Riqueza nas mãos de poucos está subestimada, diz cientista social

Após vários anos se dedicando ao estudo do “movimento sindical e seus esforços para melhorar a situação dos trabalhadores”, o cientista social Antonio David Cattani decidiu focar suas pesquisas nas classes abastadas, detentoras do capital, nos multimilionários, nos ricos, como ele chama os mundialmente privilegiados. Por que esta mudança? O professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) explica: “Constatando que todas as lutas operárias equivaliam a um trabalho de Sísifo, repetitivo e sem alterar a estrutura da distribuição de renda, decidi me voltar para outros agentes sociais”.

Cattani reconhece que poucos sociólogos seguem este caminho. A maioria estuda os pobres, por conhecerem sua realidade e dominarem seus códigos de comunicação.

Os ricos não costumam responder perguntas sobre a origem de suas fortunas e, por viverem num mundo desconhecido pela maioria dos mortais, se revelam prepotentes, afastando os pesquisadores. O editor da revista Sociologias, da UFRGS, no entanto, vem publicando artigos e organizando livros sobre o tema desde 2005.

Recentemente, lançou A riqueza desmistificada, editado em português e inglês, pela Marcavisual. Os dois textos que compõem o livro foram escritos em 2011, durante uma temporada de Cattani na Universidade de Oxford.

Como explana em A riqueza desmistificada e reafirma em entrevista ao Sul21, o cientista social constata que a riqueza concentrada nas mãos de poucos (menos de 1% da população mundial) é muito maior do que se imagina. Ela está subestimada, alerta.

Sul 21 – O senhor afirma que “a riqueza arcana tem um efeito atemorizador sobre a maioria dos cientistas sociais”. Como o senhor superou esse temor?

Sul 21 – A concentração da riqueza em mãos de poucos indivíduos é um fato iniciado com a industrialização ou ele faz parte da história da humanidade? A riqueza sempre veio e vem aliada ao poder político?

“Com raras exceções, a concentração da riqueza sempre esteve associada ao exercício do poder político.”

Cattani – Desigualdades na posse da riqueza existem há muitos e muitos séculos e, com raras exceções, a concentração da riqueza sempre esteve associada ao exercício do poder político. O sistema capitalista redefiniu as formas de extração e de uso da riqueza como capital segundo a lógica da acumulação permanente. Distinto de outras formas de dominação de cunho religioso ou tradicional, o capitalismo extrai parte da sua legitimidade em autoproclamadas virtudes de frugalidade, competência e eficiência.

Sul21 – A partir de que momento na história da humanidade passou a ser difícil saber a verdadeira origem das fortunas, da riqueza de uma minoria? O que diferencia a riqueza contemporânea da dos séculos passados? A de outros séculos não pode ser qualificada de arcana, enigmática, conhecida apenas por poucos?

Cattani – É impossível precisar, embora no pré-capitalismo as fortunas geralmente tivessem um caráter material discernível (terras, ouro, castelos etc). Com referência ao capitalismo contemporâneo, o montante das fortunas é uma verdadeira incógnita envolvendo, inclusive, dimensões imateriais, como é o caso da posse de bens de valor incomensurável. Por exemplo, quanto valem obras de arte de Andy Warhol ou Damian Hirst? Ações de empresas star up não negociáveis nas bolsas de valores? Direitos de propriedade de marcas famosas?

Sul21 – O senhor diz em A riqueza desmistificada que, atualmente, os “indivíduos concretos são substituídos por abstrações genéricas tais como as ‘corporações’, os ‘grandes bancos’ e, especialmente, o ‘mercado’”. Entre os três, parece que apenas “o mercado”, quando culpado por algo, não é individualizado, ninguém responde, é julgado, condenado ou absolvido. No caso de corporações e bancos há a individualização e já vimos alguns nomes responderem por grandes erros e irem para a cadeia. Por que o mercado é tão mais abstrato?

Cattani – Meu argumento principal é que os nomes de indivíduos concretos são santificados quando isso interessa (Steve Jobs, Bill Gates ou Warren Buffet), mas escamoteados quando se quer diluir responsabilidades. É comum encontrar no noticiário econômico manchetes do tipo, “os investidores reagiram negativamente ao novo imposto”; “o mercado sinaliza a possibilidade de retração”; “o capital externo deixa o país” etc. Os investidores, o onipotente e onisciente “mercado”, e o “capital externo” têm uma existência misteriosa, praticamente esotérica. Quem está por trás dessas declarações? Isso sem falar no logro que é a referência ao “capital externo”, controlado majoritariamente por nacionais a partir de paraísos fiscais. Banqueiros e CEOs ficam na cadeia menos de 24 horas. À exceção de Bernard Madoff, todos os responsáveis por grandes fraudes e também pela crise das subprime nos Estados Unidos continuam impunes e vivendo confortavelmente graças ao butim saqueado previamente. O que o documentário The Inside Job, de Charles Ferguson, denunciou em 2010 continua válido.

