Em poucos dias de colheita, trabalhadores perceberam que a promessa de pagamento de R$ 100 diários para colher mandioca em uma fazenda em Itaquiraí, no Mato Grosso do Sul, terminaria com dívidas, exposição à covid-19, jornadas de 11h e condições humilhantes. Os trabalhadores — indígenas da etnia guarani — fotografaram os alojamentos onde estavam morando durante a colheita e pediram socorro a uma liderança da aldeia.
Na foto, cômodos pequenos, sem camas. Colchões velhos sem lençóis estavam no chão, junto às roupas e pertences dos trabalhadores. No banheiro, mais lama e sujeira. Na cozinha, panelas velhas em cima de um fogão imundo. Sem máscaras ou equipamentos de proteção à covid-19, os trabalhadores também não tinham cobertores suficientes. Dormiam no frio.
Foi graças a essas fotos, enviadas pelo celular, que 24 trabalhadores indígenas foram resgatados de condições análogas à escravidão no último dia 24 de junho — em plena pandemia. Quatro deles eram adolescentes – um de 15 anos. Nenhum com carteira assinada. Todos com mais dívidas do que perspectivas. Não apenas os trabalhadores foram submetidos àquelas condições, mas também suas famílias, entre elas seis crianças, que dormiam no mesmo alojamento.
Uma preocupação relatada pelos resgatados, de acordo com o auditor-fiscal do Ministério da Economia responsável pelo resgate, Antônio Parron, era a de não conseguir pagar pelas comidas compradas. Isso porque, para se alimentar, eles foram obrigados a gastar R$ 1.500 em alimentos superfaturados no mercado próximo à fazenda. Tiveram que fazer dívidas para ter o que comer e ainda pagariam pelo aluguel do alojamento precário, pelas ferramentas de trabalho, bem como pelo transporte das aldeias até a fazenda. Resultado: já chegaram devendo.
Para pagar tudo, eles teriam que arrancar muita mandioca, pois receberiam por produção. A média do que eles estavam conseguindo ganhar era em torno de R$ 50 por dia, poucos chegavam nos tais R$ 100 prometidos pelo “gato”, o homem que os recrutou para essa colheita. Fazendo a conta, alguns entenderam que não sobraria nada para eles e resolveram denunciar. A situação em que se encontravam chegou ao conhecimento do Ministério Público do Trabalho, que levou o caso aos auditores do Ministério da Economia.
“Como alguém pode deixar outra pessoa em uma situação dessa?”, desabafa Parron, que tem 25 anos de atuação como auditor e faz questão de trabalhar de forma técnica. “Dar condição digna para o trabalhador gera custo. O fazendeiro quer a mandioca, do jeito mais barato. Não quer saber de nada, quer o lucro”.
No momento do resgate, os indígenas receberam o dinheiro a que tinham direito pelo que já haviam colhido. As dívidas foram suspensas. Nas semanas seguintes, também receberam verbas rescisórias, em torno de R$ 1.300, além do FGTS. Agora, eles terão direito a três meses de seguro desemprego, no valor de R$ 1.045 mensais. Os trabalhadores já estão de volta às suas aldeias Porto Lindo, Cerrito, Amambai e Limão Verde, no Mato Grosso do Sul.
Os pagamentos foram feitos pelo dono da fazenda, apesar de o advogado do fazendeiro ter tentado colocar a culpa no “gato”, alegando que seu cliente “terceiriza a contratação” e que não sabia da situação dos trabalhadores. Os auditores, no entanto, constataram que o aliciador, de origem paraguaia e ex-trabalhador na colheita de mandioca, não teria condições financeiras para pagar os trabalhadores.
Procurado pela Repórter Brasil, o procurador Jeferson Pereira, do MPT-MS, informou que, com o pagamento das verbas rescisórias, considera a ação administrativa como regularizada. A fiscalização do trabalho está elaborando os autos de infração com as irregularidades e encaminhará o caso ao Ministério Público Federal para atuação na área criminal.
Exploração reincidente da mão de obra indígena
Este não foi o primeiro caso com indígenas brasileiros resgatados pelos auditores-fiscais do Mato Grosso do Sul nos últimos anos. Em 2019, outros nove indígenas que trabalhavam na limpeza da pastagem para o gado foram resgatados no município de Aquidauana.. Recentemente, Parron recebeu um vídeo de um deles: “Estou fazendo um agradecimento aos homens do Ministério do Trabalho. Hoje nós não queremos ver gente mais escravo como a gente na fazenda. Eu sou indígena, eu sou um cidadão”.
Em 2016, uma operação de fiscalização resgatou 44 trabalhadores da aldeia Caarapó. Houve ainda uma quarta ação, mas com indígenas paraguaios, na fronteira com o Brasil, em 2013.
Na década de 1990, o presidente da Associação de Trabalhadores Indígenas do Mato Grosso do Sul, José Carlos Pacheco, lembra que eram frequentes os resgates de indígenas nas usinas de cana de açúcar. “Chegaram a encontrar quase 900 trabalhadores escravizados em um dia de operação”.
Pacheco também recorda do grupo de trabalhadores Guarani e Kaiowá que foram aliciados, em 2016, para uma fazenda no Pantanal, acreditando que teria alojamento, mas era um barracão para dormir e só arroz e feijão nas refeições. “Eles tomavam água verde, a mesma do gado. Foram acorrentados, eram vigiados por um segurança. Depois conseguiram fugir da fazenda, andaram cinco dias à pé até chegar a uma cidade”, descreveu Pacheco.
A contratação de indígenas para trabalho em fazendas tem particularidades que precisam ser levadas em consideração, justamente porque o Brasil tem histórico de colonização e exploração desses povos. “Com esses trabalhadores, há dificuldades com a língua e também com a maneira como o indígena é interpretado”, afirma Pacheco, que representa os trabalhadores indígenas na Comissão Permanente de Fiscalização das Condições de Trabalho no Estado, composta por várias entidades, entre eles o Ministério Público.
No mês passado, a Repórter Brasil revelou que o trabalho em plantações e em frigoríficos é o principal responsável pela contaminação e rápida disseminação da covid-19 nas aldeias Kaiowá e Guarani do Estado. Por necessidade, muitos indígenas continuam sendo obrigados a saírem das aldeias para trabalhar, o que coloca em risco as comunidades.
Mais gente, menos terra
A população indígena no Mato Grosso do Sul é de 80.459 habitantes, distribuídos em 29 municípios, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai-MS) — um aumento populacional de 48% nas aldeias em duas décadas. Hoje, cerca de 10 mil desses indígenas são trabalhadores — principalmente do agronegócio –, segundo Pacheco.
A população cresceu, mas seus territórios não. Muitos sobrevivem com dificuldade em beiras de estrada e fundos de fazenda. Enfrentam conflitos com fazendeiros, donos da maior parte das terras. Enquanto cada Guarani e Kaiowá vive em média com 1 hectare de terra, 58 políticos do Estado contam com 1.351 hectares per capita em propriedades rurais, segundo o site De Olho nos Ruralistas.
Indígenas lutam pelo direito de viver segundo seus costumes e tradições, com recursos naturais, como garante a Constituição. “Mas falta espaço para o índio viver com suas famílias, falta espaço para plantar”, acrescenta José Carlos Pacheco, destacando a diferença das aldeias no Estado em relação às comunidades indígenas da Amazônia.
Processos se arrastam há anos para demarcações de áreas tradicionais, muitos deles judicializados por agricultores. No Estado, 115 Terras Indígenas estão com pendências para finalização de demarcação, segundo levantamento do Cimi.
Enquanto isso, eles dependem de políticas assistenciais e se sujeitam aos trabalhos degradantes que empresários do agronegócio oferecem. A região têm índices altos de suicídio indígena, morte de crianças por desnutrição e assassinatos.
O relatório do Cimi sobre violência contra os povos indígenas de 2018, identificou 38 assassinatos de indígenas naquele ano apenas no Mato Grosso do Sul, e 611 suicídios no Estado em 13 anos.
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Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas, de forma remota e sigilosa, no Sistema Ipê.
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Joana Suarez
Data original da publicação: 09/07/2020