A proposta de adoção desse tipo de programa de distribuição de renda não é nova e tem críticos à direita e à esquerda. Esta última teme que seja pretexto para o fim dos serviços públicos prestados pelo Estado.
André Luiz Passos Santos
Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 12/05/2021
Devemos adotar um programa de Renda Básica? Sob que formato? Para iniciarmos a nossa reflexão, é preciso dizer que esse debate nada tem de recente, pelo contrário: a primeira menção a um programa de renda universal de que se tem notícia data de 1516, quando Thomas More publicou A Utopia. Muitos outros debateram a renda básica, em diferentes contextos históricos e com as mais diferentes motivações, desde socialistas utópicos a ultraliberais. No Brasil, como é de amplo conhecimento, a ideia é difundida desde 1992 pelo então senador Eduardo Suplicy, da tribuna legislativa e através de outros meios, inclusive a publicação de livros.
A primeira questão a ser enfrentada nesse debate é a da adoção ou não de um programa de distribuição de renda. Existem críticos a esses programas dos dois lados do espectro político: à esquerda e à direita. Os primeiros, entre os quais está a cientista social Francine Mestrum, temem a captura de tais programas pelas forças políticas que desejam mercantilizar os serviços públicos sob os argumentos da suposta maior eficiência da iniciativa privada e da liberdade individual de escolha.
Cada um receberia a sua renda e escolheria livremente onde comprar serviços essenciais, tais como educação e saúde, origem da ideia de fornecimento de vouchers sociais propostapor Milton Friedman e a Escola de Chicago. Para além do perigo de que se usem esses programas para reduzir o fornecimento de serviços pelo Estado – o que equivaleria a dar com uma das mãos e retirar com a outra – creem que esses programas inibiriam a adoção de políticas públicas de garantia de emprego, que em sua visão seriam mais adequados para distribuir renda e evitariam a estigmatização dos beneficiários do programa como ociosos ou rent seekers.
Os liberais argumentam contrariamente, considerando a renda básica um desincentivo ao mérito individual, um suposto incentivo à ociosidade e ao uso de drogas. Alegam que um programa de distribuição de renda inibiria a obrigação moral da caridade pela parcela mais abastada da sociedade, como diz o economista Vito Tanzi. Essa discussão já foi amplamente superada no Brasil desde a implantação do Programa Bolsa Família, em 2003. O sucesso do programa foi tão avassalador que hoje seus mais ferrenhos opositores não se atrevem a propor sua extinção, que imporia custos sociais e políticos demasiado elevados. Embora isso não os impeça de boicotar na prática seu funcionamento, congelando os valores e reduzindo o público-alvo, como faz o atual governo.
Outra questão relevante é a do público a ser beneficiado pelo programa: restrito a uma parte da população através de teste de meios (requisitos máximos de renda, por exemplo) ou universal, extensivo a todos? Existem bons argumentos para defender os dois modelos. Os programas que exigem teste de meios, como o Bolsa Família, que tem condicionalidades à entrada e à permanência, têm menor custo fiscal, evitam a ampliação da concentração da renda – que argumentam que aconteceria caso os mais ricos se beneficiassem – e permitem a imposição de condicionalidades com efeitos positivos, como a obrigatoriedade de frequência à escola e vacinação das crianças da família.
Já os defensores da Renda Básica Universal defendem que a retirada do teste de meios eliminaria os custos da necessária estrutura de busca, cadastramento, fiscalização e controle das condicionalidades, liberando as pessoas envolvidas na perseguição de outros objetivos de promoção social e destinando esses recursos para a ampliação do programa. Todos receberiam o mesmo valor, independentemente de sua renda ou condição social e sem qualquer condicionalidade. O benefício seria individual e não familiar, o que elimina qualquer forma de controle e extingue possíveis fraudes, por desnecessárias.
A questão de se programas de distribuição de renda, sejam condicionados ou universais, inibem o fortalecimento de programas de garantia de emprego talvez não leve em consideração que o mundo do trabalho vem sofrendo mudanças profundas, provavelmente irreversíveis. O emprego com carteira assinada, férias, décimo-terceiro salário e aposentadoria vem paulatinamente perdendo espaço para o trabalho intermitente, o emprego informal, o serviço prestado a plataformas de entrega, transporte, cuidados com animais domésticos.
A crescente mecanização da agricultura, das fábricas e dos serviços e a chamada quarta revolução industrial reforçam a tendência à destruição de empregos. Cada vez mais somos atendidos por máquinas movidas por inteligência artificial. Um bom parâmetro para percebermos essas novas realidades é pensarmos quantas vezes vamos ao banco para executar transações financeiras atualmente, e compararmos com a frequência com que o fazíamos há alguns anos. Hoje é possível fazer os mais diversos tipos de transações bancárias, inclusive tomar empréstimos e até apostar na loteria, sem o concurso de um atendente. A pandemia que atravessamos reforçou o uso de plataformas de entrega de comida e outras mercadorias, provavelmente criando um hábito – nunca se utilizou tanto o comércio eletrônico como hoje.
