O Brasil optou por um caminho diferente do que sempre martelou a ortodoxia conservadora no quesito reajuste do salário mínimo e nada do que havia sido anunciado pelo catastrofismo se verificou.
Jaciara Itaim
Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 20/02/2014
Os fundamentos da política conservadora sempre demonizaram qualquer tipo de iniciativa política que viesse a questionar a estrutura que dá origem às desigualdades sociais e econômicas acentuadas em nossas terras. Há quem sustente que essa herança vem ainda da época colonial, em especial na construção da retórica a favor da manutenção da própria escravidão como base da organização da sociedade luso-brasileira.
Há mais de dois séculos atrás, o movimento abolicionista já enfrentava enormes dificuldades para se afirmar politicamente. Havia muitos obstáculos para convencer as elites da sociedade a respeito da necessidade de se romper com aquele modelo atrasado e injusto. Vale recordar que um dos principais argumentos dos defensores do “status quo” era que nosso país seria inviabilizado economicamente caso a força de trabalho tivesse que passar a ser remunerada. De acordo com tal raciocínio, os custos de produção seriam elevados a níveis que tornariam impossível a sobrevivência da Nação no cenário internacional. Uma loucura!
As forças das classes sociais envolvidas e beneficiárias do regime escravocrata retardaram o quanto puderam a entrada do Brasil na ordem econômica liberal-capitalista. A ameaça do caos iminente era o grande trunfo nas mãos dos que lançavam o discurso catastrofista a respeito da incapacidade de se promover uma mudança tão “radical”. Tanto que o longo processo que resultou na aprovação da Lei Áurea foi precedido pela proibição do tráfico, pela liberdade concedida aos descendentes de escravos nascidos aqui na colônia e aos sexagenários, entre outras medidas protelatórias. Isso para não falar na existência de práticas atuais de trabalho escravo, ainda existentes em pleno terceiro milênio!
Escravidão e salário mínimo: a oposição do catastrofismo
Esse tipo de opinião rudimentar e tosca a respeito da dinâmica das relações sociais permanece presente até os dias de hoje. O estabelecimento de medidas de recomposição de valores de referência para a política distributiva – a exemplo do salário mínimo e dos benefícios da previdência social – sempre assustaram as classes sociais mais abastadas por aqui nas terras de Pindorama. Não é por outra razão que ambas as inovações foram introduzidas por Getúlio Vargas no contexto do Estado Novo, em um complexo processo político onde as elites foram obrigadas a aceitar as imposições do então ditador.
A resistência a incorporar alterações modernizadoras nas regras de definição dos rendimentos do trabalho é uma característica também marcante por aqui. Toda vez que se discutem medidas de valorização do salário mínimo, volta uma tensão acentuada no debate político-parlamentar. E vejam que nem se trata aqui de retornar aos valores da cesta básica, tal como previsto nos instrumentos criados por Vargas na década de 1930. Isso porque segundo os cálculos do Dieese, o valor atual do salário mínimo deveria ser por volta de R$ 2.750, com o intuito de assegurar padrão de vida similar de uma família de um trabalhador nos dias de hoje.
Houve ganho real e o Brasil não quebrou
Quando Lula venceu as eleições presidenciais em outubro de 2002, a questão do salário mínimo estava na ordem do dia. Isso porque uma das suas promessas da campanha era dobrar o valor dessa remuneração ao longo dos quatro anos do mandato. Não chegou a tanto, mas se aproximou. Assim, a evolução dos reajustes anuais foi de tal ordem que saiu de R$ 200 em 01 de janeiro de 2003 e chegou a R$ 350 após quatro anos.
Em seguida, durante o segundo mandato, o governo propôs uma regra mais institucionalizada para os aumentos anuais. Assim, os valores seriam calculados pela reposição da inflação do ano anterior e um aumento real baseado no crescimento do PIB do país. Com isso, Lula terminou seu segundo mandato com um salário mínimo na faixa de R$ 510. Dilma manteve a mesma sistemática e vai encerrar 2014 com um piso da remuneração dos trabalhadores equivalente a R$ 724.
Os números sugerem que o reajuste nominal, depois de 12 anos de governo, atingiu um percentual superior a 200%. Isso corresponde a um ganho real, descontada a inflação do período, de 72% ao longo do período. Ainda que os rendimentos obtidos no sistema financeiro tenham sido muito superiores – em razão das taxas de juros estratosféricas definidas pela autoridade monetária –, o fato é que a renda do trabalho também obteve ganhos reais.
