Sem casa dentro de casa

Frances McDormand em “Nomadland”. Fotografia: Searchlight Pictures/Everett

Glaucia Campregher

O filme Nomadland – ganhador do Oscar de melhor filme de 2021 – apesar do consenso a seu respeito no quesito de qualidade artística, gerou certa controvérsia quanto ao seu teor ideológico. Neste segundo âmbito, o filme pode ser interpretado de duas maneiras a nosso ver. A primeira, vê o filme como quase apolítico, a segunda o vê como super político. Apresentaremos ambas aqui e os leitores que façam seus balanços e sínteses. Comecemos pela primeira.

O filme, como sabemos, foi baseado num livro cheio de histórias reais [1] e a diretora, Chloé Zhao, que gosta de trabalhar com não atores, usou pessoas que de fato vivem as vidas no filme retratadas. O que vemos no filme é a vida de norte-americanos empobrecidos que, mesmo com certa idade, se veem sem casa e forçados a trabalhos temporários país afora, o que torna viver em trailers algo prático. E também, pelas lentes e opções de roteiro do filme, algo interessante, charmoso e até romântico. Afinal, os dois personagens que mais conhecemos, Fern (a protagonista, interpretada por Frances McDormand) e Dave, além de se envolver amorosamente, têm famílias com condições materiais e disponibilidade afetiva para acolhê-los. Não deve ser o caso da maioria dos nômades. Fora isso, a vida de acampamento em acampamento mostra, além das riquezas naturais testemunhadas por quem está na estrada, uma riqueza humana incrível quando se estacionam os trailers. Apesar de um “perrengue” aqui e ali, o que sobressai é a incrível solidariedade entre os membros dos grupos de nômades.  Talvez isso sim corresponda bastante à realidade, até porque, pra quem só tem isso, isso deve receber mesmo muito investimento pessoal e do grupo. Mas, ressaltamos, isso é o único que se tem! E, no filme, é o único que é mostrado. Mesmo a morte quando vem, aparece naquilo que tem de comemoração de uma vida bem vivida que tratamento médico algum poderia prolongar, não das dificuldades de obter qualquer tratamento. Bem sabemos que se na crise de 2008 o que quebrou as famílias norte-americanas foram seus empréstimos imobiliários, a impossibilidade em arcar com os custos de uma saúde quase totalmente privada é o motivo de dois terços das falências de indivíduos nos Estados Unidos. Vemos que Dave deve se submeter a uma cirurgia de emergência, mas a família não discute ou demonstra qualquer preocupação a respeito. Não estamos dizendo que o filme deveria ser um remake de Daniel Blake, mas apenas que um comentário aqui e ali cairia bem, e eles devem existir aos montes no livro [2].

Numa segunda chave de leitura, o que o filme mostra é algo super político, pois une quatro dimensões do nosso ser e viver, humano, nesse planeta. O que significa dizer, coletivo. São elas: a dimensão onde nos tornamos espécie, onde construímos civilizações, nações e famílias. Permitam-nos uma rápida digressão para desenvolvermos esse ponto.

Nós humanos somos nossos vínculos, uns com os outros, com os demais seres e com o ambiente inteiro. Por isso mesmo não temos uma natureza “assim ou assado”. Somos o que vamos construindo, ao longo do tempo e em determinados espaços. Assim é que há construções de milhões e milhares de anos que envolvem o planeta inteiro e que são relativas a nossa espécie; outras vão de centenas a milhares de anos e se dão dentro de espaços continentais, que são as relativas às civilizações; outras demandam de dezenas a centenas de anos em espaços ainda mais delimitados, que são as que construímos como comunidades; e, por fim, as que cabem nas dezenas de anos de nossas vidas, e se dão nos espaços que podemos habitar com nossas famílias e outros indivíduos com os quais construímos relações pessoais. Esses quatro registros são mutantes, nenhum deles é estático, ainda que a mudança se dê em ritmos diferentes em cada um deles. Mas, o mais importante é que se influenciam mutuamente. Pode até ser que vejamos a escala maior, a do planeta e da espécie, como algo mais perene ou imóvel, e que toda a mudança se dê na escala menor, a dos indivíduos em seus países e lares. Mas se olharmos bem, também pode parecer o oposto, que tenhamos pouca ou nenhuma liberdade de movimento na escala menor e toda a mudança se dê nas escalas acima de nossas cabeças. Mas, de fato, a mudança se dá na interferência cruzada destas esferas umas com as outras, ainda que seja verdade que haja momentos históricos cruciais onde mais sofremos do que provocamos mudanças e outros em que se dá o oposto. 

Assim é que podemos imaginar nossos antepassados, recém saídos das savanas africanas, como nômades ancestrais que sofriam absurdamente com as mudanças do planeta ao redor, enquanto que o que podiam fazer era simplesmente deslocar-se. Contudo, as pequenas mudanças incrementais que cada grupo realizou, por exemplo no trato com a comida (seu cozimento e armazenamento)[3], aumentaram não apenas suas chances de sobrevivência na escala menor, mas a sua forma de se organizar como grupo. O que ao longo do tempo, e no cruzamento com outras micro-ações (como o exercício da fofoca tão enfatizado por Harari no seu “Sapiens – uma breve história da humanidade”), vai dar origem às organizações religiosas, políticas (como os Estados nacionais) e outras, nas quais os humanos atuam na escala intermediária. Por fim, todo o desenvolvimento posterior da humanidade nos levou a que, nos últimos séculos, sejamos os maiores causadores da mudança ambiental. Hoje, não somos nós que sofremos com o planeta, mas o planeta que sofre conosco.

Por que tudo isso nos vem à mente para falar de Nomadland? Porque essas escalas estão todas ali, brilhantemente sintetizadas em imagens abraçadas por poucas palavras. Seus personagens estão vivendo as décadas finais de suas vidas e alguns nos contam como chegaram até ali, mas o fundamental é vê-los em situações solitárias, familiares, estradeiras, planetárias. Essas circunstâncias por sua vez ilustram o ponto umbilical da crise quadridimensional dos nossos tempos. Nossa crise atual não é uma mera crise econômica do capitalismo, ela não coloca em risco só a reprodução, sem maiores solavancos, desse sistema, mas coloca em risco a civilização atual e mais a espécie humana! De fato, essa crise múltipla, resulta dos sucessos e insucessos, desse sistema econômico, que se generalizou pelo planeta. Resulta do somatório de crises passadas desse sistema que acabou por manietar os Estados nacionais que, desde os primórdios do capitalismo, atuava em “duplo sentido” (como dizia Polanyi) ajudando o capital a se reproduzir e expandir, mas também minorando os efeitos sociais perversos que esta reprodução gerava. Hoje, poucos Estados conseguem compensar as desigualdades de renda, riqueza e poder, a destruição predatória da natureza, os efeitos deletérios sobre a psique dos cidadãos. E se alguns o conseguem em seus territórios, é que exportam para outros a desgraça que conseguem evitar nos seus. 

Em Nomadland, as belíssimas paisagens de neve, montanhas e mares, estão ali para marcar a escala do planeta – nos mostrando como ele pode ser desfrutado quando não estamos a correr com a vida. E estão ali também – e julgados! – a escala civilizatória, a nacional e a familiar. A escala civilizatória aparece quando, em contraste com as lindas paisagens abertas, temos as opressivas cenas fechadas dentro de galpões da Amazon onde vemos pessoas com mais de 60, e até 70 anos, tendo de trabalhar para se manter, vivendo num trailer. É importante lembrar que, mesmo antes do capitalismo, as civilizações que se mostram as mais avançadas são aquelas que não precisam descartar aqueles que nascem doentes e os que envelhecem. Já no capitalismo, à escala nacional, desde o pós-guerra tínhamos universalizado o direito dos idosos a um mínimo de dignidade, inclusive em países retardatários. (No Brasil, por exemplo, é marcadamente importante o direito à aposentadoria rural daqueles que trabalhavam nas roças desde crianças). Na escala familiar, que bom que o filme nos mostre que ela não precisa ser exclusivamente a da família consanguínea. Que bom pensarmos que podemos fazer laços de amizade, em qualquer idade, mesmo que sejam fluidos e pouco permanentes. Mas que ruim que esta seja a única alternativa. 

Ao fim e ao cabo, pode-se ver nessa tentativa do filme de romantizar a saída nômade – mostrando mais os ganhos sociais que os problemas (de sociabilidade e outros) que ela acarreta, mostrando mais de perto personagens que tinham uma predisposição por ela (e até uma alternativa a ela) que outros que foram forçados a ela, e mesmo apelando para o amor como salvação de vidas individuais presas na pobreza e na solidão – quão grave é nossa crise atual. Se o filme exagera enfim, as vantagens de estarmos soltos no espaço, é que admite quão sem raízes estamos. 

Notas

1 O filme é uma adaptação de Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century (Nomadland: Sobrevivendo aos EUA no século 21), um livro de 2017 da jornalista americana Jessica Bruder sobre o fenômeno das pessoas mais velhas que, no contexto da Grande Recessão de 2008, adotaram um estilo de vida nômade em busca de empregos sazonais em todo o país.

2  Quem leu comente aqui!!!!

3  Veja-se o que diz Levis-Strauss na obra “O cru e o cozido”, ou a cientista brasileira Suzana Herculano-Houzel que estuda a evolução do cérebro humano. Aqui uma apresentação introdutória de seu trabalho  https://www.youtube.com/watch?v=PWnM53F6SNY

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