Resignado não! O trabalhador está revoltado!

Insistir que se trata apenas de uma “resignação” tem um grande peso ideológico, pois esconde ou tenta dissimular a natureza e as causas do fenômeno.

Nadejda Marques

Fonte: GGN
Data original da publicação: 05/11/2021

Nos Estados Unidos e em vários países da Europa Ocidental, os anúncios multiplicam-se: “Estamos contratando”. As manchetes são sobre como vagas de emprego sem candidatos batem recorde ou como as pessoas estão voluntariamente deixando o mercado de trabalho gerando uma suposta escassez de mão-de-obra.

Segundo o Departamento de Estatísticas do Trabalho dos Estados Unidos (US Bureau of Labor Statistics), no mês de agosto deste ano, um número sem precedentes de pessoas desistiram de seus trabalhos, 4.3 milhões de pessoas, cerca de 2.9% da força de trabalho. No mesmo mês, a Agência Federal do Trabalho da Alemanha (conhecida como ZAV) declarou que o país precisaria importar 400 mil trabalhadores para preencher as vagas de diversas indústrias. Mais recentemente, o governo britânico chamou as forças armadas para a distribuição de combustível no país tentando suprir a falta de caminhoneiros. O termo “Grande Resignação” ou “Grande Renúncia” (Great Resignation) utilizados para descrever a situação não é ideal pois resignação além de significar abandonar um cargo ou função de forma voluntária também significa conformar-se sem se opor e, convenhamos, vivemos exatamente o oposto: os trabalhadores estão revoltados! Além disso, insistir que se trata apenas de uma “resignação” tem um grande peso ideológico, pois esconde ou tenta dissimular a natureza e as causas desse fenômeno.

Embora tradicionalmente o número de desistência no trabalho seja maior entre jovens, entre 2020 e 2021, a maioria dos trabalhadores que deixaram seus empregos tinha entre 30 e 45 anos de idade. São pessoas que possuem conhecimento e experiência no trabalho que desempenham, mas que nos últimos anos acumularam mais trabalho sem a contrapartida salarial ou ascensão profissional. Grande parte das desistências estão ocorrendo nos setores de prestação de serviços em saúde, alimentação, hotelaria, turismo, entrega, construção e tecnologia e teriam sido possibilitadas, em parte, pelos planos de auxílio durante a pandemia. Fato é que a renda do trabalhador americano de nível médio está estagnada desde 1979 e tem caído para trabalhadores de nível mais baixo. Esses mesmos trabalhadores tampouco têm acesso a sistema de saúde público, licença parental, licença médica ou outros benefícios. Tampouco é por acaso que, nos EUA, os estados de Kentucky, Georgia e Idaho tem o maior número de desistências. Esses estados se recusam a aumentar o salário mínimo de US$7.25 dólares a hora. Lembrando que o salário mínimo nos EUA deveria ser de US$26 dólares a hora se tivesse sido ajustado segundo a produtividade dos últimos 12 anos, mas mesmo os estados mais progressistas têm dificuldade de aprovar um aumento no salário mínimo para US$15 dólares a hora! Um salário que não é suficiente para pagar o aluguel de uma morada simples e muito menos garantir a sobrevivência de uma família. Só como contraponto, durante a pandemia, os bilionários americanos ficaram 62% ainda mais ricos. Hoje, 650 desses bilionários americanos detêm cerca de US$4.6 trilhões de dólares.  

A pandemia ainda não acabou, mas alguns Republicanos estão se empenhando em cortar os poucos benefícios para pessoas desempregadas para que elas não tenham outra alternativa e voltem aos seus empregos com baixos salários e nenhum benefício ou garantias. Mas como isso ainda não está surtindo os efeitos desejados, começa a apelação… O senado do estado de Wisconsin recentemente aprovou uma lei que amplia a jornada de trabalho de crianças a partir dos 14 anos de idade que poderão trabalhar até às 23hrs!!! Essa nova lei acompanha a determinação do distrito escolar de Waukesha, no mesmo estado, de extinguir o programa de merenda escolar, pois, segundo eles, as famílias poderiam ficar “mimadas” (become spoiled)  ou viciadas nesse tipo de programa. O Estado de Nova Jersey também aumentou temporariamente a jornada de trabalho para crianças a partir de 16 anos. O McDonald’s e outras redes de fast food abraçaram essas mudanças e já fazem campanhas para a contratação de crianças. Isto é, preferem contratar crianças do que pagar um salário digno.

Como isso poderá afetar países como o Brasil?  Com a nossa crise econômica, desemprego, trabalho informal, dólar fechando por volta dos R$5,60 reais e constante ameaça à desregulamentação da segurança e saúde no trabalho, se não prestarmos atenção, logo, nossos profissionais mais qualificados serão para eles como as crianças de Wisconsin.  

Nadejda Marques é PhD em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e trabalha com direitos humanos há mais de duas décadas. Ela é autora de Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley (2018) sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício. Escreveu ainda o livro auto-bibliográfico chamado “Nasci Subversiva” sobre a ditadura no Brasil da perspectiva de uma criança.

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