Entrevista com Rosa Angela Chieza, economista, professora da Ufrgs, pesquisadora e Diretora
de Educação Fiscal do Instituto Justiça Fiscal (IJF).
Sobre o que aborda a pesquisa “Renúncia de receita e desigualdades: um debate negligenciado”, vencedor do “I Prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades”, que receberam em junho último, na Escola de Administração da FGV, em São Paulo?
Essa pesquisa, elaborada entre 2020 e 2021, foi desenvolvida por mim e pela Anne Kelly Linck, acadêmica de Economia e bolsista de iniciação cientifica da Ufrgs durante 12 meses. A pesquisa foi uma das premiadas no Iº Prêmio Orçamento, garantia de Direitos e Combate às Desigualdades. O Prêmio, promovido pela Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor) e a Fundação Tide Setúbal, tem por finalidade reconhecer trabalhos e pesquisas que abordem o tema das Finanças Públicas, não só a partir de uma perspectiva de sustentabilidade fiscal, mas, também, de forma comprometida com o desenvolvimento social do país e o combate à desigualdade de raças, de renda e da garantia dos direitos para a população brasileira.
Qual o objetivo da Pesquisa?
A pesquisa faz uma análise da renúncia de receita, que é um gasto público indireto, pois ocorre por meio do sistema tributário, e que a Receita Federal do Brasil, para se adequar à nomenclatura internacional, chama de “gastos tributários”, embora não passem pelo orçamento público. E não passando pelo orçamento, não se subordinam à norma constitucional do teto de gastos e a várias outras normas e regras exigidas para a execução do gasto público.
Qual a dimensão desse valor?
Estudamos a renúncia de receita, no período de 2004 e 2020, que representa em torno de 4,5% do PIB e em torno de 22% da arrecadação, que é um montante muito significativo, já que, em pouco mais de quatro anos ocorre renúncia equivalente a uma arrecadação anual. Analisamos a política de renúncia de receita da União à luz das normas legais, em especial, da Lei de Responsabilidade Fiscal, que já era uma Lei que eu havia estudado em minha tese de Doutorado, mas que, agora, focamos apenas no que ela trata sobre renúncia de receita.
Como ocorre essa disparidade?
Ao analisarmos o Artigo 14 da LRF, constatamos que não há aderência entre a referida Lei e a política de renúncia de receita da União. Em especial, em relação ao Artigo 14 que estabelece que para a concessão renúncia há que atender a um dos dois requisitos, que a renúncia de receita não afete os resultados fiscais previstos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e que, caso a renúncia de receita afete esses resultados – e afeta, já que a renúncia de receita da União é superior ao déficit primário, portanto extrapola o resultado fiscal -, então faz-se necessário adotar compensações, conforme o Artigo 14, Inciso II da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Que tipo de compensações seriam estas?
Segundo a LRF, a compensação da perda de arrecadação decorrente da renúncia deve ocorrer através da “elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição”. É importante frisar que a lei que autoriza esta compensação deve vigorar durante o período de vigência da lei que aprovou a renúncia. Ou seja, a concessão da renúncia só pode entrar em vigor quando implementadas as medidas de compensação. Você conhece algum caso, onde o Parlamento aprovou renúncia de receita e ao mesmo tempo, aprovou também, aumento de tributos para compensar àquela renúncia? Se a LRF fosse cumprida, o cidadão tomaria conhecimento de que precisou pagar mais tributos, porque o Poder púbico, abriu mão de arrecadação em favor de determinadas empresas/grupos. Pessoas Jurídicas beneficiadas sobre os quais não temos acesso ao nome e o valor “recebido”. Tampouco os Tribunais de Contas monitoram e avaliam os resultados destes gastos tributários, ou seja, é um política pública, financiada com recursos públicos, cuja opacidade impede mensurar a qualidade/resultados destes gastos tributários/renúncias, em oposição aos demais gastos executados através do orçamento público.
Por isso vocês se referem, no título do trabalho, a um debate negligenciado?
