Seguridade social e o monstro financeiro chamado capitalização

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Fotografia: Joana Berwanger/Sul21

O ponto alto dos debates iniciais sobre a reforma da Previdência se deu em torno da tentativa de colocar em prática um novo regime de previdência, o da capitalização individual.

Deise Lilian Lima Martins

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 22/04/2024

Essa tentativa, que representava uma porta aberta à privatização da Previdência, provocou muitas incertezas e foi bastante contestada, especialmente pelo fato de que experiências de capitalização individual na América Latina foram um fracasso, não geraram nenhum patamar de proteção social para as trabalhadoras e trabalhadores, além de resultar no gigante enriquecimento das administradoras dos recursos dos trabalhadores.

Mas por que trazer esse tema à tona se a capitalização não foi aprovada nesta reforma da Previdência? Vejamos.

No dia 12 de abril deste ano, em Santiago do Chile, foi realizado o “Seminário Internacional em Defesa da Seguridade Social”, contando com representantes do Brasil, Espanha, México, Colômbia, Argentina e Chile para debater seus modelos de seguridade social, públicos e privados. Esse encontro promoveu reflexões sobre a situação da América Latina no que se refere aos sistemas de seguridade social, no qual se insere o debate sobre a previdência ou sistema previsional, restando muito evidente a necessidade de pararmos de analisar a proteção social de forma endógena. No geral, raramente olhamos os nossos países vizinhos para ao menos saber o que se passa em relação à temática. Olhamos para alguns países europeus e sonhamos com um modelo de bem-estar social datado historicamente e que não existe mais; e, ainda assim, se apresenta como uma promessa na América Latina, inalcançável enquanto perdurar o modo de produção capitalista.

O estágio atual de desenvolvimento do capitalismo dispensa esse conteúdo jurídico protetivo, a ideologia burguesa já está tão consolidada, é dizer, todos os poros da vida são afetados pela subsunção do trabalho ao capital (CORREIA, 2021), que os avanços protetivos no conteúdo normativo deixaram de ser uma necessidade para o capital, enquanto garantia de sua reprodução e de arrefecimento das lutas sociais. Muito pelo contrário, a redução dessas políticas está na ordem do dia e a capitalização, ou seja, as formas de privatização dos sistemas de seguridade social não param de avançar, mesmo diante da agudização das consequências nefastas para a classe trabalhadora nos países que possuem a capitalização individual.

Os modelos privados avançam e se tornam grandes monstros financeiros para os governos. Monstros porque a rentabilidade para o capital financeiro por meio das administradoras privadas dos fundos faz com que estas se edifiquem como potências que detêm nas mãos grande parcela da riqueza produzida pela classe trabalhadora no país.

Entre os aspectos debatidos no Seminário, Luis Mesina, professor, sindicalista e porta-voz da Coordinadora NO+AFP, questionou o porquê de defenderem no Chile a seguridade social, já que ela não existe no país. Segundo ele, essa defesa é forte, pois um dia já tiveram um modelo social articulador da justiça social, relembrando os avanços obtidos no governo de Salvador Allende. O que se vê é que a organização da classe trabalhadora no Chile contemporâneo de Allende era tão grande e forte que a ofensiva também no campo da proteção social foi violenta e avassaladora com a adoção do sistema de capitalização juntamente com as administradoras de fundos de pensão, as AFPs.

Saul Escobar, professor e presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Estudos Obreiros Rafael Galván, evidenciou que no México o governo gasta cada vez mais com as pensões após a privatização, pois diante da ineficiência do sistema capitalizado, o Estado necessita arcar com os custos das pensões não contributivas, que acabam sendo a sustentabilidade das famílias, além de cobrir o déficit de sistemas não privatizados, como é o exemplo das forças armadas que têm um sistema específico, não privado. Ou seja, o gasto com um sistema privado é enorme quando comparado com um sistema público robusto.

Já Camilo Santos, advogado e representante do Sindicato Único Nacional de Trabajadores del Sector Financiero y Administradoras de Pensiones da Colômbia, destacou que existe uma “propaganda” promovida por parte dos defensores do sistema privado, assinalando que as pessoas não conseguem benefícios no âmbito das administradoras públicas, porém, os dados mostram que são as administradoras privadas que inviabilizam a concessão da maior parte dos benefícios. No caso da Colômbia chama a atenção esse dado: no regime de administração pública, há 6,4 milhões de pessoas filiadas, com 2,3 milhões de cotizantes, sendo 1,2 milhão de pensionados; já no regime administrado pela iniciativa privada, são mais de 14 milhões de afiliados, cerca de 6 milhões de cotizantes e pouco mais de 121 mil pensionados. Isso evidencia que, onde a iniciativa privada está totalmente, a imensa maioria dos valores dos fundos não estão sendo revertidos para as trabalhadoras e trabalhadores.