A busca da garantia de emprego não é necessariamente excluída pela concessão da renda básica. O emprego deve ser, além de questão de dignidade humana, objetivo de política econômica. Buscar o pleno emprego é promover a eficiência, evitar o desperdício de recursos e fortalecer a economia, na medida em que inclui a todos os que estejam disponíveis para o trabalho na possibilidade de ampliar seu consumo para além do essencial. Para se obter o pleno emprego, o Estado deve utilizar os recursos necessários. Rever as jornadas de trabalho, criar incentivos para a contratação de jovens e idosos, promover a contratação de profissionais para o cuidado com idosos e crianças, a conservação de manutenção de bens públicos, incentivar atividades de lazer e culturais, entre outras, o que está longe de ser incompatível com o fato de as pessoas receberem uma renda básica. Ademais, o argumento de que promover a concessão de benefícios incentivaria a ociosidade é abertamente preconceituoso. Só se poderia falar de ócio voluntário se houver oferta de empregos dignos em volume suficiente para todos.
O debate sobre o custo fiscal de um programa de Renda Básica Universal não pode ser condicionado por questões mais ideológicas e políticas do que propriamente econômicas, como a inacreditavelmente anticientífica comparação do Estado com a economia familiar. Embora intuitivo, o conceito de que o Estado não deve gastar mais do que arrecada, como devem fazer as famílias, que terminou por impor um inexequível teto de gastos e regras fiscais para lá de draconianas, não leva em conta que o Estado define a própria receita através da tributação, emite a moeda em que se pagam os benefícios e arrecadam os tributos, não tem limites mágicos ou morais ao endividamento e tem grande poder de influenciar os juros que paga por sua própria dívida.
O argumento, comumente utilizado pelos liberais, da justiça intergeracional – aumentar a dívida pública significaria transferir às gerações futuras parte dos custos do bem-estar das atuais gerações – não se sustenta diante do avanço amplamente constatado da miséria e da fome: simplesmente não haverá gerações futuras se deixarmos as atuais morrerem à míngua.
Ademais, os opositores da ampliação da transferência de renda parecem ignorar que a imensa maioria dos beneficiários é de pobres, que tendem a consumir toda a renda extra que receberem. A renda injetada pelo programa incrementaria a atividade econômica e o emprego pela via da ampliação do consumo. Considerando ainda que os impostos indiretos são cerca de metade da massa de impostos no Brasil, o Estado recuperaria boa parte dos custos com o programa, tanto pelo efeito multiplicador sobre a atividade econômica como pela taxação incidente sobre o consumo, que significariam um considerável reforço à arrecadação tributária.
A Renda Básica Universal, por ser extensiva a todos, elimina a estigmatização dos que recebem benefícios, estimula a economia e combate eficientemente os efeitos danosos da grande desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira. O fato de beneficiar igualmente a todos, ricos ou pobres, remove a discriminação aos beneficiários, e o efeito concentrador da renda causado pelo pagamento do benefício aos mais ricos pode ser ao menos mitigado pela obrigatoriedade de declarar o seu recebimento ao Imposto de Renda, fazendo com que os que devem prestar contas anualmente à Receita devolvam parte dos benefícios recebidos aos cofres públicos, com alíquotas progressivas conforme a renda, podendo chegar até a 90% do benefício social eventualmente recebido pelos mais abastados.
Desta forma, temos o duplo efeito de reduzir tanto a possível concentração de renda quanto o custo fiscal do programa. A experiência recente do Auxílio Emergencial, que obriga os declarantes do IR a devolverem o que receberam indevidamente, prova que não há dificuldades para a adoção desse mecanismo.
A calibragem do valor do benefício é igualmente importante. Este não deve ser tão pequeno que não atenda às necessidades mais básicas, nem tão grande que desestimule a busca por emprego e imponha custos fiscais demasiado elevados, o que certamente aumentaria a resistência à criação do programa. Algo próximo de um quarto do salário mínimo por adulto, podendo ainda acrescentar um valor menor por criança a ser pago às suas mães, talvez seja suficiente para garantir o acesso à alimentação e para retirar grande parte da população da pobreza, que é definida pelo recebimento de meio salário mínimo per capita, além depossivelmente extinguir a pobreza extrema no país. A busca por trabalho não seria desestimulada, ao mesmo tempo em que os trabalhadores seriam empoderados, visto que aumentariam suas condições de recusa a propostas de trabalho em condições extremas ou por salários aviltantes, o que poderia levar a uma elevação da massa salarial, com efeitos positivos sobre o nível de atividade econômica.
