A situação de deterioração das finanças do estado do Rio de Janeiro vem sendo discutida em duas CPIs na Assembleia Legislativa estadual, uma sobre a crise fiscal do Estado, e outra específica sobre o Rioprevidência, autarquia responsável pela previdência própria dos funcionários públicos estaduais.
Flávio Serafini
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 18/10/2019
A crise financeira do Estado do Rio de Janeiro a partir do segundo semestre de 2014 só agora vem sendo discutida a fundo. Esta crise foi motivada por um somatório importante de causas, nas quais se destacam: a rapina da administração Sérgio Cabral e Pezão, e seus auxiliares diretos; o sobreendividamento do estado com grandes obras, como Copa do Mundo e Olimpíadas, entre outras; a queda da arrecadação, resultante das políticas econômicas contracionistas levadas adiante desde Joaquim Levy, no Governo Dilma, passando por Henrique Meirelles, no Governo Temer, até chegar a sua versão radicalizada com Paulo Guedes, no Governo Bolsonaro; a queda dos preços do petróleo, já que royalties e participações especiais são parte importante da receita estadual; e, não menos importante, o enorme volume de isenções fiscais concedidos pelos seguidos governos estaduais dos últimos anos (e mantida na gestão Witzel a frente do governo estadual a partir desse ano).
Como de hábito, a conta sobrou para a população fluminense, por conta da deterioração dos serviços públicos. E sobrou também para o funcionalismo estadual, na forma de arrocho de salários, atraso de salários e atraso de aposentadorias e pensões. Esta situação de deterioração das finanças estaduais vem sendo discutida em duas CPIs na Assembleia Legislativa estadual, uma sobre a crise fiscal do Estado, e outra específica sobre o Rioprevidência, autarquia responsável pela previdência própria dos funcionários públicos estaduais. A CPI do Rioprevidência acaba tendo uma importância que transcende o processo de crise, pois permite, de um lado, perceber um importante elemento da atual gestão do patrimônio previdenciário dos trabalhadores do setor público no país – a sua financeirização.
De outro, alguns movimentos inovadores e ousados –além de temerários e controvertidos – por parte dos gestores do setor público no período Cabral/Pezão abrem um caminho para a internacionalização dos recursos dos fundos previdenciários dos funcionários públicos estaduais e sua dilapidação, em nome da alavancagem de recursos a partir dos ativos disponíveis para a capitalização dos fundos (no caso do Rio de Janeiro, royalties e participações especiais do petróleo a serem recebidos no futuro)1.
Criação
A criação do Rioprevidência remonta ao final dos anos 1990. Naquela altura, na crise do chamado Plano Real, e às voltas com um ataque especulativo que levava à rápida fuga de capitais (1998), o governo FHC, logo na sequência da reeleição, assina um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que estrutura uma mudança profunda do esquema de estabilização adotado até aqui, migrando da chamada âncora cambial (controle da relação entre o dólar e o real) para a política do chamado tripé de política econômica, com câmbio flutuante, taxas de juros vinculadas à política de metas de inflação (taxas que subiam fortemente face a possibilidade de aumento da inflação) e superávit primário.
Para enquadrar os estados e grandes municípios na política adotada, são federalizadas e renegociadas as condições de pagamento das dívidas dos níveis subnacionais, e proposta a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar 101, sancionada em maio de 2000. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), além de estabelecer a prioridade de pagamento de dívidas financeiras sobre qualquer outra prioridade dos governos (federal e níveis subnacionais), criava limites importantes para o gasto de pessoal.
No caso dos estados, os limites de gasto de pessoal estabelecidos na LRF implicavam, constando ativos e inativos na mesma folha de pagamentos, em somar os salários dos ativos com as aposentadorias e pensões para fins dos percentuais permitidos. Por outro lado, se criados fundos capitalizados para o custeio de regimes próprios de previdência dos servidores, esses valores referentes à aposentados e pensionistas sairiam da conta dos limites de gasto de pessoal, uma vez que passariam a ser financiados por estes fundos previdenciários.
Assim, o processo de discussão para o estabelecimento da LRF já estimulou a criação dos fundos com o objetivo de manter os governos com alguma flexibilidade orçamentária (a LRF previa uma série de sanções e enquadramentos dos orçamentos dos entes que violassem os limites previstos na lei). É nesse contexto que é criado o Rioprevidência, formalmente o Fundo Único de Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro no ano de 1999.
