Revisão administrativa por confederações empresariais e a extinção do voto de qualidade influenciam conflitos de interesses

Como a extinção do voto de qualidade influencia conflitos de interesses.

Ricardo Fagundes da Silveira e Márcio Calvet Neves

Fonte: IJF, com Jota
Data original da publicação: 29/07/2022

Em abril de 2020 uma emenda à Medida Provisória 899/2019 acabou com o “voto de qualidade” no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Sancionada pelo executivo, a polêmica mudança está contida no art. 23 da Lei 13.988/2020. O texto legal motivou três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) em julgamento do Superior Tribunal Federal (STF).

Indiferente do resultado das ADIs, outra iniciativa legislativa procura consolidar a mudança iniciada há dois anos. No parecer de relator que analisa um projeto que tramita na Câmara dos Deputados com regime de urgência (PLP 17/2022) foram incluídas alterações (artigos 49 a 51) que estendem o fim do voto de qualidade (minerva ou desempate) a todos os órgãos de revisão administrativa de estados e municípios.

Em junho deste ano, as Delegacias de Julgamento (DRJs) e o Carf tinham um estoque de R$ 1,05 trilhão de créditos tributários aguardando julgamento, distribuídos em mais de 92 mil processos. Deste montante, R$ 781 bilhões (74%) estavam concentrados em 1.412 processos de valor superior a R$ 100 milhões. Em relação aos litígios estaduais e municipais, apenas o estoque do contencioso em dezembro de 2021 no Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo era de R$ 123,95 bilhões[1] e no Conselho Municipal de Tributos do município de São Paulo, o contencioso julgado em 2021 foi de R$ 18,16 bilhões.[2]

Os dados acima dimensionam a responsabilidade dos conselheiros pela correta cobrança de tributos, principal fonte de receita do estado e de recursos para as políticas públicas. Tendo em vista os números envolvidos, a questão que surge é porque o Brasil é o único país do mundo que delegou a representantes das confederações empresariais o poder de decidir administrativamente sobre a legalidade da cobrança estatal. O histórico do Carf nos fornece a resposta. Os poderes ampliados dos conselheiros indicados pela inciativa privada ilustram o risco que se vislumbra para o futuro.

Um modelo do Império adotado na República

Há algo absolutamente incomum no modelo de revisão administrativa do contencioso fiscal brasileiro. Em nenhum país do mundo metade dos julgadores são indicados por confederações empresariais.

Revisão administrativa, como deixa claro o sentido literal do termo, é (ou deveria ser) atividade exclusiva da administração fiscal. Há interesses que, por quase um século, escaparam da percepção social do que representa a indicação de julgadores de confederações empresariais na revisão administrativa. A naturalização e o desconhecimento público tornaram possível essa anomalia que expõe diferenças no tratamento entre grandes e pequenos contribuintes.

No Brasil, o órgão de revisão administrativa foi criado antes da administração fiscal. A Secretaria da Receita Federal, criada em 1968, e mesmo a antiga Direção Geral da Fazenda Nacional, criada em 1934, são posteriores à criação dos “Conselhos de Contribuintes”. O 1º Conselho de Contribuintes foi criado pelo Decreto 16.580 em 1924 e o 2º Conselho de Contribuintes pelo Decreto 5.157 de 1927. Estes conselhos seguiam os modelos de administração tributária do Brasil Colônia e do Império português, as chamadas Juntas da Real Fazenda e o Tribunal do Conselho da Fazenda.

Este modelo nada republicano é resultado da inquietude das elites econômicas com a criação do Imposto de Renda em 1922 e a presença de representantes das confederações e associações empresariais estão garantidas nos decretos, mesma sem a previsão de existência dos mesmos nas Leis 4.625/1922 e 4.783/1923 que criaram o IR. A ideia subjacente já era limitar os efeitos das fiscalizações sobre grandes contribuintes. Os primeiros presidentes nomeados para o 1º. e 2º. Conselhos de Contribuintes eram, respectivamente, José Leopoldo Bulhões Jardim e Mário Foster Vidal da Cunha Bastos. Bulhões Jardim foi deputado federal no Império, na constituinte de 1891, senador no início do século 20 e ministro da fazenda dos governos Rodrigues Alves (1902-1906) e Hermes da Fonseca (1910-1914). Era o homem de confiança dos financistas do período. Cunha Bastos era, simplesmente, o presidente da Federação de Seguradores e Diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Em síntese, se privilégios tributários da aristocracia imperial eram garantidos pelo Tribunal do Conselho da Fazenda, estes eram estendidos às elites econômicas na república velha por meio dos Conselhos de Contribuintes. O objetivo central na criação e funcionamento destes Conselhos era a defesa dos interesses de grupos empresariais influentes e não a revisão administrativa. Com o fim do voto de qualidade há uma retomada deste espírito arcaico. A barbárie alcança o erário público e compromete, de forma indiferente, a realização de políticas públicas pelos entes estatais.