Evidentemente, os valores são vultosos. Segundo a PNADC do último trimestre de 2020, a população brasileira era de 211.650 mil habitantes, sendo que 35.300 mil têm até 13 anos. Na hipótese da concessão de benefícios de um quarto do salário mínimo aos maiores de 14 anos e da metade desse valor às crianças, essa proposta poderia custar até 640 bilhões de reais anuais, ou cerca de 8,5% do PIB, numa estimativa ligeira. A experiência do Auxílio Emergencial de 2020, que se anualizado custaria algo semelhante, mostra que é perfeitamente viável ao Brasil, uma das dez maiores economias e maior produtor de alimentos do planeta, adotar um programa de Renda Básica Universal, em substituição a parte dos atuais programas de distribuição de renda, como o Bolsa Família, e permitindo redesenhar outros benefícios, como o Seguro Desemprego.
Desta forma, para além de não simplesmente acrescentar o custo fiscal da renda básica ao dos benefícios sociais já existentes, ainda poderia ser em parte financiado pelo aumento da arrecadação fiscal trazida por sua adoção, seja pelo incremento da atividade econômica pela via do consumo ampliado ou pela devolução de parte dos benefícios recebidos pelos declarantes do IR, como já explicitamos.
E ainda ter seu financiamento viabilizado pela ampliação da justiça fiscal, com o aumento da progressividade do IR; a tributação de grandes fortunas; o aumento progressivo das alíquotas do imposto sobre heranças e doações; a criação de um imposto sobre a propriedade de aeronaves e embarcações, nos moldes do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores; e o fim da isenção fiscal sobre a distribuição de lucros e dividendos e de juros sobre capital próprio para as pessoas físicas, excrescências que inexistem em todo o globo, com exceção do Brasil e da Estônia.
A redução da desigualdade extrema que a adoção de um adequado e bem desenhado programa de Renda Básica Universal traria ao país, quer pelo aumento da renda dos mais pobres, quer pelo aumento da tributação dos mais ricos, elevaria o nível de atividade econômica de forma sustentada – como mostra a experiência da Europa no pós-guerra – criando um ciclo virtuoso de crescimento e distribuição de renda e retirando o Brasil do vergonhoso rol dos países mais desiguais do mundo. Extinguiria as chagas da fome e da pobreza extrema e oneraria uma parcela muito pequena da população, para quem pouca diferença faria reduzir um pouco sua renda disponível, visto que entesouram a maior parte dos seus rendimentos.
Os impedimentos, é preciso frisar mais uma vez, para o atingimento de tão grandes conquistas não são de natureza econômica, mas política. Não há qualquer razão técnica que obrigue que um país de tantos recursos como o Brasil condene a maioria de sua população à insegurança alimentar, ao desemprego, ao desamparo e à exclusão social enquanto assiste a um crescimento acelerado da concentração de renda e riqueza no topo da pirâmide social.
Trata-se de uma decisão que cabe à sociedade tomar: manter os vergonhosos índices de desenvolvimento humano hoje ostentados em nome de criar mais bilionários – que seguem brotando como cogumelos depois da chuva, mesmo na conjuntura econômica desfavorável em que nos lançaram as políticas econômicas liberais, ao fim e ao cabo agravada pela gestão criminosa da emergência sanitária. Ou finalmente curar as feridas deixadas por séculos de escravidão, exclusão e abandono?
Assistiremos o Brasil retornar à realidade da República Velha, permitindo que se continue a destruir a proteção social e os direitos trabalhistas duramente conquistados pela luta de gerações, ou finalmente ingressaremos no século 21? A questão está em aberto, e o desastre humanitário que hoje vivemos impõe à atual geração encaminhar a sua solução definitiva. Basta de paliativos, que no máximo adiam a solução dos problemas, quando não os pronunciam. É hora de debater seriamente que tipo de sociedade queremos ser. Não é mais possível aos brasileiros assistirmos impassíveis à crescente uberização das relações de trabalho, ao visível avanço da fome e da miséria e à destruição do aparelho de Estado que são as consequências das políticas liberais defendidas pela maior parte da elite, que não deseja contribuir com a justa parte na construção da sociedade mais próspera, igualitária e solidária que temos a capacidade de erguer.
Bastiões históricos do liberalismo, como os EUA, o FMI e o Banco Mundial, assim como pensadores honestos de formação econômica neoclássica, já questionam as velhas políticas liberais que trouxeram o planeta à beira da catástrofe social e ambiental. A Economia de Francisco e Clara também está a impor o mais que necessário arejamento das pautas econômicas ainda em voga no Brasil, desinterditando o debate, antes que alcancemos o inevitável abismo para onde caminhamos.
André Luiz Passos Santos é economista, mestre em História Econômica pela USP e doutorando no IE/ UNICAMP.