Sindicalismo democrático entre o direito e a justiça: lições da história com E.P. Thompson

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Imagem: E.F. Skinner/Science Museum, London

A consciência de classe do movimento operário inglês não poderia surgir sem a sua capacidade de ação social coletiva e organizada fundada em ideias e de justiça social que respaldassem suas reivindicações de reforma do direito.

Martin Magnus Petiz

O passado tem algo a nos dizer sobre a compreensão atual de nossos problemas sociais e jurídicos envolvendo a classe trabalhadora? Em seu livro recente “Para além da greve”, a Prof.ª Flávia Souza Máximo Pereira (UFOP) argumenta que o sindicalismo está em crise, em função de mudanças estruturais do capitalismo. A greve, como concebida originalmente pelo direito, já não faria sentido[1]. Será que esse é um problema isolado da história da humanidade? Em seu livro “A formação da classe operária” (dividido em 3 volumes na edição brasileira), o historiador marxista E.P. Thompson (1924-1993) buscou mostrar como grupos de operários que possuíam uma convergência de interesses contra uma classe dirigente e possuidora dos meios de produção adquiriu consciência da sua condição, e buscou se organizar para exprimi-los e mudar a sua condição social (p. 12).

A ideia de que a história se repete é um mantra marxista ao qual Thompson tinha de dar a sua interpretação. Basta lembrar a frase de Karl Marx em O 18  de Brumário, na qual ele comenta a tese de Hegel sobre a história de que ela sempre é encenada duas vezes: “ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.” [2] Mas Marx também acreditava que apenas olhar para o futuro daria a “poesia” de que toda revolução proletária precisa. Era preciso aos vivos “se desprender” dos mortos [3]. O filme recente Os rejeitados (2023) oferece uma resposta inicial ao ceticismo de Marx sobre o poder da história. No filme, o personagem principal é um professor de história antiga (Prof. Paul Hunham) que acredita no poder explicativo da história para o presente. Os seus alunos estão preocupados com a questão da Guerra do Vietnã – o filme se passa nos anos 1970 –, mas não veem relevância em estudar a Guerra do Peloponeso em sala de aula. A certo ponto, então, o Prof. Hunham afirma que nenhum problema humano é original: devemos olhar para o passado também para compreendermos o presente. Talvez não devamos descartar de pronto o passado na busca de soluções para o futuro, então.

É claro que, na visão de Thompson, a luta de classes não é dada por categorias estanques, como também defende a Prof.ª Flávia Máximo [4]. Houve de fato mudanças sociais no século XXI que alteraram totalmente a dinâmica da relação de trabalho, e precisamos lidar com elas nos seus termos. Por isso, Thompson afirma que “a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história” (p. 12). O que ele tem a nos dizer, então, que não passe de mera curiosidade sobre as querelas da classe trabalhadora?

No Volume I da sua obra magna – “A arvóre da liberdade” –, o historiador trata das tradições populares que deram origem às agitações coletivas do final do século XVIII na Inglaterra (p. 13). O contexto era de exclusão massiva da classe operária da política e da distribuição da propriedade. Os estrondos da rebelião popular eram ouvidos desde a França, que vivia a sua Revolução. O ideário iluminista temperava o período com teses que, embora aceitas hoje, eram tidas como radicais à época. Mas Thompson mostra como um setor muitas vezes marginalizado nas sociedades modernas – as instituições religiosas – deram o impulso que os trabalhadores precisavam para tomar as rédeas do seu destino.

A doutrina calvinista fazia sucesso na Europa com a Revolução Industrial, conferindo uma “autorização divina” à classe burguesa emergente acumular lucro via exploração econômica. Mas ela não atingia os trabalhadores, excluídos da graça nessa acepção. Por isso, movimentos evangélicos – iniciados pelos Batistas, e consolidados pelos Metodistas – buscaram atrair a classe operária para as suas comunidades eclesiais pregando a paciência e a recompensa diferida no tempo para aqueles que mantivessem a sua fé (p. 33-41). Duas consequências imprevistas desse movimento plantaram a semente do sindicalismo moderno: (i) de um lado, a abertura das igrejas às classes mais pobres fez surgir o ideal de democratização e de auto-organização das associações religiosas; e (ii) para incluí-los efetivamente no movimento, era preciso realizar ações capacitadores, como ensiná-los a ler, a participar nos debates com boa oratória, etc. Essas medidas conferiram autorrespeito aos trabalhadores. O aspecto (iii), talvez, foi a necessidade de se criar métodos de organização horizontal e de massa, como a coleta regular de inscrições e o pagamento de mensalidades por cédulas, medidas caras ao sindicalismo (p. 45-53). 

Thompson analisa como consequência da maior capacidade de auto-organização e autorrespeito da comunidade operária inglesa o surgimento das famosas sociedades reformistas, que reivindicavam direitos políticos. A Sociedade de Correspondência de Londres, fundada em 1792, adquiriu dois mil inscritos em seis meses. O seu grande lema: “que o nosso número de membros seja ilimitado.” Para o historiador, residia nisso “um dos eixos onde gira a história. Significa o término de qualquer noção de exclusividade, de política como reserva de uma elite hereditária ou de um grupo proprietário” (p. 23). 