Em relação ao futuro, há um outro fator que tem sido ignorado com o fim do voto de qualidade: a solução dada para as disputas administrativas pelo Brasil estimula modernas formas de corrupção.

A porta giratória do Carf que amplia as chances de corrupção e fragiliza a política pública

O termo “porta giratória” é usado para descrever o movimento de indivíduos entre cargos públicos e privados. A porta giratória, sem a correta regulamentação, oferece risco de integridade ao poder público por meio da captura de órgãos julgadores e regulatórios, aumentando o risco de corrupção e impactando negativamente na governança e no interesse público.

No Carf, o risco da porta giratória, com conselheiros sendo indicados por confederações empresariais, ultrapassa o aceitável sob qualquer ótica que se examine a administração pública. A argumentação de que o movimento de indivíduos da iniciativa privada para o setor público baseia-se unicamente na busca por maior expertise, negligenciando a importância da informação privilegiada e interesses profissionais e ideológicos, acaba sendo negativa para o interesse público, que passa a ser regido por interesses privados.

Parte da doutrina já começa a definir a porta giratória como um ato contemporâneo de corrupção que deve ser contido. O que hoje acontece no Carf se enquadra perfeitamente na definição mais abrangente de “corrupção legalizada”, existente quando a própria legislação valida atos contrários ao interesse público.[3] (Larmour, 2012, p. 44-48). O fato de que um conselheiro indicado por confederações empresariais possa agir, segundo sua consciência, com as melhores intenções, produzindo votos juridicamente defensáveis, não desnatura a captura do estado por meio desta “corrupção legalizada” que tem efeitos nocivos para a sociedade.

A nossa dificuldade em enxergar a atual estrutura do Carf como um convite à corrupção provavelmente tem raízes na tolerância maior do brasileiro quando o ato questionável é realizado por membros da elite. Assim, a troca de favores entre indivíduos da mesma elite financeira e jurídica é aceita como algo usual, especialmente quando o assunto, por ser extremamente técnico, fica escondido da opinião pública em geral. Ora, a lógica é que se não há opinião pública condenando, se juridicamente a estrutura do Carf é legal, então não há nada de errado.

Entretanto, os prejuízos sociais de tal anomalia não podem ser negligenciados, uma vez que a troca de favores por meio de decisões que privilegiam contribuintes é uma prática acessível apenas ao topo da pirâmide social, e não a todos os contribuintes.

Embora seja difícil quantificar e identificar o impacto prejudicial da porta giratória no Carf, as chances de conflito de interesses são evidentes. Do ponto de vista do compliance e da integridade do sistema, o interesse público precisa ser protegido mesmo de atos que não são legalmente definidos como corrupção, mas são tomados com o interesse privado em mente. O governo tem a obrigação de reduzir as chances de comportamento antiético ocorrer. É por esta razão que o Brasil é o único país do mundo em que representantes de confederações empresariais possuem poder de decisão sobre a cobrança de um tributo.

Conclusão

Um tribunal administrativo com poder decisório delegado aos representantes das confederações empresariais é uma exceção mundial que não encontra justificativa na moderna política pública. Pertence ao grupo de outras anormalidades tributárias, como a isenção de tributos sobre dividendos e os juros sobre capital próprio, que aparentemente permanecem no ordenamento jurídico pela inegável eficiência como instrumentos de concentração de renda.

Antes que a anomalia do processo administrativo federal seja replicada nos estados e municípios é essencial que a sociedade reaja, para impedir e reverter. O que se defende é apenas que o Brasil siga políticas de revisão administrativa do lançamento tributário que existem nos países que respeitam suas instituições e o republicanismo. Se o Brasil desejar continuar sendo uma exceção, que traz para o julgamento administrativo indivíduos que não pertencem à administração pública, que ao menos todos os contribuintes sejam representados e não apenas a elite empresarial.

Notas

[1] https://portal.fazenda.sp.gov.br/servicos/tit/Paginas/estoque_processos.aspx  Acesso em 17 mai 2022

[2] https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/relatorio_contencioso_2021_1637331012.pdf  em 04 jul 2022

[3] LARMOUR, Peter (2012), What Counts as ‘Corruption’? In Culture and Politics in the Pacific IslandsInterpreting Corruption (pp. 42–59). Disponível em: http://www.jstor.org/stable/j.ctt6wqdk4.8

Ricardo Fagundes da Silveira é auditor fiscal e membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal.

Márcio Calvet Neves é advogado tributarista e membro do Conselho Deliberativo do Instituto Justiça Fiscal.

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