Os representantes do povo brasileiro, ainda que eleitos, não possuem “carta branca” para comportamentos antidemocráticos e de afronta à Constituição. Os interesses de certos grupos, arraigados no passado, jamais devem prevalecer sobre os preceitos constitucionais.
Cláudia Honório e Fabrício Gonçalves de Oliveira
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 14/08/2017
Até 1888, a escravidão foi utilizada no Brasil como principal forma de exploração de mão de obra, com pleno aval das leis nacionais. Neste período, pessoas negras recebiam tratamento similar ao de coisa ou animal, sendo comprados, vendidos, e até mesmo trocados por outros bens materiais. Além dos trabalhos forçados, os escravos eram submetidos às mais variadas humilhações e métodos de violência. Tinham não apenas a liberdade restringida, como a dignidade limitada.
Pouco mais de um século após a abolição oficial da escravatura (com a Lei Áurea) – e sem esquecer que ainda existem, na atualidade, situações de trabalhadores em condições análogas às de escravo –, o país se depara, em pleno ano de 2017, com a publicação da Lei 13.467/2017, denominada de “Reforma Trabalhista”.
Na prática, um conjunto amplo de alterações da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) que traz sérios prejuízos ao trabalhador, incluindo graves violações à Constituição, principal documento jurídico da nação. Isso sem contar o déficit democrático ocorrido na própria elaboração da reforma, sem discussão popular. Das várias inconstitucionalidades da nova lei, chamam a atenção dispositivos relativos à tarifação (prévia fixação de valor máximo) da indenização por dano extrapatrimonial.
Nesse aspecto, a reforma trabalhista dispõe que o dano extrapatrimonial se refere à lesão moral ou existencial, e que a respectiva indenização passa a ter limites máximos de pagamento, considerando especialmente a natureza da afronta e o último salário contratual do trabalhador prejudicado.
Uma das previsões, por exemplo, é que nas lesões de natureza gravíssima, a indenização por danos extrapatrimoniais possa alcançar o máximo de até 50 vezes o último salário contratual do empregado.
Tal previsão não encontra paralelo no Código Civil e nem no Código de Defesa do Consumidor. Portanto, passa a ser plenamente possível que os envolvidos em um mesmo fato danoso recebam valores diferentes de indenização, mesmo tendo sofrido idênticos prejuízos, instituindo expressamente tratamentos diferenciados de acordo com a condição da pessoa naquela determinada situação. O exemplo torna mais clara a distorção: se alguém está passando em frente a um canteiro de obras e é atingido por um objeto que se solta de uma grua, tendo ferimentos corporais graves, poderá receber indenização maior do que um trabalhador do mesmo local que sofra a mesma lesão.
Pessoas recebendo tratamento diferenciado. Voltemos, assim, ao começo deste artigo. Escravos e escravagistas não possuíam, aos olhos da lei, o mesmo valor. Na verdade, conforme os valores daquela sociedade, a mão de obra escrava sequer estava no mesmo patamar de um ser humano. E a partir da “Reforma Trabalhista”, observamos que empregados potencialmente passam a valer menos do que sujeitos de direito civil, empresários ou consumidores.
Criou-se por lei, novamente, uma hierarquia existencial de seres humanos no nosso país. Sem dúvida, fruto de fortes resquícios do nosso passado escravocrata, em que era comum existirem pessoas com status diferenciados, sendo a força de trabalho (escrava) a de menor importância na pirâmide social. Com a reforma, não apenas voltamos a uma época pré-CLT, mas também fincamos os pés em séculos anteriores, em que um ser humano era legalmente menos digno do que outro.
Salienta-se que não poderia ser outra a afirmação exarada pelo Procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, ao conceder entrevista ao jornal Folha de São Paulo, no último dia 14 de julho, sobre a “Reforma Trabalhista”, no sentido de que o Brasil “ainda tem uma cultura escravocrata”.
Outro exemplo de manifestação dessa cultura é a resistência, pelo Governo Federal, por longo período, em divulgar a lista de exploradores de trabalho em condições análogas às de escravo (art. 149 do Código Penal). A publicação efetivamente só ocorreu após embate judicial, mesmo se sabendo que tal exploração ultrajante é ainda uma triste realidade nacional.
Como se não bastasse a limitação da indenização para o trabalhador – pelo simples fato de ser trabalhador –, a nova lei trabalhista, de antemão, permite que empregados vítimas do mesmo dano, em situações inequivocamente semelhantes, tenham reparações completamente distintas, em razão tão somente do último salário contratual recebido.
Ou seja, o empregado mais pobre, ou a sua família, é menos digno do que outro trabalhador que percebe um salário superior.
Em um contexto de cegueira moral e perda da sensibilidade na modernidade líquida, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, refere-se às vidas desperdiçadas, aos seres humanos que, sem conseguir inclusão no processo socioeconômico globalizado, têm seu sofrimento desconsiderado. É um resíduo humano que a lei não contempla, mas que é justamente a maioria da população.
