Governo dilapida políticas sociais e patrimônio público, mas paga fortunas em juros da dívida aos bancos.
José Álvaro de Lima Cardoso
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 25/05/2022
Em meio aos imensos problemas que os brasileiros enfrentam, anda meio esquecido um verdadeiro monstro, que é a dívida pública. Um parasita gigante, que o povo pobre do Brasil sustenta, mesmo sem saber. A dívida pública federal totaliza R$ 5,5 trilhões, a previsão é que termine este ano entre R$ 6 e R$ 6,4 trilhões. Neste número está incluído o endividamento interno e externo do Brasil. É uma soma simplesmente impressionante.
Somente no ano passado, o estoque da dívida brasileira apresentou um aumento de R$ 604 bilhões. Mesmo com o país tendo desembolsado R$ 448,3 bilhões. É um mecanismo de transferência de riqueza, que não tem fim. O patamar atual de quase R$ 5,6 trilhões, o maior da dívida na série histórica iniciada em 2004, equivale hoje a 64% do Produto Interno Bruto (PIB). As despesas totais com juros chegaram a R$ 448,3 bilhões no ano passado, como vimos, e a previsão é que o Brasil gaste entre R$ 600 a 700 bilhões neste ano. Nenhum país do mundo gasta tanto dinheiro com juros da dívida. A dívida no Japão, por exemplo, equivale a 257% do PIB, o mais elevado percentual no mundo. Só que lá a taxa de juros real é negativa, ou seja, o país gasta muito menos com juros da dívida.
Uma das razões fundamentais do aumento do estoque da dívida em 2021 foram as sucessivas elevações da taxa básica de juros da economia pelo Comitê de Política Monetária (Copom), supostamente para conter a alta dos preços. No final de 2020 a taxa Selic estava em 2% e avançou para 12,75% atuais, maior percentual em vários anos. Como é sabido, o aumento da taxa básica de juros, serve somente para agravar o problema fiscal no Brasil, dentre outros prejuízos. Como a inflação no Brasil nada tem a ver com pressão de demanda, o ciclo atual de elevação dos juros serviu apenas para enriquecer ainda mais os credores da dívida e paralisar ainda mais a economia. Elevação da taxa de juros pode conter a inflação, quando esta é de demanda, ou seja, quando os preços estão aumentando porque está havendo excesso de consumo (pode conter). A oferta de um determinado produto, não está sendo suficiente para suprir a procura por aquele produto. E aí o preço aumenta para reequilibrar oferta e demanda.
Mas o problema do Brasil é o inverso. A demanda vem caindo continuamente no decorrer dos anos porque uma parte significativa da população está empobrecendo e os trabalhadores, que ainda conseguem manter seus empregos, não têm conseguido nem ao menos reajustar seus salários pela inflação. O problema do Brasil não é aumento da demanda. Pelo contrário, mais da metade da população vive algum tipo de insegurança alimentar. O Brasil voltou a ter a maior taxa de juros reais do planeta, 6,7%, ao mesmo tempo em que acumula 13% de inflação em 12 meses.
Para termos ideia do que significa gastar R$ 448 bilhões com juros, como ocorreu no ano passado, o orçamento do Ministério da Saúde para o Sistema Único de Saúde (SUS), para este ano, é de R$ 160,4 bilhões, ou seja 36% dos gastos com os juros da dívida no ano passado. O SUS, que sofreu redução orçamentária de 20% neste ano, e que vacinou 170 milhões de pessoas e salva vida de milhares de brasileiros todos os anos, sobrevive com um terço do que é destinado aos banqueiros e outros parasitas. O orçamento do ministério da educação para este ano é de R$ 138 bilhões. Os orçamentos federais somados, de educação e saúde para este ano (298 bilhões) representam 64% do que o Brasil gastou com os rentistas no ano passado.
Se tomarmos apenas o que o Brasil pagou de juros da dívida pública entre 2015 e 2021, chega a R$ 2,8 trilhões, equivalente a 32% do PIB brasileiro. Os custos da dívida pública representam um parasita gigante que os brasileiros carregam no organismo. A dívida é predominante um sistema, que tem o objetivo de extorquir riqueza dos brasileiros em geral, para encher os bolsos dos especuladores.
Segundo o Relatório Anual da Dívida Pública, divulgado pelo Tesouro Nacional, a dívida está repartida da seguinte forma entre os credores: fundos de previdência (25,5%); fundos de investimento (25,2%); instituições financeiras (22,3%); não residentes (12,1%); seguradoras (4,8%); governos (4,5%) e outros (5,6%). Instituições financeiras e os fundos de investimento são, na realidade, a mesma coisa, ou seja, os grandes bancos, na medida em que os fundos são departamentos dentro das próprias instituições financeiras.