Sim. Basicamente porque o País tem escassez de recursos e vem enfrentando uma crise sanitária, econômica e social, com indicadores sociais bastante preocupantes, onde 33 milhões de pessoas estão passando fome, sendo que dessas, sete milhões são crianças. E, de outro lado, nós temos R$ 400 bilhões de renúncias, que nós sequer sabemos quem são os beneficiários porque se utiliza uma interpretação do Artigo 198 do Código Tributário Nacional para negar o acesso de dados, em especial sobre quem são os beneficiários das renúncias e quais os resultados que são entregues por estes beneficiários. Toda a política pública deve ser avaliada e monitorada. E, no caso da política pública de renúncia de receita, isso não ocorre. Não é possível identificar a qualidade desta política pública que “gastamos” por meio de gastos indiretos de R$ 400 bilhões. Veja este valor é maior que os orçamentos da União em saúde e da educação juntos. O acesso aos dados deveria ser do interesse de toda a sociedade, desde os empresários, pois alguns estão se beneficiando e outros não; o cidadão que demanda serviços do SUS, e às vezes precisa esperar um ano ou mais, para fazer uma cirurgia; os cidadãos que demandam educação pública, que se deparam com falta de professores, de vagas em creches, de bibliotecas, ou seja, serviços básicos, essenciais ao desenvolvimento econômico e social do país. E isso ocorre sem o rigor de cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial do artigo 14.
Trata-se de uma “brecha” na legislação?
No caso da LRF, não há brecha. Ela efetivamente não é rigorosamente cumprida quando o tema é renúncia de receita. Quanto à transparência, até dezembro de 2021 vigorava uma interpretação do artigo 98 do CTN que privilegiava a opacidade, pois a demanda do cidadão junto ao Poder Público é no sentido de receber a informação sobre: para quem o Estado entregou recursos públicos e quanto? A interpretação era de que o Poder Público não podia divulgar o nome da empresa e quanto recebeu de renúncias com o argumento de que afeta(va) a competição empresarial. Ora, por que o nome de uma empresa divulgada no site do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no caso da realização de operação de crédito, não afeta a concorrência empresarial, e a divulgação de uma empresa que é beneficiada por renúncia afetaria? No entanto, eu espero que este tema esteja superado, com a Lei Complementar 187, aprovada em dezembro de 2021, que insere o inciso IV no parágrafo 3º do Artigo 98 do Código Tributário, que diz que não é vedada a divulgação de informações relativas à renúncia, ou benefício, à imunidade de natureza tributária cujo beneficiário seja pessoa jurídica. Então, o que a cidadania, pesquisadores de universidades e de outras instituições esperam é que, de fato, se tenha os nomes das pessoas jurídicas beneficiadas, o montante de renúncia concedida, para que, assim, se possa identificar o que efetivamente cada instituição beneficiada entregou em troca, para à sociedade, pois é necessário também mensurar a qualidade do gasto tributário, além de todos os demais gastos que passam pelo orçamento público. Assim, espero que a Lei Complementar nº 187/2021 seja efetivamente cumprida através da transparência ativa. Caso não seja, que providências sejam tomadas pelos Órgãos de Controle e fiscalização e pela sociedade civil organizada. Gostaria de frisar que não somos contrários a política de renúncia, no entanto, a diretriz de mensurar os resultados do gasto público deve incorporar todos os gastos, inclusive o gasto tributário/renúncia.
Que tipo de impactos a renúncia de receitas pode causar na promoção de desigualdades sociais?
