Resistir à uberização do mundo

Ao transformar donos de veículos em choferes eventuais sem nenhuma proteção, o Uber não desperta apenas a fúria de taxistas: seu nome simboliza cada vez mais a ligação entre novas tecnologias e precarização. O sucesso de gigantes do Vale do Silício acompanha uma onda de desregulamentações.

Evgeny Morozov

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 04/11/2015

Há quase dez anos somos reféns de dois acontecimentos transformadores. O primeiro é a existência de Wall Street; o segundo, do Vale do Silício. Um e outro se completam maravilhosamente no papel do policial bom e do mau: Wall Street prega a penúria e a austeridade; o Vale do Silício exalta a abundância e a inovação.

Primeiro acontecimento transformador: a crise financeira mundial, que culminou no salvamento do sistema bancário, deixou o Estado social em ruínas. Os serviços públicos que sobreviveram aos cortes orçamentários tiveram de aumentar suas tarifas ou se viram obrigados a experimentar novas táticas de sobrevivência. Algumas instituições culturais precisaram então, por falta de alternativa, apelar para a generosidade dos particulares, recorrendo ao financiamento participativo: já que as subvenções públicas desapareceram, elas não tinham outra escolha, entre o populismo de mercado e a morte.

O segundo acontecimento transformador, ao contrário, é muito evidente. No caso, quando se trata de digitalizar e conectar tudo à internet – fenômeno perfeitamente normal, se acreditarmos nos investidores capitalistas –, as instituições devem escolher entre a inovação ou a morte. O Vale do Silício garante que a magia da tecnologia vai naturalmente se infiltrar no menor recanto de nossa vida. Se acreditamos nisso, nos opormos à inovação seria o mesmo que renunciar aos ideais do Iluminismo: os dirigentes do Google e do Facebook, Larry Page e Mark Zuckerberg, seriam os Diderots e Voltaires de nosso tempo.

No entanto, aconteceu algo esquisito: nós passamos a acreditar que o segundo acontecimento não tinha nada a ver com o primeiro. Assim, pudemos observar o aumento dos cursos a distância on-line (os Mooc: Massive Open Online Courses) sem evocar as reduções orçamentárias que, ao mesmo tempo, atingiam as universidades. Não, a febre dos Mooc seria apenas a consequência natural da inovação promovida pelo Vale do Silício… Os hackers, que se tornaram empreendedores, decidiram “balançar” a universidade, como antes tinham feito na música e no jornalismo. Do mesmo modo, agimos como se não houvesse nenhuma relação entre, por um lado, a multiplicação dos aplicativos concebidos para acompanhar nosso estado de saúde e, por outro, os problemas que uma população cada vez mais velha, que já sofre com a obesidade e outras doenças, acarreta para um sistema de saúde fragilizado. Os exemplos são abundantes e mostram que o relato exaltante da transformação tecnológica eclipsou aquele, bem mais deprimente, da transformação política e econômica.

É preciso ressaltar que esses dois fenômenos estão entrelaçados e que o pano de fundo do evangelho da inovação não é mais reluzente. Ilustração em Barcelona: como muitas das instituições culturais espanholas, um clube de stand-up, o Teatreneu, sofria com uma diminuição da frequência desde que o governo, procurando desesperadamente cobrir suas necessidades de financiamento, tinha decidido aumentar a taxa sobre a venda dos ingressos de 8% para 21%. Os administradores do Teatreneu encontraram então uma solução engenhosa: fazendo uma parceria com a agência de publicidade Cyranos McCann, eles equiparam a parte de trás de cada poltrona com um tablet de última geração capaz de analisar as expressões faciais. Com esse novo modelo, os espectadores podem entrar “gratuitamente”, mas devem pagar 30 centavos a cada risada reconhecida pelo tablet – a tarifa mínima é fixada em 24 euros (ou seja, 80 risadas) por espetáculo. De súbito, a média do ingresso subiu 6 euros. Um aplicativo de celular facilita o pagamento. Em outras palavras, você pode compartilhar com seus amigos suas próprias selfies gargalhando.

Do ponto de vista do Vale do Silício, temos aí um perfeito exemplo de boa “transformação”: a proliferação de captadores inteligentes conectados à internet cria novos modelos de empresas e novas fontes de renda. Em outras palavras, ela gera diversos empregos para os intermediários, fabricantes de material e inventores de aplicativos. Nunca foi tão simples comprar serviços e produtos: nossos smartphones se encarregam disso por nós. Logo, nossas carteiras de identidade poderão fazer a mesma coisa: a MasterCard já fechou um acordo com o governo nigeriano para lançar um RG que também funciona como cartão de crédito.