Reajuste no mínimo como proteção contra a crise
Outra reivindicação histórica do movimento sindical era a referência simbólica de conquistar um salário mínimo que fosse equivalente a cem dólares norte-americanos. Essa plataforma de luta foi concretizada em um Projeto de Lei do deputado e depois senador, Paulo Paim (PT/RS). Bombardeada pelos órgãos da grande imprensa como irresponsável e populista, a proposta rapidamente foi ultrapassada pela própria realidade. A dinâmica econômica, onde se faziam presentes os reajustes do mínimo e a valorização irresponsável da nossa taxa de câmbio, fez com que o salário mínimo de 2002 (equivalente a US$ 57) superasse aquela barreira inimaginável de US$ 100 logo em 2005. Atualmente, nosso salário mínimo oficial equivale a algo próximo a US$ 300.
Ora, tais informações são mais do que suficientes para colocar por terra as ameaças chantagistas, sempre tão presentes no interior do discurso do catastrofismo. “O País não aguenta!”, “o Brasil vai quebrar!”, “o Orçamento da União não comporta!” e tantas outras manchetes e declarações de “especialistas” em economia financeira. O fato é que esse período – já superior a uma década – tem sido a evidência concreta de que uma política de redistribuição de renda pode incluir também reajustes reais no valor do salário mínimo.
Como essa remuneração oficial opera também como a referência para o estabelecimento do piso dos benefícios da previdência social, uma parcela importante da população brasileira se vê diretamente beneficiada pela regra de reajuste real. Esse processo proporciona um impulso para a manutenção dos níveis da demanda agregada interna no País e também para assegurar a própria arrecadação tributária. As famílias de renda mais baixa são as que pagam mais impostos, em termos proporcionais.
O Brasil optou por um caminho diferente do que sempre martelou a ortodoxia conservadora no quesito reajuste do salário mínimo e nada do que havia sido anunciado pelo catastrofismo se verificou. Pelo contrário, essa solução foi até importante para a saída da crise que se iniciou em 2008, pois tínhamos um mercado interno razoavelmente capaz de evitar que o País afundasse de vez na recessão.
Ampliar a pauta para outros temas “intocáveis”
Cabe agora continuar ousando em outros temas também considerados intocáveis pelo financismo, a exemplo da suposta unanimidade em torno da elevação da taxa oficial de juros. Para os oráculos da banca ela é a única saída para evitar problemas macroeconômicos. No entanto, está mais do que provado que não há risco de volta a patamares elevados de inflação, uma vez que o crescimento dos preços está monitorado e dentro da meta estabelecida. Assim, não cabe mais a receita de aumentar outra vez a Selic na próxima reunião do Copom, a ser realizada em 25 e 26 de fevereiro.
Outro tabu que também precisa ser enfrentado pelo governo é a “necessidade emergente” de geração de superávit primário. Trata-se de outra falácia criada pela ortodoxia conservadora, com o único intuito de assegurar recursos do Orçamento Geral da União para a realização das despesas financeiras da dívida. Leia-se: pagamento de juros e demais serviços do endividamento público. Corta-se nas despesas essenciais como saúde, educação, previdência e investimentos para gastar com a atividade parasita da esfera financeira.
Vale também lembrar a necessidade de um maior rigor do Banco Central em seu papel institucional de órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro. Isso significa definir patamares e limites para práticas como a do “spread” elevadíssimo praticado com a maior naturalidade pela nossa banca, com todo o apoio das autoridades públicas da área.
O Brasil não quebrou por ter adotado uma política de reajuste real no salário mínimo. Assim como também não se inviabilizou quando extinguiu oficialmente com o trabalho escravo lá atrás. Tampouco vai quebrar agora, se iniciar as mudanças necessárias nos itens mencionados acima. O que falta é coragem política e ousadia por parte daquel@s que foram eleit@s para promover as transformações tão necessárias e que beneficiem, de fato, a maioria da população.
O poder do financismo deve ser enfrentado de forma clara e aberta, sob pena de o governo permanecer eternamente refém de suas ameaças e chantagens.
Jaciara Itaim é economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.