mínimo necessário, conforme estimativa do DIEESE (2022).

Gráfico 01. Contraste Rendimento médio real efetivamente recebido de todos os trabalhos x Salário Mínimo Necessário[xiii]

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral (IBGE, 2022)[xiv] e DIEESE (2022)[xv]

Nessa dinâmica, a América Latina e especificamente o Brasil, ao passo que contribuem para o incremento da taxa de mais-valia e a taxa de lucro nos países industriais centrais, corroboram para a pauperização dos trabalhadores mundiais, considerados como tão somente meras mercadorias superconsumidas pelo capital. A transgressão do valor a partir da superexploração da força de trabalho, se configura, portanto, na contínua agressão aos sujeitos humanos, onde reiterada ação é tida como mecanismo essencial na relação social de produção capitalista, na manutenção por seus elevados lucros.

Notas

[i] Ruy Mauro Marini em Dialética da dependência. In: Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 3, p. 325-356, dez. 2017; Jaime Osorio em Dependência e superexploração. MARTINS, Carlos Eduardo et al. (Orgs.). A América Latina e os Desafios da Globalização. São Paulo: Boitempo, 2009; Mathias Seibel Luce em Teoria Marxista da Dependência. Problemas e categorias – uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

[ii] Cf Marini, cit. (2017, p. 331).

[iii] Id. Ibid., p. 332.

[iv] Cf Osório, cit. (2009).

[v] MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

[vi] SAAD FILHO, A. Salários e exploração na teoria marxista do valor. Economia e Sociedade, Campinas, (16): 27-42, jun. 2001.

[vii] Id. Ibid., p. 33.

[viii] Id. Ibid., p. 34.

[ix] ROSDOLSKY, R. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ, Contraponto, 2001.

[x] Cf Luce, cit. (2018).

[xi] Id. Ibid., p. 155.

[xii] Id. Ibid., p. 155.

[xiii] Estimativa feita pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas.

[xiv] IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2022). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral/PNADCT. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br.

[xv] DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2022). Salário mínimo nominal e necessário. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/ analisecestabasica/salarioMinimo.html>.

Francisco Eduardo de Oliveira Cunha é professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

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