Ou seja, os grandes bancos, como instituições financeiras ou fundos de investimento, detém 47,5% da dívida pública. Quase metade de todo o estoque da dívida está nas mãos de bancos privados e instituições financeiras. Além disso, existem doze instituições financeiras escolhidas pelo Tesouro Nacional e outras doze pelo Banco Central, denominadas de dealers dos títulos da dívida pública, cuja função é intermediar as relações entre o Banco Central e o mercado. Entre esses agentes, que compram em primeira mão do governo, estão os maiores bancos que atuam no país, como: Banco do Brasil, os norte-americanos Merryl Lynch, JP Morgan e Goldman Sachs, Bradesco, BTG Pactual, o suíço Credit Suisse, Santander, Votorantim, Itaú e as corretoras XP Investimentos, BGC Liquidez, Renascença DTVM.
Essas instituições financeiras, que detém praticamente o monopólio da dívida pública, também são os maiores patrimônios líquidos do país. São os donos dessas empresas que realmente mandam no Brasil. Foram eles que articularam e comandam, em boa parte, o golpe de 2016 e todas as suas consequências. É esta gente também que controla os fios que movimentam Paulo Guedes e Bolsonaro e tem muita influência no processo de privatização no país.
Temos um exemplo atual do que acontece no Brasil, que é o processo de venda da Eletrobrás. Os meios de comunicação divulgaram que o preço de referência para a venda da companhia, é de cerca de US$ 10 bilhões, valor que chega a ser 15 vezes inferior a semelhantes estrangeiros. Se o governo conseguir entregar a empresa por esse preço (como não está sendo estipulado preço mínimo, o valor de venda pode ser inferior), o montante arrecadado com a venda de uma das companhias mais estratégicas do Brasil, representará 8% do que o Brasil pagará de juros da dívida pública neste ano (que deverá ficar entre R$ 600 a R$ 700 bilhões).
Segundo cálculos da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel) e da Associação dos Empregados da Eletrobras (Aeel), a Eletrobras vale, no mínimo, R$ 400 bilhões (claro sem considerar o valor estratégico da Companhia, ligado à própria segurança nacional, que é o controle de reservas de água, que valem mais do que ouro). É preciso observar que, somente no ano passado, o Brasil gastou quase R$ 450 bilhões com juros da dívida, o equivalente a 125% do valor estimado de venda da Eletrobrás.
Apesar dos técnicos avaliarem a empresa em cerca de R$ 400 bilhões, as estimativas da imprensa é que a empresa será entregue por R$ 67 bilhões. O preço de venda pode ser menor porque o governo não está definindo preço mínimo. Mas se for R$ 67 bilhões, somente o que o Brasil gastou com juros da dívida no ano passado (448,3 bilhões) equivale a quase sete Eletrobrás.
A dívida pública é uma síntese de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam. Esse não é um problema técnico, o Brasil já pagou a dívida pública muitas vezes. A dívida é um sistema extraordinário de transferência de riqueza para os muito ricos, residentes no país, ou não. Como é um sistema complexo, afeito aos especialistas, a população não entende. Os brasileiros acham que os valores são devidos, mesmo, com um raciocínio de senso comum: “se pediu emprestado, tem que pagar”.
Como quem controla tudo é gente ligada aos próprios banqueiros, é um sistema fora do controle das estreitas instâncias democráticas da sociedade. Os especialistas na questão sempre denunciam que não há transparência nenhuma nos dados da dívida pública. Como é um sistema de roubo de dinheiro público, que se autoalimenta, é muito difícil obter os dados. Os relatórios oficiais se limitam a trazer os dados, sem uma análise crítica.
O processo da dívida pública, assim como outros processos de desvio de dinheiro público, tem que ser enrustido mesmo, sem transparência. Como é que se vai desviar 5% ou 6% do PIB para trilionários, de uma dívida que, no fundo, já foi paga várias vezes? Por isso, esses processos não podem ter transparência. É como as privatizações. Para justificar a entrega de ativos públicos fundamentais para a população, ao capital, os governantes responsáveis têm que mentir descaradamente. No caso do Brasil, o problema é agravado porque a grande mídia é oligopolizada e defende as privatizações, dando visibilidade para apenas uma posição em relação ao assunto.
Os gastos monstruosos da dívida pública brasileira com juros, e o descaso com que os homens públicos em geral tratam o problema, são apenas uma face do subdesenvolvimento e da dependência do Brasil com relação aos países imperialistas, fenômeno muito mais complexo. A solução do problema da dívida, passa por mudanças mais gerais, e não se fará isso sem muita luta. Todos os problemas essenciais do país (como industrialização, energia, distribuição de renda, combate à pobreza etc.) passam por romper com as amarras neocoloniais.
José Álvaro de Lima Cardoso é economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina