Gilson Schwartz é graduado em Economia e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É pesquisador associado ao Núcleo de Política e Gestão Tecnológica – PGT da USP e integra o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Diversitas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Na entrevista a seguir, Schwartz destaca que, na discussão sobre tecnologias e o uso de inteligência artificial, é preciso colocar a questão que “nenhuma inteligência artificial parece capaz de colocar”: “qual o propósito dessa inteligência?”. Segundo ele, “a plataformização da vida pode levar a uma desfiguração totalitária e distópica com rapidez e até sob o aplauso geral e bilhões de likes”, como já acontece com a “‘feicibuquização da vida’, um problema que merece tratamento psiquiátrico como dependência química-digital)”. Diante das mudanças tecnológicas, adverte, “falta girar o botão e produzir uma ‘psico/bio/politização’ das plataformas, para que elas sirvam ao propósito individual e coletivo de proteger e promover a vida no planeta. Essa literal revitalização da esfera digital é, a meu ver, a revolução que aos poucos pode ganhar relevância, a revolução do propósito, e não apenas uma buzzword ou meme programados para evaporar”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor percebe a Revolução 4.0? Que futuro possível se pode projetar?
Gilson Schwartz – Sabemos que as ondas de inovação seguem padrões rítmicos ou cíclicos, modulados pela própria velocidade, profundidade e sustentabilidade das inovações introduzidas sucessivamente. Uma revolução, a ideia de uma mudança estrutural que afeta o próprio padrão cíclico, é sempre uma hipótese ousada, principalmente numa época em que a chamada “disrupção” é entendida como inovação praticamente contínua, necessária, irreversível e que pode ampliar ainda mais as incertezas ecossistêmicas, tornando o ambiente ainda mais complexo (o que exige mais adaptação e mesmo novas rupturas). Nesse contexto, “revolução 4.0” é mais uma “buzzword”, como já foi a “Web 2.0”, a “blogosfera” ou a “gamificação”.
A meu ver, as várias “revoluções” são momentos em que se criam expectativas generalizadas de mudança de etapa no ciclo ou até emergência de novos ciclos e horizontes, como ocorre atualmente, sem que se tenha nome ainda para o que vem por aí (A revolução 5.0? O fim da relação salarial? A psicobiologia pós-robótica?). Percebo essa transformação emergente como a revelação (mais que revolução) da “iconomia”. Ou seja, a integração definitiva e protagonista do conhecimento ao lado de terra, capital e trabalho na organização da sociedade, dos mercados e das redes.
IHU On-Line – Poderia explicar como surgiu a Inteligência Artificial e quais foram os principais marcos desde seu desenvolvimento até a atualidade?
Gilson Schwartz – É difícil fazer uma opção – levada ao pé da letra. A chamada “inteligência artificial” surgiu no instante em que um hominídeo começou a rabiscar na parede das cavernas com a expectativa de interferir de alguma forma no seu programa (ou seja, a primeira ação foi programar por meio de uma interface simbólica a própria sobrevivência, sempre um mix de experiência e memória. Das pinturas rupestres à linguagem dos computadores houve uma evolução claramente acelerada com o domínio da energia elétrica e a emergência de grandes polos urbanos (toda cidade é inteligente, ou não seria uma cidade). Lawrence J. Fogel, em 1960, fazia experimentos com estratégias de otimização estocástica, algoritmos genéticos em que o software emula operadores genéticos tal como observados na natureza. Recentemente, circulou a informação de interrupção de um programa de inteligência artificial porque as máquinas começaram a inventar a sua própria linguagem. Fica, portanto, demonstrado por evidências contemporâneas que a capacidade de criar ícones, de fazer linguagem, é a chave da sobrevivência.
No lugar da sobrevivência dos mais fortes ou eficientes ou competitivos, é a lei da competência simbólica, uma espécie de neodarwinismo digital em que a evolução do humano é indissociável dos processos de gênese, difusão e crise produzidos pelas esferas projetadas pela inteligência coletiva. Em todos esses casos, a questão central que nenhuma inteligência artificial parece capaz de colocar é: qual o propósito dessa inteligência? Como programar, desprogramar ou reprogramar a ação de vivência, resistência ou sobrevivência numa biosfera digital?
IHU On-Line – Como descrever a Inteligência Artificial na atualidade?
Gilson Schwartz – Big data, smart cities, smart contracts, blockchain, cloud, monetization, gamification… há inúmeras palavras, modas e termos que se associam a social media ou social networks e, no limite, há uma ampliação a tal ponto intensa na automação de processos que a própria empregabilidade do ser humano, no longo prazo, entra em questão e fica recoberta por novas incertezas. Quem disse que a carreira num grande banco operando em escala global é mais promissora que a organização de um clube de trocas usando moeda digital num território com propósitos puramente locais? Qual dessas ocupações é mais sustentável, qual oferece rendimentos pecuniários (e outros) mais duradouros? A internet das coisas (outra expressão de moda) contribui para dar a impressão de que a automação, a inteligência artificial ou a robotização tornam cada vez mais precária a inserção dos indivíduos no mercado, nas cadeias de produção de valor e mesmo na vida social.
IHU On-Line – É tecnicamente viável que robôs, por meio da própria Inteligência Artificial, produzam linhas de programação? Que exemplos existem e quais suas potencialidades? Que implicações surgem a partir dessa ideia de autopoiesis das máquinas?
