Se são tributos sobre o consumo, por que os consumidores não são ouvidos?

Fotografia: Towfiqu barbhuiya/Unsplash

Não há nenhuma dúvida de que o maior problema do sistema tributário brasileiro não é a sua complexidade, mas a sua regressividade, que produz o aprofundamento das desigualdades sociais e impõe sérias dificuldades para o desenvolvimento econômico.

Dão Real Pereira dos Santos

Fonte: IJF, com RED
Data original da publicação: 14/04/2023

São os consumidores que pagam os tributos sobre o consumo, não as empresas! Essa obviedade parece estar passando despercebida nos debates sobre a reforma tributária, pois as discussões sobre PEC 45/2019 e PEC 110/2019, que estão tramitando no Congresso Nacional, só contemplam as opiniões dos setores empresariais. Ambas tratam apenas da reforma dos tributos sobre o consumo. Resumidamente, elas propõem a unificação de 5 tributos, ICMS¹, dos estados, ISS², dos municípios, e PIS, COFINS³ e IPI4, da União, em um único, denominado de IBS, Imposto sobre Bens e Serviços, no caso da PEC 45, ou em 2, IBS, dos estados e municípios, e a CBS, Contribuição sobre Bens e Serviços, da União, no caso da PEC 110.

Alguns ajustes estão sendo negociados, especialmente, acerca das alíquotas e das exceções que poderiam ser aceitas. De qualquer forma, o argumento central dessas duas propostas é a simplificação, tratada como uma espécie de panaceia para o desenvolvimento econômico. Se for verdade, só saberemos mesmo daqui a uns dez anos, pois até lá teremos, como transição, a convivência de todos os tributos antigos, que serão substituídos, com o imposto ou os impostos novos que os substituirão. Essas duas propostas contam com o apoio de praticamente todos os setores empresariais, embora quase todos tenham ressalvas pontuais.

Nada se fala, no entanto, sobre tributar os super-ricos, ou sobre colocar os ricos no Imposto de Renda, como propôs o presidente Lula, durante sua campanha eleitoral. Não há nenhuma dúvida de que o maior problema do sistema tributário brasileiro não é a sua complexidade, mas a sua regressividade, que produz o aprofundamento das desigualdades sociais e impõe sérias dificuldades para o desenvolvimento econômico.

Para a maior parte da população brasileira, que são os consumidores, a reforma mais importante seria aquela que promovesse o deslocamento da carga tributária dos mais pobres para os mais ricos, e isso só seria possível elevando-se a tributação sobre as altas rendas e grandes riquezas e reduzindo-se a tributação sobre as rendas mais baixas e sobre o consumo. A correção da tabela do imposto de renda combinada com a volta da tributação dos lucros e dividendos distribuídos e o fim dos juros sobre o capital próprio, e a implementação do Imposto sobre Grandes Fortunas produziriam esse efeito de forma efetiva e no curtíssimo prazo e sem modificar a Constituição Federal. Esse debate, porém, parece ter sido novamente interditado pela retomada da pauta tributária que interessa mais aos empresários.

Voltamos, então, ao tema da tributação do consumo. Nas discussões e nos artigos que se proliferam diariamente nos veículos de comunicação, vai se construindo a percepção de que estamos tratando de tributos sobre as empresas e que alguns setores econômicos poderiam ser mais onerados do que outros, mas isso é não é verdadeiro. As propostas de reforma dos tributos indiretos têm como objetivo central fazer com que as empresas sejam totalmente desoneradas, independentemente do setor econômico. O novo imposto sobre o consumo deverá atingir unicamente os consumidores.

A lógica da reforma, portanto, é fazer com que nenhum tributo indireto seja absorvido na cadeia produtiva, de comércio ou de serviços e, para isso, propõe que a não cumulatividade seja plena e irrestrita. Isso significa dizer que todos os tributos pagos na aquisição de insumos ou na contratação de serviços, ao longo de toda a cadeia de negócios, serão compensados nas etapas subsequentes, até que o consumidor final pague o valor integral. As empresas serão apenas repassadoras e não pagarão nenhum centavo deste tributo. Portanto, a reforma tributária que está sendo discutida no Congresso Nacional não trata da tributação das empresas, mas sim, de desoneração total das empresas em relação a estes tributos.

Eventuais discursos dizendo que o setor A vai pagar mais tributo do que o setor B não são verdadeiros, pois quem pagará mais ou menos tributos serão os consumidores, em razão do tipo de bens e serviços que consomem. No entanto, é interessante observar que esses contribuintes de fato não estão sendo ouvidos nem considerados nos debates e, se estivessem, estariam defendendo que primeiro é preciso ampliar a tributação dos super ricos e reduzir os tributos sobre o consumo.

Evidentemente que uma mudança na estrutura da tributação sobre o consumo modificará os preços relativos dos produtos e serviços, e isso já está ficando evidente em vários artigos que demonstram que os preços dos alimentos poderão crescer, assim como de alguns serviços, o que reforça ainda mais a importância de se democratizar o debate, pois se trata de uma redistribuição de carga entre os consumidores na sociedade.

Mas qual seria a diferença em relação à situação atual? A diferença substancial é a premissa da incidência no destino, o que é desejável, pois é no local do consumo que se concentram as maiores demandas de políticas públicas. Em relação ao interesse mais imediato do setor empresarial, a existência de vários tributos incidindo sobre o consumo ou o faturamento faz com que nem todos os tributos pagos numa determinada cadeia de negócios sejam, de fato, recuperados ou compensados nas etapas posteriores, onerando, assim, seus custos. Por exemplo, se na fabricação de um produto, a empresa contrata alguns prestadores de serviços e paga o ISS para a prefeitura municipal, este tributo não poderá gerar crédito para a empresa quando ela for vender o produto e recolher o ICMS devido. Logo, o ISS acabou sendo incorporado ao custo de produção. Isso acontece também com outros tributos, como o IPI, o PIS e a COFINS, em algumas situações específicas. Dessa forma, uma parte dos tributos indiretos se incorporam ao custo de produção ou de aquisição e outra parte pode ser recuperada na forma de compensação ou de restituição.