O autor admite que não haveria ação social democrática sem uma conjunção de fatores: em primeiro lugar, não haveria mobilização se não houvesse a injustiça social perpetrada pelo sistema econômico inglês do período. Não é demais lembrar que a cidadania inglesa se baseava no direito de propriedade – modelo, aliás, reproduzido pelo Brasil no Século XIX com o voto censitário. Em segundo lugar, foi preciso que uma minoria mais esclarecida, com capacidade de liderança, articulasse os sentimentos da maioria. Essa queria agir para mudar o seu destino, mas precisava ser organizada (p. 224). 

Às classes mais pobres, o sistema político inglês não conferia espaços juridicamente válidos de expressão da sua insatisfação. No entanto, com a sua crescente capacidade de auto-organização, logo surgiram os motins e as turbas como modos “extra-legais” de reivindicações pelo operariado (p. 73-81). Embora muitos intelectuais reacionários do período – como Edmund Burke (1729-1797) – tentassem taxar esses movimentos de sanguinários e desorganizados (p. 69), eles precederam a greve e os grandes atos populares como meios de revolta legítimos. Eles se fundavam em demandas de justiça, afinal. Com o tempo, os meios oficiais do poder jurídico passaram a “conviver” com os movimentos populares. A instituição do júri popular deu a sua parcela de contribuição para dar eco à voz dos operários, que inocentavam os mobilizadores. Logo as autoridades tiveram de lhes fazer concessões (p. 90-91, 100, 104). O direito não era ignorado, então: “ao considerar essa forma de ação ‘turbulenta’, chegamos a complexidades insuspeitas, pois, por trás de cada forma de ação popular direta como esta, pode-se encontrar alguma noção de direito que a legitime”, diz Thompson (p. 85). 

Thompson é conhecido, nesse sentido, por se diferenciar de marxistas estruturalistas ao ver no direito um espaço de realização da justiça. O direito põe limites ao poder de dominação, e inclusive concede vitórias (parciais, normalmente) à classe trabalhadora na busca de maior igualdade em face às classes dirigentes [5].

Dada a sua definição de “ação social”, Thompson precisa gastar certo espaço do livro discutindo também as ideias que circulavam no período e davam legitimidade aos movimentos populares organizados. Para filósofos conservadores do período como Burke, a constituição inglesa era fundada na sua antiguidade e na sua capacidade de conferir estabilidade social e garantir a propriedade privada [6]. Mas as doutrinas iluministas de autores “pró-revoluções” inglesa e americana, como Thomas Paine (1737-1809), buscaram fundar a organização política na razão. Paine se diferencia do resto do movimento iluminista pela grande entrada de suas ideias no movimento operário, do que ainda não tenho notícia de um estudo sistemático no direito trabalhista brasileiro. Paine defendeu não só a expansão dos direitos políticos a todos os trabalhadores, com base na sua capacidade de autodeterminação (p. 114-118); ele defendeu a redistribuição de renda via taxação dos mais ricos, e a concessão de direitos sociais básicos, como moradia e vestuário a todos (p. 122-123). Pode-se dizer, assim, que John Thelwall (1764-1834), co-fundador da Sociedade Londrina, foi seu seguidor ao disseminar a defesa da redução da jornada de trabalho a 8 horas diárias, com base no direito de todo trabalhador ao tempo de lazer e com a sua família (p. 212-213). 

A discussão sobre os métodos mais apropriados para efetivar esses direitos entre os líderes operários do período foi sempre acirrada, e logo se chegou à cisão entre radicais e moderados no próprio movimento (p. 184-185). Os excessos dos jacobinos franceses durante o período do Terror na Revolução Francesa também contribuíram para desiludir muitos defensores das ideias iluministas mais radicais de Paine. Nada obstante, se a história se repete, e se Thompson tem razão em afirmar que temos muito a aprender também com os derrotados – “podemos descobrir, em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial, percepções de males sociais que ainda estão por curar” (p. 14-15), a história do movimento operário inglês é alimento para o pensamento sobre o movimento sindical atual também aqui, no Brasil.

Notas

[1]  PEREIRA, Flávia Souza Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo-brasileiro para a construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 73-74.

[2] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25.

[3] Ibid., p. 28.

[4] PEREIRA, Op. cit., p. 86-87.

[5] THOMPSON, E.P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 353-361. Ver também FORTES, Alexandre. O direito na obra de E.P. Thompson. História Social, Campinas/SP, no. 2, pp. 89-111, 1995, p. 92-93. Disponível em: https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/rhs/article/view/76. Acesso em: 04 abr. 2024.

[6] Para o grande historiador J.G.A. Pocock (1924-2023), a constituição inglesa era vista nessa doutrina da antiguidade como equilibrando virtude e proteção do cidadão-proprietário frente ao poder estatal. POCOCK, J. G. A. Virtue, commerce and history: essays on political thought and history, chiefly in the eighteenth century. Cambridge University Press: Cambridge, 1985, p. 129-130.

Martin Magnus Petiz é Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito pela Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq Direito & Justiça (USP-UFRGS).

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