Sobre a alteração das metas de inflação

Fotografia: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Se o mundo mudou desde 2020, e não foi pouco, por que se devem manter os mesmos objetivos e metas estabelecidos antes das mudanças?

Flávio Fligenspan

Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 19/02/2023

Se a realidade muda e os parâmetros do modelo que tenta representá-la se alteram, como não mudar os resultados do modelo e os objetivos da política econômica? Parece uma pergunta simples e de resposta óbvia, mas tal obviedade está em debate na discussão atual sobre o sistema de metas de inflação brasileiro. A meta de inflação para 2023, medida pelo IPCA, é de 3,25%, e a de 2024 é de 3,00%, ambas sabidamente inatingíveis, dadas as condições de funcionamento da economia internacional e as adaptações do Brasil às modificações que ocorreram no mundo desde 2020, com o início da pandemia.

A meta para 2023 foi fixada pelo Conselho Monetário Nacional há três anos, no momento em que não se conhecia a extensão da pandemia nem seus desdobramentos econômicos, não se sabia como evoluiria a tensão entre os Estados Unidos e a China, e muito menos havia qualquer expectativa sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, todos eventos com grandes repercussões na economia internacional e com reflexos inevitáveis sobre o Brasil. De lá para cá se viu a desorganização – e as tentativas de reorganização, ainda bem indefinidas – de diversas cadeias produtivas mundiais, com destaque para os semicondutores, e do sistema de transporte marítimo, tudo com grande repercussão sobre os custos industriais. Também geraram aumentos de custos generalizados os dois outros fatos novos: a tensão geopolítica e o aumento das disputas comerciais entre Estados Unidos e China, e o conflito Rússia-Ucrânia, este com repercussão sobre os preços da energia e dos produtos primários.

Diante destes fatos novos, a inflação aumentou em todo o mundo, mesmo e significativamente, nos países desenvolvidos, tendo os Estados Unidos como o caso mais evidente, com a taxa anualizada passando de 8%, algo inimaginável há pouco tempo. O caso dos Estados Unidos difere da maioria, porque lá efetivamente existem elementos de inflação de demanda, além da inquestionável e importante inflação de oferta ou custos. Na maioria dos países, o Brasil incluído, os novos eventos a partir de 2020 levaram a uma inflação essencialmente causada por elevações de custos, para o que o remédio da alta dos juros não funciona e ainda causa o efeito colateral negativo de deprimir a atividade econômica. Pois bem, se o mundo mudou desde 2020, e não foi pouco, por que se devem manter os mesmos objetivos e metas estabelecidos antes das mudanças? Esta é a pergunta que dá sentido à discussão sobre a alteração das metas de inflação fixadas com bastante antecedência.

Poder-se-ia discutir até mesmo as metas absolutas de 3,25% e 3,00% para, respectivamente, 2023 e 2024, por todas as especificidades da economia brasileira. Seriam metas muito baixas, dadas nossas características históricas? Parece que sim. Durante 14 anos, entre 2005 e 2018, a meta de inflação foi de 4,50%, na maior parte do tempo com intervalo de tolerância de dois pontos percentuais – atualmente o intervalo é de um ponto e meio. Este foi o período em que o sistema de metas em vigor desde 1999 obteve os melhores resultados; somente em 2015 a inflação foi maior que o limite superior do intervalo, devido ao choque de preços de energia e dos combustíveis, e da correção cambial do início daquele ano.

Contudo, independentemente da saudável discussão sobre o percentual absoluto das metas para o Brasil, o fato é que as metas estabelecidas para 2023 e 2024 ficaram baixas demais diante do ambiente internacional em vigor, incluindo o tema das mudanças da matriz energética, cada vez mais importante daqui para a frente e com impacto sobre os preços em geral. Tal ambiente já coloca a discussão sobre uma alteração permanente da inflação mundial, da cômoda marca em torno de 2% ao ano para algo mais próximo de 4%.

Voltando ao caso específico do Brasil, as metas atualmente estabelecidas são claramente inatingíveis, exigindo, de acordo com o modelo vigente, taxas de juros muito altas. Portanto, uma possível redução das metas proporcionaria um relaxamento da política monetária com reflexos positivos sobre o nível de atividade e o emprego.

Há, porém, um outro ponto para debate, que anda pari passu com o anterior, mas não é o mesmo. Trata-se de discutir o nível absoluto da taxa de juros básica atualmente em vigor, de 13,75% ao ano. A pergunta relevante neste caso é: necessita-se uma taxa tão alta para combater a inflação, mesmo admitindo-se a meta considerada irreal para o Brasil? Tal taxa nominal de 13,75% ao ano significa uma taxa real – acima da inflação – de cerca de 8% ao ano, absurdamente alta diante de qualquer comparação, seja no tempo, seja com outras economias na atualidade. Esta taxa real nos coloca na liderança mundial e é mais que o dobro das taxas vigentes no México, por exemplo, segundo lugar no ranking. É claro que há aí um exagero.

Por mais que se considere a existência de um choque de preços no mundo inteiro desde 2020 e que a inflação possa estar mudando de patamar mesmo nos países desenvolvidos, é certo que não teremos taxas de inflação tão altas como as atuais permanentemente, como no caso dos 8% dos Estados Unidos. Tendo isto em mente, verifica-se que as taxas de juros nominais nos Estados Unidos subiram com força nos últimos meses, mas chegam agora a algo próximo de 5% ao ano. Observe que a relação entre juros nominais e inflação é tal que os juros são menores que a inflação, justamente porque se acredita que lá a inflação vai cair – o choque de oferta vai se dissipar – e que não é necessário “espremer” a economia para se atingir o objetivo, mesmo considerando que no caso americano existem elementos de inflação de demanda. Aqui a relação é contrária, a taxa nominal de juros é (bem) maior que a inflação. Pra quê?

Flávio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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