Seria muito bom poder atender ampla parcela da população brasileira, marcada pela vulnerabilidade social e pela informalidade, mas se ao menos conquistássemos uma renda básica digna focada em famílias com crianças e jovens já daríamos um importante passo.
Gregório Durlo Grisa
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 07/07/2020
A garantia por parte do Estado de uma renda básica permanente não é algo simples de se colocar em prática. São necessárias costuras políticas complexas e múltiplas análises do cenário fiscal presente e futuro do Brasil. Felizmente, qualificadas mentes do debate público como Tatiana Roque, Monica De Bolle, Daniel Duque e Naercio Aquino Menezes Filho, entre outros, estão se mobilizando para desenhar um novo arcabouço de proteção social no país, dando continuidade à histórica luta do ex-senador Eduardo Suplicy por uma renda básica universal.
Idealmente falando, seria muito bom poder atender ampla parcela da população brasileira, marcada pela vulnerabilidade social e pela informalidade, mas se ao menos conquistássemos uma renda básica digna focada em famílias com crianças e jovens já daríamos um importante passo.
Os estudos do Nobel de economia James Heckman demonstram que países que não investem na primeira infância apresentam maiores índices de criminalidade, de gravidez na adolescência, de evasão no ensino médio e níveis menores de produtividade no mercado de trabalho. Sabemos hoje que nos primeiros anos de vida nosso cérebro se desenvolve intensamente e tem mais maleabilidade, estímulos adequados nessa fase resultam no amadurecimento de habilidades como atenção, motivação, autocontrole e sociabilidade, fundamentais para o êxito na trajetória escolar e profissional futura. O investimento nas crianças pequenas, inclusive desde o pré-natal, é o que mais gera retornos futuros para a sociedade, o que mais tem potencial para quebrar ciclos de pobreza e a rigidez das hierarquias sociais, tão marcantes no caso brasileiro.
As dimensões etárias, raciais e de gênero das nossas desigualdades também justificam uma renda básica com foco nas crianças e jovens. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2019, assustadores 42,3% das crianças e jovens de 0 a 14 anos vivem na pobreza, diante de 7,5% da população com mais de 60 anos. Trinta e dois por cento da população negra estão na pobreza; indicador que é de 15% para os brancos. Quando pensamos em arranjos familiares, uma mulher sem cônjuge e com filho(s) até 14 anos tem cinco vezes mais chance de estar na pobreza do que um casal sem filhos; se ela for negra, seis vezes mais chance.
O que isso tem a ver com educação? Tudo. Uma renda básica para famílias com crianças e jovens (condicionada à frequência escolar como é o Bolsa Família), além de os garantir dignidade, viabiliza condições para uma maior segurança alimentar, o que impacta no desenvolvimento cognitivo. O acompanhamento familiar da vida escolar dos estudantes pode melhorar, assim como se combateria o trabalho infantil e a violência doméstica.
Simulações retrospectivas feitas em um trabalho do economista Marcelo Medeiros e coautores do Ipea demostram os limites da educação, tomada aqui como expansão da escolaridade da população, como ferramenta única de combate à desigualdade e à pobreza. A pesquisa conclui que a “duplicação da proporção de trabalhadores com ensino médio no Brasil não resultaria em uma diminuição substancial na desigualdade e que seria necessária uma melhoria muito mais radical para que obtivéssemos mudanças mais expressivas, por exemplo, a universalização do ensino superior acompanhada da manutenção dos retornos, algo extremamente implausível”.
A maior escolarização recente dos mais pobres, apesar de representar um avanço civilizatório, não tem garantido por si só maior empregabilidade, aumentos significativos de remuneração e ascensão social em grande escala. Não se pode atribuir isso apenas à qualidade da nossa educação. Estamos diante de um problema estrutural que envolve desde a arquitetura de uma economia primarizada, com baixa formalização e assentada nos serviços, até nossa incapacidade de promover políticas públicas que aloquem recursos para proteger crianças e jovens.
O nível de financiamento educacional no Brasil não permite que a escola garanta aos alunos mais pobres aquilo que se espera que as famílias de classe média garantam para seus filhos: bons materiais escolares, acesso à internet e a ferramentas digitais, aulas de reforço quando necessário. A renda básica constituiria um cinturão de proteção social cuja externalidade seria permitir que a educação cumprisse de forma mais eficaz seu papel equitativo.
Crianças e jovens que tenham sempre o que comer no café da manhã, o que vestir, que durmam melhor e não precisem precocemente trazer alguma renda para casa terão um rendimento escolar melhor. A renda básica seria um vetor essencial de uma macro política para primeira infância, com potencial de beneficiar a sociedade como um todo, haja vista o protagonismo do consumo das famílias no crescimento econômico. Ela se impõe como pauta inadiável diante do drama social e educacional que a pandemia nos legará.
Gregório Durlo Grisa é professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Educação.