Sul21 – Em seu primeiro texto – Riqueza Arcana – o senhor enfatiza quatro pontos em relação à riqueza, um assunto controverso e polêmico: o montante das grandes fortunas, inimaginável para pessoas comuns; todos os dados contábeis são imprecisos e, possivelmente, subestimados; a afirmação de que o mundo é dominado por 300 riquezas aliadas a teorias conspiratórias e o fenômeno internacional da concentração de riqueza. Essas não são afirmações simplistas e generalistas?

Cattani – Existem estudos com grande grau de confiabilidade realizados por universidades e outras instituições idôneas que comprovam que o montante da riqueza concentrada está subestimado. A ONG Tax Justice Network vem provando ano após ano a diversidade de subterfúgios usados para ocultar o valor real de fortunas financeiras e das propriedades. No número de 16 de fevereiro de 2013, a extremamente conservadora revista The Economist calculou em 20 trilhões de dólares o montante da evasão fiscal realizada tanto por indivíduos como por corporações internacionais.

Embora existam estudos que sustentem que a identidade de interesses entre multimilionários os leva a compor uma classe unitária, no meu livro afirmo que apenas indivíduos paranóicos podem imaginar a geopolítica internacional sendo dirigida por milionários em permanente ação conspiratória para dominar o mundo.

Sul21 – A classe ociosa é integrada por todos os ricos ou por alguns deles? Quais? Esta riqueza – a ociosa – é mais prejudicial à sociedade?

Sul21 – Outra afirmação sua é de que “as desigualdades são indispensáveis para o bom funcionamento do sistema capitalista” e que “equilíbrio, igualitarismo social, justiça e bem comum são conquistas dos movimentos populares e dos trabalhadores organizados”. O capitalismo sobreviverá com tantas desigualdades? Não há um jogo entre trabalhadores organizados e empresários (riqueza) organizados para manter este equilíbrio?

“O capitalismo não visa redistribuir renda. Pelo contrário, o objetivo é o da acumulação e centralização de capital.”

Cattani – O capitalismo não visa redistribuir renda. Pelo contrário, o objetivo é o da acumulação e centralização de capital. Ao mesmo tempo, o sistema pode absorver demandas dos trabalhadores por melhores salários e demandas da sociedade por mais investimentos públicos financiados pelos impostos das empresas. O capitalismo sobreviveu sem muitos problemas no período áureo do Welfare State (1945-1975), o que indica que é possível aumentar a qualidade de vida de um grande número de pessoas sem que o sistema entre em colapso.

Sul 21 – O senhor lembra que a escala comparativa de riqueza vem sendo ampliada, citando a Forbes que, em 2008, passou a considerar alguém verdadeiramente rico, se possuísse 1,2 bilhão de dólares. Esta é uma escala, que no momento atual, tende a crescer ou a diminuir. Por quê?

Cattani – Segundo dados da revista Forbes divulgados na semana passada, o processo de concentração de renda continua em ritmo acelerado, comprovando que a riqueza substantiva (aquela riqueza que gera mais riqueza) se beneficia do efeito “bola de neve”. De modo geral, o detentor de uma fortuna de um bilhão de dólares tem um leque tão diversificado de investimentos que o habilita a aproveitar as mais variadas formas de aplicações em escala planetária.

Sul21 – Na visão de Adam Smith, citado pelo senhor, a riqueza é medida de acordo com “a força de trabalho que uma pessoa pode comprar usando seus rendimentos anuais”. Esta escala nos mostra que, enquanto o romano Marcus Carssus (115-53 a.C.) podia pagar 32 mil trabalhadores por ano, hoje, os donos das maiores riquezas podem pagar até 400 mil. O senhor tem ideia de quantos trabalhadores as maiores riquezas do Brasil podem pagar por ano?

Cattani – Novamente usando as informações da revista Forbes, existiam 124 bilionários no Brasil em 2012. Alguém que possua um bilhão de reais e que recebesse juros de 0,5% ao mês (o que paga em média a caderneta de poupança), poderia contratar 7.500 trabalhadores só com os juros. Esse é um patamar modestíssimo. Em casos mais realistas de fortunas de vários bilhões com lucratividade bem maior podemos ter casos de 20, 30 ou 40.000 trabalhadores pagos mensalmente sem precisar tocar no capital.

Sul21 – O senhor – me parece – é um crítico do Terceiro Setor, por ele fazer uso de incentivos fiscais. Mas as ações deste setor não vão além dos incentivos?

