‘Servidão’: as correntes da escravidão moderna são mentais

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Fotografia: Gabriela Salomoni/Agência Lema

“Abolição já! A outra não valeu”, diz a chamada do documentário Servidão, que entra em cartaz nos cinemas, com estreias confirmadas para segunda-feira (15), em Brasília, dia 22 (Rio de Janeiro) e 23 (São Paulo). Seu diretor, Renato Barbieri, vê no trabalho um chamado à resistência. “Para fazer com que a sociedade como um todo passe a desejar que o Brasil seja uma nação livre. Pra que todo mundo se torne um abolicionista”, afirma.

Como diz o texto de apresentação do filme: “A Lei Áurea aboliu a escravidão clássica, que dava direito de propriedade e comércio dos escravizados, mas não transformou as relações de trabalho, que perduram até os dias de hoje”. “Simplesmente continuou”, acrescenta Renato.

Escravidão: desigualdade e os vulneráveis

Nessa linha, ele identifica três pilares que sustentam a escravidão contemporânea: econômico, social e cultural. A profunda desigualdade brasileira certamente alimenta a prática, atingindo sempre os mais vulneráveis. Isso fez com que o diretor ouvisse várias vezes de entrevistados: “Eu fui pela precisão”. Assim, o trabalhador atende aos chamados de bom emprego e salário – mas contra exploração e violência. “O aliciamento sempre foi usado com base em mentira.”

O diretor, que assina também o roteiro, ouviu trabalhadores escravizados, ex-“gatos” (aliciadores de mão de obra), juízes, ativistas, “abolicionistas de diferentes vertentes”. O principal personagem é Marinaldo Soares Santos, escravizado 13 vezes e libertado três pelos grupos móveis de fiscalização. A narração do longa (1 hora e 12 minutos) é feita pela atriz Negra Li.

A saga de Pureza

Neste filme, o foco é a Amazônia. Mas não é a primeira incursão de Renato Barbieri no tema: ele dirigiu, por exemplo, Pureza, que conta a história da maranhense Pureza Lopes Loyola e sua peregrinação atrás de um dos cinco filhos, o quarto, escravizado. Após passar anos atrás de Antônio, tornou-se ativista. No ano passado, aos 80 anos, recebeu nos Estados Unidos o prêmio “Heróis no Combate ao Tráfico” (Trafficking in Person Report TIP Heroes Award). “Uma heroína brasileira”, define Renato. No filme, a personagem é vivida por Dira Paes.

Para o cineasta, há também um fator cultural perpetuando a escravidão no Brasil. “Um problema de mentalidade. Na lei, nas práticas dos governantes, nas práticas domésticas. É tudo muito normalizado.” E também de educação: “Se fala da Babilônia, da Grécia, e não se fala da Amazônia. É um problema curricular neocolonial”, afirma. “Eu costumo dizer que a escravidão tem uma matriz racial, indígena e negra. A gente é ensinado, diuturnamente, a ser racista.”

Resistência legal à escravidão

A conceituação de trabalho análogo à escravidão está no Artigo 149 do Código Penal, que já foi bastante atacado por grupos econômicos e políticos. Da mesma forma, a chamada “lista suja” do trabalho escravo chegou a ser suspensa durante anos. Renato Barbieri ressalta que o filme procura abordar, também, mecanismos importantes, de combate à prática, que fizeram o Brasil se tornar referência mundial. “Você tem uma resistência legalista.” Em 1995, lembra, foram criados os grupos móveis de fiscalização – na prática, um reconhecimento por parte do Estado de que a exploração continua. Partes de uma política de Estado, os grupos móveis resgataram 3.190 trabalhadores apenas no ano passado.

Servidão mostra também as iniciativas surgidas da sociedade, como da chamada ala progressista da Igreja Católica, com figuras como Tomás Balduíno e Pedro Casaldáliga, entre outros. Em 2025, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) completará 50 anos.

Novas faces da escravidão

Assim, define Renato, Pureza Servidão “são peças de resistência da luta abolicionista”. Para ele, cabe à atual geração a erradicação do trabalho escravo contemporâneo. Assim, quem sabe, o Brasil chegará ao século 21.

É preciso também mostrar que a escravidão “moderna” não tem pelourinho, tronco ou bolas de ferro. Continua presente nas áreas rurais, mas atinge também centros urbanos e até o serviço doméstico. “Hoje, as correntes são mentais”, diz Renato.

Se morrer, morreu

Dessa forma, os fins são os mesmos. O trabalhador é vigiado por jagunços armados, tem os documentos retidos, mora em locais precários e contrai “dívidas” (alimentos, equipamentos) que jamais conseguirá pagar. “Eles são levados para lugares distantes (do local de origem). Como vai fugir? Por isso, não pegam trabalhadores da região. Muitas vezes, está doente e tem que trabalhar do mesmo jeito. Se morrer, morreu.”

Lançado pela Gaya Filmes, Servidão tem codireção e montagem de Neto Borges e direção de fotografia de Reynado Zangrandi. As fotografias usadas no longa são de profissionais experientes, João Roberto Ripper (criador do projeto Imagens da Terra) e Sergio Carvalho, também auditor.

E tem apoio de diversos órgãos públicos e entidades: CPT, Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região (Espírito Santo), Ministério Público do Trabalho (MPT), Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), The Exodus Road, Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

Fonte: Rede Brasil Atual
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 13/01/2024

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