Em nenhum cenário as experiências com sistemas privados de seguridade social ofertaram amparo minimamente protetivo para a classe trabalhadora, muito pelo contrário, por onde passam deixam as consequências da miséria. Essa é a lógica intrínseca das administradoras privadas, pois expressa de forma cristalina que o mercado comanda todo o processo.

A capitalização é um monstro para os governos dos países que já a têm, pois o controle da riqueza diretamente pelas empresas privadas é tão grande que há uma espécie de rendição ao sistema financeiro, de modo que enfrentar esse poderio econômico representa risco político que nenhum governante está disposto a correr, seja qual for o espectro político. A capitalização é, igualmente, um monstro nos países em que ela ainda não foi adotada, ou timidamente aplicada, pois está sempre assombrando os sistemas públicos.

No caso do Brasil, o regime de capitalização, previsto no texto inicial da última reforma da Previdência, foi retirado do texto final considerando a enorme pressão política, especialmente diante do gigantesco custo de transição. Ou seja, a ameaça da capitalização sempre está presente, à espreita, para ser concretizada.

E mesmo antes dessa reforma recente, o “projeto” de seguridade social esculpido na nossa Constituição de 1988 tem sido objeto de reformas constantes (MARTINS, 2018), reduzindo-se o seu campo teoricamente protetivo. A Constituição vigente é considerada muitas vezes como um “projeto constitucional inconcluso”, ainda em disputa (SILVA, 2021). Contudo, não se trata de um modelo não concluído, mas sim de um modelo jurídico apto a ser conformado constantemente no âmbito do seu conteúdo, com base nos novos estágios do modo de produção capitalista (SILVA, 2021), tanto é que logo após a sua criação advieram normas regulamentadoras (Leis 8.212 e 8.213 de 1991) restritivas da aparente amplitude do texto constitucional, tendo sido seguidas de diversas outras regulamentações e, inclusive, reformas constitucionais.

A partir de todo esse debate dos elementos concretos apresentados no Seminário, um grande desafio nos espera. No atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, no qual este não está mais preocupado em fazer a roda girar, ou seja, em assegurar a compra e venda da força de trabalho porque já incorporada pela ideologia burguesa, a extrema precarização da condição de trabalho também deixa de ser uma preocupação. Mas não é só isso, além de deixar de ser uma preocupação, é viabilizada a consolidação dessa forma flexível da compra e venda da força de trabalho (ORIONE, 2021), produzindo cada vez mais informalidade e precarização do trabalho.

Ademais, na medida em que há o acirramento da luta de classes a tendência é que a figura do Estado (o público) apareça mais, por exemplo, colocando em prática uma concepção de Estado forte e com maior proteção social, sendo que, pelo contrário, com a menor intensidade da luta de classes, há uma tendência de que o privado apareça mais, ficando mais difícil divisar onde começa o público e em que momento está presente o privado (CORREIA, 2021).

Em um cenário de concreta informalidade e precarização do trabalho, observada em diversos países, especialmente, na América Latina, realidade esta que representa o atual estágio de configuração da compra e venda da força de trabalho, temos um quadro muito mais dificultoso para executar, por meio de reformas, a reversão dos sistemas de capitalização nos países que a possuem. Isso porque, a tendência do atual estágio do capitalismo é a redução do que se entende por público e o agigantamento do que se entende por privado. Da mesma forma, nos países em que a capitalização ainda não logrou em ser aplicada, ela assombrará o que ainda resta de público, com a sua tendente implementação.

Com isso, para além de continuarmos comemorando a não aprovação do regime de capitalização na última reforma da Previdência no Brasil, é imprescindível relacionarmos a seguridade social com a exploração da força de trabalho e os estágios de desenvolvimento do modo de produção capitalista, atraindo de uma vez por todas o horizonte da luta de classes para se questionar a forma que tem se dado a proteção social, sobretudo, na América Latina.

Referências

MARTINS, Deise Lilian Lima. Delimitação e desdobramentos da opção constitucional para a organização da política previdenciária no Brasil. In: Flávio Roberto Batista; Julia Lenzi Silva; Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP). (Org.). A previdência social dos servidores públicos: direito, política e orçamento. 1 ed.Curitiba/PR: Kaygangue, 2018, v. 1, p. 79-98.

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Subsunção hiper-real do trabalho ao capital e estado: análise da justiça do trabalho. Revista LTr – Legislação do Trabalho, São Paulo, ano 85, nº 5, p. 521-530, mai, 2021.

SILVA, Júlia Lenzi. Forma Jurídica e Previdência Social no Brasil. 1. ed. Marília-SP: Lutas Anticapital, 2021.

Deise Lilian Lima Martins é mestre e doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo da USP, professora assistente no Grupo de Estudos sobre Seguridade e Marxismo da USP e autora do livro Mulheres e Previdência Social: equivalência e crítica à forma jurídica. E-mail: deisellmartins@ gmail.com.

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