Sul21 – A volatilidade é uma característica também da riqueza brasileira? Eike Batista seria um exemplo desta riqueza vap-vupt? Por outro lado, o senhor lembra que a riqueza, no mundo de hoje, sai dos caixas das empresas para os bolsos de seus executivos. Mesmo na última crise, os CEOs eram beneficiados com salários diretos e indiretos acima do que as empresas podiam pagar. Esta fase já passou?

“Nenhuma fortuna está imune às turbulências do mercado ou à incompetência empresarial.”

Cattani – Na sua grande maioria, as grandes fortunas não são voláteis embora nenhuma delas esteja imune às turbulências do mercado ou à incompetência empresarial. Nos casos de oscilações, como no caso citado, é necessário conferir se as perdas noticiadas se referem também ao patrimônio pessoal ou se este não foi previamente transferido para outras praças financeiras ou para paraísos fiscais. O processo de canibalização das empresas ou de transferência de vultosos recursos para contas privadas em detrimento das empresas continuam, talvez com importância até maior do que no período anterior à crise financeira.

Sul21 – As desigualdades sociais resultam, como o senhor mesmo afirma, em aumento da violência, maior incidência de problemas físicos e mentais, na gravidez precoce e no aumento da obesidade. Como as sociedades de primeiro mundo e em desenvolvimento têm reagido a essas desigualdades profundas?

Cattani – Pela primeira vez na história está ocorrendo uma inversão de papéis. Vários países economicamente avançados têm adotado políticas socialmente regressivas com cortes nas aposentadorias, diminuição de serviços públicos, redução de salários etc. Países emergentes, e especialmente o Brasil, estão seguindo rumos distintos como forma de impulsionar o crescimento econômico com maior justiça social.

Sul21 – No segundo artigo – A Velha Classe: o lado escuro dos ricos – o senhor qualifica de imprecisa a repartição da sociedade em classes. O que substituiria a divisão em classes?

Cattani – A divisão em classes é imprecisa devido ao surgimento de novas categorias de empreendedores e de trabalhadores, mas o conceito de classes sociais continua sendo essencial para analisar a sociedade capitalista. Não surgiram outros elementos teóricos para tanto.

Sul21 – Se a população mais pobre paga, proporcionalmente, duas vezes mais impostos do que os ricos, isso não se deve à falta de ação do governo, à falta de fiscalização e métodos que possam tornar visível o que o senhor classifica de lado escuro dos ricos?

Cattani – O governo é parcialmente responsável pelo problema. O grande empresariado é o primeiro a exigir mais investimentos em educação, saúde e segurança, mas é absolutamente refratário a qualquer aumento de impostos para financiar esses gastos. Os meios de comunicação controlados por segmentos elitistas e conservadores deturpam constantemente as informações econômicas santificando os verdadeiros inimigos da sociedade justa. O sistema tributário protege as classes abastadas, mas há anos todas as tentativas de reforma estão bloqueadas no Congresso Nacional. O mesmo ocorre com o imposto sobre as grandes fortunas previsto na Constituição de 1988, também barrado no Congresso. Ao mesmo tempo, discretos lobistas eleitos como senadores e deputados se revezam na construção de dispositivos legais para favorecer grupos específicos. O Instituto Justiça Fiscal está realizando um estudo para mostrar quem são “os donos do Congresso”, quem financia campanhas milionárias de nulidades políticas eleitas apenas para preservar privilégios e para proteger interesses minoritários.

Sul21 – A nova classe média brasileira corre riscos, como por exemplo, do endividamento?

Sul21 – Há esperanças de que um dia teremos uma sociedade verdadeiramente justa, livre e fraterna? O senhor apregoa, no final do seu texto, que “novas formas de mobilização cívicas podem propiciar a construção de uma sociedade mais justa e solidária”. Os protestos que vem ocorrendo no Brasil desde o primeiro semestre e a forma como eles vem ocorrendo são o que o senhor chamaria de novas formas de mobilização? Elas podem colaborar para a construção de uma sociedade mais justa e solidária?

Cattani  O Brasil está caminhando em passo acelerado na superação da desigualdade histórica. Uma sociedade infinitamente mais justa que a atual será o resultado do esforço conjunto de governos progressistas, de partidos com compromisso social e de sindicatos democráticos e livres. Os protestos ocorridos em junho foram efêmeros e inconsistentes. Eles serviram para lembrar que é necessário mudar várias práticas sociais e econômicas. Mas a verdadeira mudança depende de formas orgânicas e institucionalizadas de participação popular.

Fonte: Sul21, com ajustes
Entrevistadora: Nubia Silveira
Data original da publicação: 18/09/2013

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