Quando os produtos são vendidos, se cobra do consumidor final os impostos que incidem sobre o preço final, mas a empresa vai recolher apenas a diferença entre esse tributo e os tributos que incidiram na aquisição dos insumos e que geraram créditos. Explicando melhor: uma empresa adquire um produto para revenda por 100, mais 10 de imposto, totalizando 110. Se ela revende o produto por 150, o comprador vai pagar 165, que corresponde ao preço do produto mais 15 de imposto. Se o tributo da aquisição for totalmente recuperável, a empresa recolheria ao Estado apenas 5, que se refere aos 15 da venda, menos os 10 da aquisição, mas o Estado recebeu os 15 que incidiram na venda final, que corresponde aos 10 da etapa anterior e os 5 do saldo final.

Percebam, portanto, que, se fosse possível aproveitar como créditos todos os tributos incidentes nas etapas anteriores, o valor recolhido pela empresa seria menor do que nas situações em que somente uma parte dos tributos das etapas anteriores pode ser compensada.

Evidentemente que todos os tributos pagos, em qualquer etapa, se convertem em recursos públicos, que são utilizados para promover as políticas públicas. A impossibilidade de compensação plena de todos os tributos das etapas anteriores, faz com que o valor recolhido ao final seja maior, logo, para manter o nível de arrecadação atual, com não cumulatividade plena, as alíquotas teriam que ser maiores do que as alíquotas atuais em que nem todos os tributos são compensados.

Independentemente do mérito, a garantia de não cumulatividade plena, que tem sido prometida pelas PEC 45/2019 e PEC 110/2019, implica redução de receitas públicas. Ainda que para os setores empresariais essa medida seja desejável, pois os preços finais dos produtos não carregarão nenhuma parcela de tributos indiretos, logo poderão ser inferiores aos preços atuais ou gerar lucros maiores, o fato é que haverá uma redução de receitas públicas, a menos que as alíquotas sejam aumentadas para promover essa compensação.

Alguns dirão: de qualquer forma, é o consumidor que vai pagar esses tributos, sejam eles compensados ou não pelas empresas, pois os que não foram compensados estarão incorporados no custo e, portanto, irão para o preço final de venda. Isso é parcialmente verdadeiro, pois a elevação do custo de produção ou de aquisição pode não ser transferida integralmente para os preços nos casos de concorrência mais acirrada, podendo implicar redução dos lucros empresariais. Já os tributos creditáveis serão sempre transferidos para o consumidor.

Também se pode alegar que o Estado não sofrerá nenhuma perda e isso também é verdadeiro, desde que as novas alíquotas sejam suficientes para compensar a perda de receita decorrente da não cumulatividade plena. Já no caso das exportações, a não cumulatividade plena fará com que os preços finais não carreguem nenhum resíduo tributário, e neste caso, tendo em vista a não incidência de tributos nas saídas, o Estado não receberá nenhum centavo de tributos incidentes na cadeia produtiva.

Nas exportações, portanto, não há forma de compensar as perdas de receitas públicas decorrentes da não cumulatividade plena. Para este setor, portanto, eventual compensação pela desoneração promovida só poderia ser alcançada pela elevação de tributos diretos, como o IRPJ5 e a CSLL6, ou pela elevação da arrecadação sobre outros setores.

Em relação às exportações, ainda, é preciso lembrar que o tratamento proposto nas duas propostas contraria inúmeras demandas que vinham se acumulando ao longo do tempo de revisão da Lei Kandir, uma vez que a desoneração por ela produzida sobre exportação de produtos primários gerou perdas importantes de recursos financeiros para os estados exportadores, além de constituir um fator de desestímulo à industrialização. As PEC 45 e PEC 110 consolidam definitivamente essa desoneração total do setor exportador.

Os setores empresariais que defendem a reforma da tributação sobre o consumo querem, em primeiro lugar, garantir a desoneração completa das suas cadeias produtivas ou comerciais. Em segundo lugar, não serem prejudicados em seus negócios por elevação de alíquotas sobre consumidores de seus produtos ou serviços. Buscam, portanto, a maximização dos seus lucros. Do outro lado estão os consumidores, que querem elevar a tributação dos super ricos, que são, majoritariamente, os beneficiários dos lucros das empresas, e reduzir os tributos sobre o consumo que oneram muito mais os mais pobres do que os mais ricos.

Enfim, se os ricos podem decidir sobre os tributos dos pobres, que os pobres decidam sobre os tributos dos ricos.

Notas

1 Artigo 155, inciso II da CF/1988 – Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

2 Artigo 156, inciso III da CF/1988 – Imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

3 Artigo 195, inciso I, letra b da CF/1988 – Contribuições sociais sobre a receita ou o faturamento. PIS/PASEP
(Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e COFINS (Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social).

4 Artigo 154, inciso IV da CF/1988 – Imposto sobre Produtos Industrializados.

5 Imposto de Renda sobre a Pessoa Jurídica.

6 Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Dão Real Pereira dos Santos é Presidente do Instituto Justiça Fiscal, Diretor de Relações Internacionais e Intersindicais do Sindifisco Nacional – Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil.

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