Assim como em boa parte dos estados e municípios do país, o fundo previdenciário do estado do Rio já nasce herdando mais de 90 mil aposentados e 45 mil pensionistas, sem que os recursos correspondentes a estes pagamentos tenham sido repassados para o fundo. Além disso, o estado já possuía quase 200 mil servidores ativos, muitos deles por se aposentar. Isso gera desde a origem do Rioprevidência um desequilíbrio, uma vez que ele assume muitas despesas sem receber os valores correspondentes para efetuar os pagamentos.
O que recebe versus o que oferece
Em decorrência destas discrepâncias entre o os valores que o Rioprevidência recebe e as responsabilidades financeiras com aposentados e pensionistas que ele assume, é que o Tesouro Estadual é em última instância o garantidor desses pagamentos. Isso é um procedimento óbvio, pois estes são aposentados que faziam parte da folha do Estado, que trabalharam durante décadas e têm direito a receber.
O que a criação do Rioprevidência fez, foi reorganizar os pagamentos, transferindo aposentadorias e pensões da folha da administração direta para um fundo específico. A alternativa ao papel do Tesouro como garantidor seria, no ato da criação do fundo próprio, realizar os cálculos atuariais para verificar qual o valor total dos pagamentos a serem realizados para o futuro e o Tesouro Estadual antecipá-lo, o que no caso do Rioprevidência, ainda em 1999 significaria algo ao redor de R$ 50 bilhões, absolutamente impossível do estado pagar.
Cabe destacar que como até a criação do Rioprevidência tanto ativos como aposentados faziam parte da folha do estado, não havia muito sentido em existir contribuição previdenciária, pois o estado recolheria para si mesmo: no caso do trabalhador seria o equivalente a uma simples diminuição de salário, e no caso da patronal, o estado não teria nenhum resultado prático.
Quando o Rioprevidência é criado e as folhas são segregadas é que as contribuições passam a fazer sentido. A contribuição dos servidores passa a ser recolhida em 2000 e a contribuição patronal só a partir do ano de 2004 (e mesmo assim, fixada em 11%, só tendo passado a 22% a partir de 2006). Somente essa demora, fez com que se deixasse de aportar ao fundo cerca de R$ 7 bilhões (isto é, a parte que caberia ao patrão, o estado do Rio de Janeiro).
Desequilíbrio
Buscando compensar a falta de uma capitalização inicial que desse sustentabilidade ao fundo, são criados ao longo do tempo mecanismos para tentar capitalizar o Rioprevidência e reverter seu desequilíbrio, buscando torná-lo também mais autônomo com relação ao Tesouro Estadual. Além da contribuição patronal, buscou-se atrelar ao fundo algumas receitas extraordinárias: a contribuição previdenciária dos servidores, os Certificados Financeiros do Tesouro repassados pela União, imóveis que lhe são repassados, créditos da dívida ativa do Estado, créditos de parcelamento do ICMS, créditos de fundos públicos, como o Fundes – Fundo de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado – e FREMF – Fundo de Recuperação Econômica dos Municípios Fluminenses, e saques de depósitos judiciais e extrajudiciais.
A questão do financiamento dos fluxos de pagamento do Rioprevidência e, parcialmente, uma tentativa de capitalização do fundo, só são minimamente equacionados com o repasse de recursos dos royalties de petróleo e das participações especiais do petróleo2. Isso é feito a partir do final do Governo Rosinha, em 2006 e em função disso, o fundo se manteve solvente e arcando com as aposentadorias e pensões até 2012.
Desde a constituição desses mecanismos de financiamento, entretanto, houve grandes descumprimentos de repasses ou transferência de recursos do Rioprevidência, onerando o fundo para tentar melhorar a situação do Tesouro Estadual. Entre os mecanismos de oneração do Rioprevidência, se destacam, entre vários3:
O Estado do Rio de Janeiro não repassou integralmente os recursos da dívida ativa. Em 2012, o governo editou o Decreto 44.006 desobrigando o Estado de realizar os repasses previstos, e cancelando qualquer dívida existente pelos repasses não feitos. No entanto, a procuradoria do Tribunal de Contas contesta a validade deste decreto. Os valores acumulados que deixaram de ser repassados de 2005 a 2015 são de R$ 3,7 bilhões (Processo TCE-RJ 109.230-6/15, folha 67);
O governo não repassou os recursos do parcelamento do ICMS, conforme determinado pelo Decreto n° 36.994/05, acumulando uma dívida de R$ 1,7 bilhão entre 2005 e 2015 com o Rioprevidência (Processo TCE-RJ 109.230-6/15, folha 67);
As receitas dos Certificados Financeiros do Tesouro garantiam um fluxo de receitas para o Rioprevidência até 2014. No entanto, o Estado do Rio de Janeiro realizou sucessivas antecipações destas receitas, com resgates desses títulos em 2003, 2007 e 2011. O governo se comprometeu a recompor esse fluxo, o que nunca foi feito.