Gilson Schwartz – É o que vimos recentemente com a interrupção de um programa diante da capacidade das máquinas de criarem sua própria linguagem. De modo geral e puramente lógico, esse é um fato pelo menos desde a fundação do teatro na Antiguidade: o ser humano tem a capacidade de combinar a ação à representação. A partir daí o sistema de representações pode ganhar vida e passar a comandar as ações, programando coletivamente o destino de todos, com evidente risco de violência, totalitarismo e outras “bad trips”. De carros que são dirigidos remotamente a tratamento de inúmeras doenças pela telemedicina, os riscos para a liberdade, a diversidade, a privacidade e a criatividade humana são parte inerente da dimensão representacional que desde a caverna pré-histórica faz da inteligência algo “artificial”, ou seja, que existe fora dos nossos corpos e da natureza animal, vegetal ou mineral.
O jogo entre ação e representação é um jogo que pode ser programado. Essa programação, no entanto, existe apenas na medida em que tem um propósito no espaço e no tempo. A iconomia é o jogo em que essa economia do símbolo pode criar ou destruir valor (num mercado, numa rede social, numa política pública).
IHU On-Line – Qual o papel da Internet das Coisas neste contexto? Quais são seus limites atuais e suas potencialidades?
Gilson Schwartz – Há exagero no uso das palavras-valise, neologismos ou expressões que marcam a percepção coletiva de que uma nova fronteira, uma nova disrupção está em curso sob o impacto da digitalização em redes de todas as formas de existência. Isso inclui os objetos existentes e a capacidade que o sistema das coisas ganhe novos sentidos ou cumpra determinados requisitos para que sejam transferidos de um lugar a outro (por exemplo, carcaças de automóveis ou lixo digital como pilhas, monitores, impressoras etc.).
IHU On-Line – Dado que os dispositivos digitais de Inteligência Artificial são voltados para compreenderem certos comandos (inclusive de voz) e, a partir disso, apresentarem respostas lógicas, em um universo de comunicação máquina-máquina, elas seguem a tendência da cooperatividade ou da competitividade? É possível pensar a Inteligência Artificial nesses termos?
Gilson Schwartz – Depende da programação, da própria capacidade do programa de evoluir jogando com os dois polos de cooperação e competição ao longo do tempo, em momentos e espaços programados, experimentados, pesquisados, reavaliados de forma segura, aberta e sistêmica.
IHU On-Line – De que maneira os avanços tecnológicos reorganizam categorias como a de sociedades democráticas e sociedades totalitárias?
Gilson Schwartz – Voltando ao exemplo da pintura nas cavernas – a expectativa de controle e garantia da sobrevivência ganha na representação o estatuto de linguagem, ou seja, sistema de códigos, ícones que de algum modo programam nossos sistemas operacionais vivos e sua acomodação em esferas concomitantes e nem sempre concêntricas de sustentação. Nesse momento, no mundo todo, ganham evidência as dimensões da vigilância, espionagem, vazamento, violências simbólicas, crimes on-line e uma crescente fronteira inovadora e híbrida entre a rede e o mundo, os corpos e as mentes. Como sempre, a democracia depende da abertura e apoio às competências (letramentos ou literacias) no campo da representação.
IHU On-Line – A Inteligência Artificial reorganiza o debate em termos econômicos? O que coloca em crise e o que potencializa?
Gilson Schwartz – Ação, programação e representação constituem a tríade através da qual a economia pode produzir valor, e a democracia facilita a emancipação inclusiva e sustentável. Sem essa abertura, as redes, como já foram os mercados e os impérios, podem rápida e facilmente conduzir a mais controle, hierarquias, exclusões e concentrações de conhecimento, poder e dinheiro. É o que já vimos com a agricultura, a indústria e as finanças ao longo dos séculos. Resta saber se com educação, participação e propósitos conseguiremos finalmente sair desses ciclos para inaugurar uma nova era da informação, da mídia e do conhecimento comprometidos com propósitos vitais.
IHU On-Line – Como pensar a Inteligência Artificial em perspectiva com a Indústria Criativa? Que horizontes se abrem?
Gilson Schwartz – A complexidade das camadas integradas pela inteligência das redes envolve do metal raro extraído com alto impacto ambiental na África ao box na lojinha de consertos de celulares num shopping em qualquer lugar do mundo. Na medida em que todos os objetos, seres e sistemas de informação virtualmente conectados pelo ciclo de produção e consumo digital falarem a mesma “língua”, certamente surgirão possibilidades inéditas de reduzir o impacto ambiental, dar propósito ao uso de recursos escassos ou não renováveis, ocupar de modo mais humano o território e as áreas naturais, entre outros propósitos. A criatividade, portanto, vincula-se ao uso emancipatório das competências da inteligência coletiva, não simplesmente num setor “cultural” da economia (conceito usual, mas ultrapassado, de “indústria criativa” como categoria setorial necessária e suficiente para programar a era da iconomia).
IHU On-Line – É possível compreender a guerra cibernética neste contexto? Do que se trata exatamente essa ideia? Seria uma espécie de rebelião humana contra a Inteligência Artificial?
Gilson Schwartz – A plataformização da vida pode levar a uma desfiguração totalitária e distópica com rapidez e até sob o aplauso geral e bilhões de likes (veja-se a ubíqua “feicibuquização da vida”, um problema que merece tratamento psiquiátrico como dependência químico-digital). Falta girar o botão e produzir uma “psico/bio/politização” das plataformas, para que elas sirvam ao propósito individual e coletivo de proteger e promover a vida no planeta. Essa literal revitalização da esfera digital é, a meu ver, a revolução que aos poucos pode ganhar relevância, a revolução do propósito, e não apenas uma buzzword ou meme programados para evaporar.
Fonte: Carta Maior, com IHU Online
Data original da publicação: 07/08/2017