Problemas não colocados

Para o Vale do Silício, nada além de renovação tecnológica. Trata-se de “transformar” o dinheiro líquido. Ainda que essa explicação possa satisfazer, ou até mesmo atrair, empreendedores e investidores, por que todo mundo deveria aceitá-la sem discussão? É preciso ser totalmente cego pelo amor à inovação – a verdadeira religião dos nossos tempos – para não ver seu verdadeiro preço: o fato de que, ao menos em Barcelona, a arte se tornou mais cara. O ambiente tecnocêntrico, dissimulando a existência da transformação financeira, oculta a natureza e as razões das transformações em curso. Ficamos felizes em poder comprar mais, mais facilmente. Mas não devemos nos preocupar com o fato de que, graças a essa infraestrutura, também é infinitamente mais fácil debitar em nossa conta bancária?

Sem dúvida há muito dinheiro para ganhar ao “transformar” as moedas. Seria isso realmente desejável? O dinheiro líquido, que não deixa rastros, representa uma barreira significativa entre o cliente e o mercado. A maioria das transações efetuadas com a moeda em papel é singular, no sentido de que elas não se ligam entre si. Quando pagamos com o telefone celular, produzimos um rastro que os publicitários e outras empresas podem explorar.

Não é por acaso que uma companhia publicitária está na origem da experiência de Barcelona: a gravação de cada transação é um bom meio de recuperar os dados que servirão para personalizar as publicidades. Isso significa que nenhuma de nossas transações eletrônicas realmente termina: os dados que elas geram permitem não apenas seguir nossos rastros, mas também estabelecer uma ligação entre atividades que talvez preferíssemos que permanecessem separadas. De repente, seu momento de gargalhadas em um clube de stand-up se aproxima dos livros que você comprou, dos sites que você frequentou, das viagens que você fez, das calorias que você consumiu. Em suma, com as novas tecnologias, todos os seus atos e gestos se integram em um perfil único, monetizável e otimizável.

Ainda que essa transformação passe pela tecnologia, suas origens se encontram em outro lugar. Favorecida pelas crises políticas e econômicas, ela terá uma profunda incidência sobre nosso modo de vida e nossas relações sociais. Parece difícil preservar valores como a solidariedade em um ambiente tecnológico fundado nas experiências personalizadas, individuais e únicas. O Vale do Silício não mente: nossa vida cotidiana se encontra muito bem transformada; mas por forças bem mais desonestas do que a digitalização e a conectividade. O fetiche da inovação não deve servir de pretexto para nos fazer pagar os custos das recentes turbulências econômicas e políticas.

Foi o que entenderam os motoristas de táxi diante do crescimento acelerado do Uber, uma empresa que propõe a particulares que procuram um complemento de renda transformar seu carro em táxi, colocando estes em contato com clientes. Sufocados, os profissionais protestaram. Como as autoridades de regulamentação, da Índia à França, atacaram o Uber, a empresa californiana se lançou em uma operação de sedução. Seus chefes, conhecidos como virulentos e surdos às críticas, clamam agora, em alto e bom som, que é preciso regulamentar o setor. Eles parecem também ter entendido por que sua empresa é um alvo fácil: suas práticas são simplesmente ignóbeis demais. No início deste ano, sob o fogo alimentado pelas críticas, o Uber teve de renunciar a fazer os clientes pagarem tarifas exorbitantes quando a demanda aumentava em horários de pico. Mas isso não foi tudo. Em um golpe publicitário genial, a empresa também propôs a um de seus mais ferozes adversários, a prefeitura de Boston, acesso ao tesouro que constituem os dados (anônimos) relativos aos itinerários, para ajudá-la a limitar os engarrafamentos e melhorar a organização urbana. Claro que foi mera coincidência o estado de Massachusetts, onde se encontra Boston, recentemente reconhecer as plataformas de partilha de táxis como um meio de transporte legal, eliminando com isso um dos principais obstáculos do Uber…

Este se inscreve na continuidade das start-ups mais modestas que tornam seus dados acessíveis aos urbanistas e às municipalidades, e ficam felizes em afirmar que com essas informações o planejamento urbano se tornará mais empírico, participativo e inovador. Em 2014, a Secretaria de Transportes Públicos do Oregon fechou um acordo com a Strava (aplicativo para smartphone muito popular que acompanha os movimentos de corredores e ciclistas) e pagou uma grande soma para ter acesso aos dados que diziam respeito aos itinerários empregados pelos ciclistas usuários do aplicativo, com o objetivo de melhorar as ciclovias e conceber trajetos alternativos.

O fato de que o Uber apareça como uma reserva de dados indispensáveis aos urbanistas está completamente de acordo com a ideologia solucionista do Vale do Silício, que consiste em resolver na urgência pelo caminho digital problemas que não são colocados, não nesses termos. Como as empresas de tecnologia monopolizaram um dos mais preciosos recursos atuais, os dados, elas passaram à frente das municipalidades, tão desprovidas de dinheiro quanto de imaginação, e podem posar de salvadoras benevolentes dos gentis burocratas que povoam as administrações.