Desvios
Apenas com alguns desses processos, o TCE-RJ estima que foram desviadas receitas que giram em torno de 15 bilhões, conforme detalham a tabelas a seguir:
O Rioprevidência recebia repasses vultuosos de royalties e participações especiais, mas deixava de receber outros valores também relevantes. O estado repassava com uma mão e retirava com a outra, fazendo com que o Rioprevidência nunca conseguisse constituir uma poupança que lhe desse maior autonomia e equilíbrio atuarial. No final das contas, os recursos repassados ao Rioprevidência sempre foram não mais que suficientes para dar conta de seu fluxo de pagamentos, mas nunca o bastante para construir este equilíbrio.
A situação financeira do fundo foi garantida até 2012 pelos recursos do petróleo, royalties e participações especiais. Esse processo, entretanto, nos coloca mais uma discussão importante que, de fato nunca foi colocada. Afinal, passava a ser criada uma dependência acentuada e orgânica com os recursos advindos da exploração de petróleo – um recurso ambientalmente nocivo, com valor volátil – e sem que possa haver controle, uma vez que seus preços são ditados pelo mercado internacional e pela geopolítica internacional – e sem garantias quanto a segurança do fluxo de recursos. Desde um ponto de vista de concepção de desenvolvimento, o petróleo é um combustível fóssil, e a sua exploração tem efeitos perversos sobre o meio ambiente (efeito estufa).
Petróleo
Depender do petróleo e estimular sua exploração resulta antagônico a uma proposta ambientalmente saudável de futuro da humanidade. Os preços internacionais do petróleo são sujeitos tanto a fortes movimentos especulativos, quanto a mudanças geopolíticas internacionais, sobre as quais a governabilidade de um governo no Brasil é pequena ou nenhuma, e a do Estado do Rio de Janeiro, menor ainda. Finalmente, a divisão do valor de royalties e participações especiais é definida por legislações nacionais que podem ser alteradas a qualquer momento, fazendo com que não haja garantias quanto aos fluxos futuros de recursos.
Como tudo também relacionado ao petróleo, a capitalização dos fundos com royalties e participações especiais do petróleo trouxe consigo também uma maldição. Essa maldição, entretanto, é construída pelos gestores da administração pública estadual. O processo de onerações descapitaliza o fundo, e induz uma discussão sobre como alavancar recursos, de forma a reduzir a pressão sobre o Tesouro Estadual, a partir dos recursos disponíveis, os do petróleo.
O petróleo tem reconhecido valor internacional, e a posse sobre recursos futuros do petróleo por parte do Rio de Janeiro e do fundo previdenciário dos funcionários públicos estaduais permite ir ao mercado internacional e alavancar recursos garantidos pelos fluxos a serem recebidos no futuro. Essa operação era possível em um mercado internacional repleto da liquidez injetada pelos bancos centrais dos principais países como mecanismo para salvar o sistema financeiro e as empresas financeiramente alavancadas a partir da crise financeira de 2008 e utilizando mecanismos que garantissem altíssima remuneração aos investidores internacionais (comprometendo as finanças no médio e longo prazo em troca de um “refresco” momentâneo ao Tesouro Estadual).
É essa operação que os gestores estaduais fluminenses vão estruturar a partir de 2011, uma operação de antecipação de receitas futuras do petróleo pelo Rioprevidência, e que foi efetivada em 2014 e reeditada em 2018 – operação essa que vem neste momento sendo ensaiada por outros governos estaduais, em um quadro de generalizada crise financeira das gestões estaduais a partir do prolongamento da crise econômica.
Notas:
1 Esse um processo importante a ser percebido, pois feito inicialmente no Rio de Janeiro, começa a ser desenhado a partir de agora em outros estados da federação. Ver por exemplo, para São Paulo e Rio Grande do Norte, ambas operações vieram à público em 2019.
2 Royalties são recursos pagos ao poder público (estados, municípios e União) pelo direito de explorar reservas de petróleo. Participações especiais são uma compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de petróleo ou gás natural para campos de grande volume de produção. As participações especiais refletem então a produtividade dos campos, e o volume de recursos de participações especiais se amplia na medida em que entram em produção os grandes campos do pré-sal.
3 A CPI do Rioprevidência apurou até aqui cerca de 10 desonerações do fundo.
Flávio Serafini é sociólogo, professor e pesquisador da Fiocruz, deputado estadual do PSOL-RJ e presidente da CPI do Rioprevidência.