Em nossa pesquisa, apontamos que a política de renúncia de receita tem ampliado as desigualdades, pois toda a renúncia de receita reduz o valor da base de cálculo sobre a qual incidem os gastos mínimos constitucionais em saúde e educação, por exemplo. Assim, considerando o total de renúncias da União e os gastos mínimos constitucionais, os orçamentos da saúde e a educação deixaram de receber R$ 43,68 bilhões e R$ 65,52 bilhões, respectivamente, em 2020, primeiro ano da pandemia que vitimou naquele ano 194.949 brasileiros e registrou aumento da desigualdade. São os gastos públicos em educação, (em 1º lugar) e em saúde (em 2º lugar) as políticas responsáveis pela redução da desigualdade de renda no Brasil, conforme apontam várias pesquisas, dentre elas, a da Cepal (2015). De outro lado, a política de renúncia, ao reduzir a base de cálculo sobre o qual incide a definição do orçamento mínimo constitucional da saúde e da educação, reduz o orçamento destas duas áreas. Assim, a política de renúncia, ao retirar recursos de direitos sociais redutores de desigualdades e transferir para grupos de maior poder e não passíveis de efetiva mensuração de resultados, tende a ampliar desigualdades. Ainda, apesar de os gastos sociais em saúde e educação serem os responsáveis pela redução da desigualdade no Brasil, o Estado brasileiro submete os gastos sociais ao corte de gastos, visando atender aos limites fiscais preconizados pela LRF e, ao mesmo tempo, submete-os à política de austeridade fiscal, concebida pela EC nº 95/2016. Enquanto isso, a LRF não é rigorosamente cumprida quanto as medidas de compensação da renúncia de receita, por exemplo, e tampouco se subordina ao teto de gasto, ficando assim a obtenção do equilibro fiscal por conta dos cortes de gastos sociais.
Então a Pesquisa de vocês joga por terra a ideia de que renúncia de receita gera desenvolvimento?
Para poder fazer esta afirmação, ou refutar esta afirmação, precisamos dos dados abertos sobre quem recebe e quanto recebe de renúncias fiscais para podermos medir os resultados de cada beneficiário Pessoa Jurídica sobre o desenvolvimento econômico. E isso efetivamente não temos no Brasil. Alguns afirmam que renúncia de receita gera crescimento e desenvolvimento, mas onde estão as pesquisas que mostram isso? Temos uma pesquisa de Orair, Siqueira e Gobetty, de 2016, que mostra que o efeito multiplicador das renúncias das receitas da União de 2002 a 2016 não é significativo em qualquer posição do ciclo econômico (expansão ou depressão). Enfim, aguardamos que o artigo 198 do CTN, alterado pela Lei Complementar 187 de dezembro de 2021, seja cumprido de forma que todas as universidades e institutos de pesquisa possam fazer análises e avaliações mais robustas sobre esses resultados. Lembrando apenas que, na esfera federal, o próprio Tribunal de Contas diz que cerca de 84% das renúncias fiscais são concedidas por tempo indeterminado. Isso acontece de forma não transparente, sob a alegação de que afeta a competição empresarial. Sem a transparência, problemas como a ineficácia da política de renúncia inexistem. Numa democracia, quando a transparência ganha terreno sobre o segredo, os problemas se tonam mais aparentes. E no caso da renúncia fiscal (ou gastos tributários), passados 22 anos de vigência da LRF, o art. 14 anda não é rigorosamente cumprido e não há registro da não aprovação das contas do Poder Executivo pelos órgãos de controle, por essa razão. Tampouco o legislador inseriu os gastos tributários no rol de cortes previstos na EC do teto de gastos, aprovada em 2016. Enfim, nossa contribuição é no sentido de provocar reflexão e avanços nesta temática. Além da necessidade de rigor quanto ao cumprimento das normas, também quando se refere à renúncia fiscal, propõe-se, dada a relevância social e econômica das políticas em saúde e educação, que se leve em conta, a totalidade das renúncias de receitas, na base de cálculo que define os orçamentos mínimos nestas duas áreas, pois a renúncia fiscal, reduz os respectivos orçamentos, cujos dados são transparentes e passíveis de mensuração, como por exemplo o Índice de Desenvolvimento em Educação Básica (IDEB) e o custo mensal per capita do Sistema Único de Saúde (SUS), politica esta com reconhecimento mundial.
Fonte: IJF, com Corecon-RS
Data original da publicação: 19/09/2022