Aliás, ressalta-se uma previsão curiosa na reforma: “na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização”. Situação que, por completa clareza, é impossível de ser aplicada em certas lesões gravíssimas – como aquelas que resultam na morte do trabalhador ou que afastam completamente o obreiro do emprego (por exemplo tetraplegia) – obviamente não passíveis de serem repetidas.
Outra crítica que surge com a previsão da tarifação é que, sendo o dano extrapatrimonial aquele que atinge bens imateriais do indivíduo, não seria possível quantificar previamente as repercussões da lesão. No universo complexo de situações existentes na sociedade, colocá-las num mesmo plano não é só temerário, como manifestação clara de injustiça.
A Constituição da República trouxe tratamento específico para a reparação por danos extrapatrimoniais, prevista no art. 5º, incisos V e X, sendo tais normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Não há previsão de qualquer teto específico e quantificado para a indenização. Pelo contrário, a Constituição assegura a reparação conforme ou proporcional à lesão sofrida. E não faz qualquer distinção entre empregados e não empregados – pois todos são detentores de igual dignidade.
É preciso lembrar que o princípio da proporcionalidade tem dupla vertente. Se por um lado contém a proibição do excesso (valores abusivos de indenização, enriquecimento indevido de uma parte, banalização de pedidos), por outro visa à proibição da proteção insuficiente. E, com a tarifação da indenização, certamente ocorrerão casos em que a proteção máxima conferida pela lei será insuficiente para reparar todo o dano sofrido, ferindo, então, a própria principiologia constitucional.
Tanto é que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n.º 130, entendeu, em prol da liberdade de imprensa, pela não recepção dos artigos da Lei n.º 5.250/1967 (Lei de Imprensa) que dispunham sobre a tarifação da indenização por danos morais, por completa incompatibilidade com o texto constitucional. Inconstitucionalidade absurda que a “Reforma “Trabalhista” ressuscitou no cenário jurídico pátrio.
A propósito, tal como existiam os abolicionistas em períodos anteriores da nossa história, há atualmente vozes firmes contra os ditames da malfadada “Reforma Trabalhista”, como o Ministério Público do Trabalho – MPT, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE, Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT, Associação Nacional do Ministério Público Militar – ANMPM, Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR, Associação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – AMPDFT, Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas – ABRAT, Associação dos Magistrados do Distrito Federal – AMAGIS/DF, Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho – SINAIT, e Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros – CNBB.
Tais entidades já se posicionaram publicamente contrárias à Lei 13.467/2017, rechaçando a limitação pecuniária das indenizações por danos morais, baseadas nos salários das vítimas, o que viola o fundamento republicano da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e, por propiciar tratamento distinto a situações idênticas, afronta a garantia fundamental da isonomia, prevista no caput do art. 5º da Constituição.
Ao limitar a indenização por danos extrapatrimoniais, a “Reforma Trabalhista” não representa uma modernidade, e sim um retorno cruel ao passado, em que vigoravam leis permitindo que certas pessoas – justamente aquelas representantes da principal força de trabalho no país – fossem tratadas sem qualquer respeito à dignidade, como seres humanos de menor valor. Algo inadmissível no contexto da Constituição da República de 1988.
Percebe-se que a cultura escravocrata ainda persiste em terras brasileiras.
Ela quer se tornar natural e, há muito tempo, busca o amparo legal. Entretanto, apesar da esperança de dias melhores se abalar diante de cenário tão sombrio, devemos nos guiar sempre pela luz da Constituição, cabendo às instituições fazer valer os princípios basilares da Carta Maior e, à população, exigir que a sua vontade seja respeitada.
Pertinente ressaltar que os representantes do povo brasileiro, ainda que eleitos, não possuem “carta branca” para comportamentos antidemocráticos e de afronta à Constituição. Os interesses de certos grupos, arraigados no passado, jamais devem prevalecer sobre os preceitos constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre seres humanos.
Não podemos esquecer: todo o poder emana do povo (art. 1º, Par. Único, da CRFB), diante do qual sucumbem as injustiças, que por diversas roupagens buscam persistir na sociedade. Como em outros tempos, não se poderá calar um grito pela dignidade.
Cláudia Honório é Bacharel em Direito pela UFPR, Especialista em Direito Constitucional pela UniBrasil, com Aperfeiçoamento em Teoria Geral do Direito pela ABDConst, e Mestre em Direito do Estado pela UFPR; foi Procuradora do Município de Curitiba e atualmente é Procuradora do Trabalho na 9ª Região/PR.
Fabrício Gonçalves de Oliveira é Bacharel em Direito pela UFES, Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Gama Filho; foi Analista Judiciário – Área Judiciária, do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, exerceu o cargo de Procurador-Chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 23ª Região e atualmente é Procurador do Trabalho na 9ª Região/PR.