Sobre 1º de maio

Ato do 1º de maio de 2017 reúne milhares de manifestantes na Cinelância, região central da cidade, contra as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo governo. Fotografia: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Na fundação da Segunda Internacional, em Paris, no dia 14 de julho de 1889, centenário da Queda da Bastilha, o estopim da Revolução Francesa, a data 1º de maio foi instituída como o Dia Internacional do Trabalhadores, em homenagem aos mártires de Chicago e à sua luta pela jornada de oito horas de trabalho diárias.

Mariana Lins Costa

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 13/04/2021

Em 1º de maio de 1886, teve lugar a segunda greve geral nacional dos Estados Unidos, de proporções até então inauditas, já que apenas em Londres uma greve da mesma magnitude havia ocorrido 56 anos antes. A greve conseguiu reunir além dos trabalhadores, sindicalistas, socialistas e anarquistas, um sem-número de simpatizantes sob a pauta da diminuição da jornada de trabalho para 8 horas; cujo hino, bastante audaz para a época, era: “Oito horas de trabalho. Oito horas de descanso. Oito horas para fazer o que quisermos”. Naquele 1º de maio de 1886 cerca de 300 mil trabalhadores entraram em greve nos Estados Unidos. Só em Chicago, epicentro do movimento, estima-se que algo em torno de 40 mil trabalhadores tenham parado e cerca de 80 mil pessoas tenham ido às ruas. Os protestos em Chicago estavam programados para ocorrer ao longo de vários dias – não obstante, rapidamente, a brutalidade da repressão policial se fez ver: em 3 de maio pelo menos duas pessoas foram mortas e várias ficaram feridas num ataque da polícia aos grevistas. Para protestar contra a violência policial, lideranças anarquistas convocaram uma reunião em massa para o dia seguinte, 4 de maio, na Praça Haymarket. Ao final da reunião até então pacífica, tumultos foram causados pela polícia, o que resultou no lançamento de uma bomba contra os policiais. No caos que se seguiu, a polícia abriu fogo contra a multidão, deixando dezenas de pessoas feridas. No total, sete policiais morreram, quanto aos civis os números não foram divulgados.

O autor do atentado nunca foi identificado, muito embora os efeitos da bomba tenham, por assim dizer, se alastrado por todo país. A opinião pública foi instantaneamente cooptada pela imprensa contra os anarquistas, e todo um clima de histeria antivermelha foi instaurado. Os jornais divulgaram uma série de histórias infundadas nas quais os anarquistas eram retratados como agentes de uma conspiração antiamericana comandada pela Rússia e levada a cabo por imigrantes, o que deu lugar tanto à associação difamatória e violenta entre anarquistas e imigrantes, quanto ao clamor público por vingança impiedosa: “Eles devem ser enforcados!” – gritava-se nas ruas. Após dezenas de prisões e apreensões, oito anarquistas foram responsabilizados pelo atentado, embora não houvesse quaisquer provas que comprovassem o envolvimento direto de algum deles. Dos oito sentenciados, apenas um não foi condenado à morte, e, dentre os que o foram, dois apelaram ao então governador de Illinois e tiveram a pena comutada para prisão perpétua. Uma clemência por parte das autoridades que foi resultado da pressão da opinião pública, que incluiu pelo menos 100.000 assinaturas numa petição de clemência, apoiada por personalidades como Oscar Wilde, Bernard Shaw e Friedrich Engels. Dos cinco homens que optaram por não apelar de modo a se manterem fies às suas convicções –, apenas o jovem imigrante Louis Lingg, não foi enforcado, pois se suicidou, com um detonador, em sua cela, um dia antes da execução. Milhares de pessoas compareceram ao funeral dos cinco condenados à pena capital em nome da ordem e da lei. Seis anos depois, em 1893, os três sobreviventes encarcerados receberam o perdão do então recente governador de Illinois, John Peter Atgeld – que sacrificou a sua carreira política, ao fazer valer a letra escrita da lei para tamanhos miseráveis. Atualmente, o julgamento é considerado um dos maiores erros judiciais da história estadunidense.

Albert Parsons foi um dos anarquistas executados pelo atentado à bomba em Haymarket – dentre os oito condenados, era o único que não era imigrante. Parsons, casado com a famosa anarquista negra Lucy Parsons, era editor-chefe do jornal The Alarm. August Spies, outro dos executados, liderava o Arbeiter Zeitung, direcionado a imigrantes. Através do trabalho de Parsons e Spies uma ponte entre imigrantes e estadunidenses foi construída no que diz respeito ao movimento anarquista nos Estados Unidos. Em ambos os jornais, foram publicados diversos artigos, nos quais o uso da violência nos métodos revolucionários estava justificado: os leitores eram incitados a estudar livros de química com o objetivo de aprender a fabricar todo tipo de explosivo, como forma de autodefesa contra o derramamento de sangue que se seguia, como se uma necessidade, aos levantes da classe trabalhadora contra a sua exploração.  Muitos desses escritos eram da autoria de Johann Most, imigrante alemão, quem, em 1885, um ano antes da tragédia de Haymarket, publicou, em Nova York, uma compilação dos seus escritos e discursos, intitulada Ciência da guerra revolucionária: manual de instruções para o uso e produção de nitroglicerina, dinamite, algodão-pólvora, fulminato de mercúrio, bombas, explosivos, venenos, etc – a qual obteve grande destaque também durante o julgamento dos oito condenados. A Most é atribuída ainda a responsabilidade de popularizar, nos Estados Unidos, a expressão “propaganda pelo feito”, postulado fundamental a qualquer grupo político que julgue necessário o uso da violência na ação direta. Não é exagero dizer que ele só escapou de ser enforcado pelo incidente em Haymarket, porque já estava preso.

