Em plena era digital, Brasil escolhe reprimarização. Deixa de investir em novas tecnologias e quase toda inovação vem de fora, bancada por modelo de comércio exterior que prioriza a economia arcaica.
Marcio Pochmann
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 05/09/2022
Em 2021, o valor alcançado pelo comércio externo (exportações mais importações) brasileiro equivaleu a 39,2% do Produto Interno Bruto (PIB), a mais elevada relação desde 1960, quando a série do Banco Mundial foi constituída. Entre 1960 e 1989, a relação média anual do comércio externo com o PIB foi de 16%, enquanto de 1990 a 2021 passou a ser de 27%.
Se comparado com o ano de 1989 (14,4%), o peso do comércio externo no PIB de 2021 (39,2%) foi multiplicado por 2,7 vezes. Embora as trocas comerciais no mundo tenham decaído 14,7% desde a crise de 2008, o Brasil continuou aumentando a corrente de comércio exterior em 43,6%, pois passou de 27,3% do PIB, em 2008, para 39,2% do PIB, em 2021.
A trajetória de maior relevância do comércio externo relacionado ao PIB decorre da forma como o Brasil se insere na Divisão Internacional do Trabalho. Em plena Era Digital, o mundo se divide em dois grupos distintos de países.
De um lado, os países produtores e exportadores de bens e serviços digitais. De outro, aqueles países que fundamentalmente consomem bens e serviços digitais, dependendo das importações dos países produtores.
Por ocupar a quarta maior posição no mercado consumidor de bens e serviços digitais do mundo, o Brasil assumiu crescentemente a situação de importador, dependendo cada vez mais das exportações de bens primários ou básicos (agrários e minerais) para poder financiar as compras externas. Nesta nova condição periférica no sistema capitalista mundial, o Brasil esvazia a sua capacidade interna de decidir a respeito do rumo a seguir, estando mais sujeito às decisões tomadas externamente.
O resultado tem sido a intensificação do subdesenvolvimentismo, que para o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) representa a condição de país “sobrecarregado pelo desenvolvimento dos outros”. Na atualidade, a dependência do exterior repercute internamente, uma vez que o comércio externo apresenta baixa capacidade de impactar positivamente a economia nacional.
Entre 2019 e 2021, por exemplo, o PIB brasileiro acumulou crescimento de 1,2%, enquanto o comércio externo aumentou 35,6%. Nestas condições, para que o PIB nacional possa aumentar em um ponto percentual, precisa que o comércio externo cresça 30%.
Isso talvez explique por que o governo Bolsonaro pressiona as finanças do Estado, seja pela desoneração fiscal, seja pela ampliação do gasto público, pois não há dinamismo possível proveniente do comércio externo para impulsionar o conjunto da economia nacional. No período de 1960 a 1989, por exemplo, o peso do comércio externo era diminuto em relação ao mercado interno e o crescimento médio anual do PIB foi de 5,4%.
A partir de 1990, a variação média do PIB declinou para 2,1% como média ao ano, justamente quando o Brasil ingressou na globalização dando maior importância ao comércio externo. De forma passiva e subordinada, as trocas internacionais assumiram centralidade, esvaziando o potencial de expansão do mercado interno (que não seja fundamentalmente pela gestão macroeconômica das finanças públicas).
Diante do decrescimento relativo do setor privado, especialmente no complexo industrial, o Brasil terminou por abandonar o ineditismo histórico da produção de bens manufaturados que eram predominantes na pauta de exportação de 1979 a 2009. Diferentemente destes 31 anos, mais exceção do que regra, a pauta de exportação brasileira se manteve fortemente dependente da produção e exportação de bens primários, pelo menos desde 1808, o marco zero do comércio externo.
Após 308 anos de exclusivismo metropolitano (1500-1808), quando a colônia somente podia vender e comprar de Portugal, a decisão da abertura dos portos às nações amigas, com a chegada de D. João VI em 1808, pouco alterou o modelo de estruturação do comércio externo no Brasil. Ou seja, em 213 anos de comércio externo (1808-2021), a pauta exportadora majoritária do país esteve concentrada na produção e exportação de produtos primários, compreendendo mais de 85% de todo o tempo.
Percebe-se, portanto, que o Brasil se encontra em sua terceira fase na trajetória de mais de dois séculos de comércio externo em relação ao PIB. A primeira fase correspondeu aos anos de 1808 a 1978, com as exportações sendo predominantemente de produtos primários.
A segunda fase transcorre entre 1979 e 2009, com o inédito predomínio das exportações de bens manufaturados. Desde 2009, o Brasil se encontra em sua terceira fase, retornando a condição de país produtor e exportador de produtos primários, cuja especialização produtiva explicita a regressão das condições internas de crescer a economia, emprego e renda nacional.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.