O problema é que as cidades que se aliam ao Uber correm o risco de desenvolver uma dependência excessiva de seus fluxos de dados. Por que aceitar que a empresa se torne o único intermediário nessa matéria? Em vez de deixá-la aspirar à totalidade das informações relativas aos deslocamentos, as cidades deveriam procurar obter esses dados por si próprias. Em seguida, elas poderiam autorizar as empresas a utilizá-los para introduzir seu serviço. Se o Uber se mostra eficiente, é porque controla a fonte de produção dos dados: nossos telefones lhe dizem tudo o que precisa saber para planejar um itinerário. Mas, se as cidades tomassem o controle desses dados, a empresa, que não possui quase nenhum ativo, não atingiria os US$ 40 bilhões de seu valor atual. Podemos duvidar que seja tão custoso conceber um algoritmo capaz de relacionar oferta e demanda… Sem dúvida, sob a pressão das companhias de táxi, cidades como Nova York e Chicago parecem enfim ter compreendido que era preciso reagir: tanto uma como a outra tentam lançar um aplicativo centralizado, capaz de enviar táxis tradicionais com a eficiência do Uber. Além de impedir a dominação deste, o programa impedirá que os dados relativos aos itinerários se tornem uma mercadoria cara – a qual as cidades devem comprar.

O verdadeiro desafio, porém, consiste em saber como fazer funcionar esses aplicativos com outros meios de transporte. A visão do Uber agora aparece claramente: você lança o aplicativo no seu telefone e um carro vem te buscar. Dizer que isso não traduz uma imaginação transbordante seria muito abaixo da realidade. Essa abordagem funciona nos Estados Unidos, onde ninguém mais anda a pé e os transportes públicos são, na maior parte do tempo, inexistentes. Mas por que esse modelo deveria ser utilizado no resto do mundo? Não é porque caminhar não traz dinheiro para o Uber que deve ser excluído como meio de transporte. A crítica do solucionismo se aplica aqui perfeitamente: não apenas este dá uma definição muito estreita dos problemas sociais, mas geralmente o faz em termos que beneficiam antes de tudo os que conceberam a “solução”.

Quem possui os dados controla o transporte

Imagine que o aplicativo desenvolvido por seu município pudesse informar todas as possibilidades de transporte das quais você dispõe (excluindo o Uber): você poderia usar a bicicleta que te espera na esquina, subir em um micro-ônibus cujo itinerário seria adaptado ao seu destino e ao dos outros passageiros, depois andar o resto do trajeto para saborear os charmes da feira de rua do bairro. Algumas cidades já lançaram projetos desse tipo. Helsinki, em colaboração com a start-up Ajelo, criou o Kutsuplus, intrigante cruzamento do Uber com um sistema de transporte público tradicional. Os passageiros pedem uma van em seu telefone, e o aplicativo calcula o melhor meio de conduzir todo mundo ao destino, com base em dados em tempo real. Ele também dá uma estimativa do tempo de trajeto, tanto com o Kutsuplus quanto com outros modos de transporte.

O sucesso de projetos como esse depende de diversos fatores. Em primeiro lugar, os municípios não devem considerar o Uber o único meio de melhorar a eficiência dos transportes públicos e ainda menos de reduzir os engarrafamentos (e podemos ter certeza de que nunca os dados que ele fornece indicarão que é preciso menos táxis e mais ciclovias ou calçadas de pedestres). Em seguida, os combates relativos aos serviços públicos serão vencidos pelos que possuem os dados e pelos captadores que os produzem. Deixando tudo isso na mão do Uber – ou pior, na mão das empresas de tecnologia gigantes que procuram monopolizar uma parte do suculento mercado das “cidades inteligentes” –, nos privamos das experimentações que permitirão às coletividades organizar seus transportes como bem entenderem.

A parceria entre o Uber e a cidade de Boston levanta, entre outras, uma questão política: podemos autorizar o Uber a “possuir” os dados de seus clientes, para que utilize como um trunfo em suas negociações com os municípios ou para que queira simplesmente vendê-los a quem oferecer mais? O Uber, sem realmente ter levantado a questão a quem quer que fosse, respondeu afirmativamente. Como Google e Facebook tinham feito antes.

A realidade tem, no entanto, mais nuances, principalmente porque os captadores integrados nas infraestruturas públicas podem facilmente reproduzir esses dados. Imagine o que seria capaz de fazer uma rede que combinasse os leitores automáticos de placas de carro, das estradas e dos faróis de sinalização inteligentes: ela poderia identificar e seguir veículos Uber exatamente como fazem os smartphones de seus condutores e passageiros. Não se trata de pregar o aumento da vigilância, mas simplesmente de ressaltar que o Uber se pretende proprietário de dados que não lhe pertencem.

Não é porque ele vem da Califórnia, região conhecida pela péssima qualidade de seus transportes públicos, que devemos acreditar que os veículos individuais motorizados são o futuro dos transportes. É infelizmente o que poderia acontecer por causa da diminuição dos investimentos em infraestruturas públicas. Mas, desse modo, a solução seria restabelecê-los e, para isso, combater as políticas de cortes orçamentários.

Evgeny Morozov é autor de To save everything, click here. Technology, solutionism, and the urge to fix problems that don’t exist [Para salvar tudo, clique aqui. Tecnologia, solucionismo e a pulsão de consertar problemas que não existem], Allen Lane, Londres, 2013.

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