Tanto o The Alarm, quanto o Arbeiter Zeitung foram suspensos no dia da tragédia em Haymarket, com todos os membros de ambas as equipes presos. Com Parsons na prisão, o anarquista Dyer D. Lum que na época do incidente vivia em Nova York, mudou-se para Chicago com o objetivo de retomar a publicação do jornal – o que conseguiu, precisamente, cinco dias antes da execução. Nessa primeira nova edição, foi publicada uma nota do próprio Parsons encorajando os companheiros a prosseguir com a luta, assim como, posteriormente, foi publicado o bilhete suicida de Louis Lingg. Mais do que publicar o bilhete, foi Lum quem forneceu a Lingg o detonador que o mataria após seis horas de agonia, à véspera da sua execução. As atividades do jornal foram definitivamente suspensas no final de 1888.

Lum cometeu suicídio em 1893 após sofrer de depressão severa; nunca se conformou com o fato de que nenhuma retaliação da parte dos anarquistas tivesse sido empreendida para vingar os mártires de Chicago. Ele mesmo teve a pretensão de libertar os condenados à morte antes da execução, através de explosões em diferentes pontos da cidade e um ataque armado ao presídio, mas nenhuma ação foi tomada nesse sentido. Lum era convicto da impreteribilidade do uso da violência na luta contra a opressão e o fato de ele mesmo ter falhado nisso, ao que parece, foi motivo para que nunca perdoasse a si mesmo. A memória da tragédia de Haymarket o dominou completamente. Chegou a contemplar se valer do suicídio como um ato de protesto e vingança, mas com o mergulho na depressão, que veio acompanhado do abuso de álcool e opiláceos, cometeu suicídio na decadência de um quarto de albergue, em Nova York, ao ingerir uma capsula de veneno. Ante o absurdo sanguinário em que se converteu aquela luta inicialmente tão grandiosa (a greve foi desmoralizada com o atentado), o destino derrotado de Lum guarda também o seu caráter exemplar.

Embora o objetivo da reação das autoridades fosse o de reprimir qualquer simpatia e adesão para com o anarquismo, o efeito foi, em grande medida, contrário. Muitos tiveram a sua consciência política desperta com a oposição flagrante entre a injustiça do julgamento e a legitimidade da pauta dos grevistas, caso de duas anarquistas reconhecidas na atualidade: Emma Goldman e Voltairine de Cleyre. Conforme relata Goldman em sua autobiografia: “Chicago foi muito significativo na minha vida. Devo o meu nascimento espiritual aos mártires de 1887”. Não se julgue, aqui, de pouca monta que o marco escolhido para a luta dos trabalhadores tenha se iniciado com um ato de desespero. Como poderia ter dito Benjamin: curvemo-nos respeitosamente ante os antepassados escravizados.

Na fundação da Segunda Internacional, em Paris, no dia 14 de julho de 1889, centenário da Queda da Bastilha, o estopim da Revolução Francesa, a data 1º de maio foi instituída como o Dia Internacional do Trabalhadores, em homenagem aos mártires de Chicago e à sua luta pela jornada de oito horas de trabalho diárias. Somente em 1940, a jornada de oito horas foi promulgada, sob a forma da lei, para todo território estadunidense. O Dia Internacional dos Trabalhadores é comemorado no dia 1º de maio em diversos países, dentre os quais, como se sabe, está o Brasil. Nos Estados Unidos, ironicamente, em 1º de maio é oficialmente comemorado o “Dia da Lealdade” – lealdade, no caso, aos Estados Unidos e à tradição americana da liberdade –; o presidente Eisenhower decretou o feriado em 1955, durante a guerra fria, de modo a evitar qualquer indício de complacência para com o 1º de maio dos “trabalhadores do mundo”.

Notas

A reconstituição histórica aqui disposta é parte da minha tradução da obra Ação direta e outros escritos da anarquista estadunidense Voltairine de Cleyre, com organização de Acácio Augusto, a ser lançada pela editora Hedra com data prevista para o segundo semestre deste ano de 2021. A fonte principal dos fatos aqui narrados consiste na obra de Paul Avrich, The Haymarket Tragedy (New Jersey: Princeton University Press, 1984).

[1] In: LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.

Mariana Lins Costa é Doutora em Filosofia (2015) pela mesma instituição com período sanduíche na Laurentian University of Sudbury. 

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