Regulamentação da Convenção 151 e da Recomendação 159, da OIT: objetivos, implicações e desafios

Fotografia: Raphael de Araújo/Fenajufe

A regulamentação da negociação coletiva no setor público dará espaço não só à democratização das relações de trabalho, como também à democratização do próprio Estado

Luís Fernando Silva

Há mais de treze anos o Congresso Nacional ratificava a Convenção nº 151 e a Recomendação nº 159, da OIT[1], que asseguram a liberdade de organização sindical na administração pública e introduzem em nosso ordenamento jurídico o direito dos trabalhadores do serviço público à negociação coletiva de suas condições salariais e de trabalho, este último um pilar fundamental para a completa formação do direito à sindicalização dessa importante parcela da classe trabalhadora. Uma iniciativa que visa colocar o Brasil no plano das democracias que evoluíram para reconhecer a possibilidade de oposição de interesses entre os trabalhadores do serviço público e o Estado, sem que a isso signifique qualquer ferimento do princípio da indisponibilidade do interesse púbico.

A forma como a Convenção e a Recomendação foram aprovadas pelo Congresso Nacional[2], contudo, acabou tornando necessária a sua regulamentação por lei, sem o que o direito em questão permanecerá ineficaz, permitindo que permaneça incólume a (indevida) discricionariedade do gestor público em negociar ou não com as entidades representativas dos servidores a ele subordinados, seja no âmbito da União, dos Estados ou dos Municípios, como é bem comum ver ocorrer.

Por isso a eleição de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República – seguida da formulação do Projeto de Lei nº 1.726, em tramitação no Senado Federal[3], e da recente publicação do Decreto Presidencial nº 11.669 -, fizeram emergir a justa expectativa de que dessa vez finalmente alcancemos a esperada regulamentação desse direito, já que além de favorecer diretamente os próprios trabalhadores do serviço público, ele se mostra fundamental também para a população brasileira que depende desses serviços, haja vista tratar-se de direito que constitui ferramenta crucial para a obtenção de soluções negociadas (e mais rápidas) para os conflitos de interesses naturalmente gerados da relação entre os servidores e a administração, os quais – à mingua de tal instrumento -, geralmente jazem desprezados pelo gestor público, dando azo à deflagração de greves de longa duração, instauradas muitas vezes com o objetivo de abrir o processo negocial, trazendo à população que necessita desses serviços um prejuízo que poderia ser evitado ou mitigado.

Para chegarmos lá, contudo, é certo que ainda teremos que enfrentar importantes dificuldades políticas, seja porque alguns Governadores e Prefeitos conservadores não tardarão a se colocar contra o próprio mérito da questão -mercê da visão patrimonialista de Estado que ainda nutrem -, opondo-se à possibilidade de abrangência nacional da norma regulamentadora sob o (falso) argumento jurídico de que a União não deteria competência para editar e impor norma legal sobre negociação coletiva aplicável a Estados e Municípios (conforme já ocorreu com o “veto” oposto por Temer em 2017[4]), seja porque a maior parte do Congresso Nacional é composta por neoliberais que ainda comungam da concepção que deu base à própria formação do Estado moderno como garantidor do capitalismo, para a qual o tecido social deve estar fundado numa distinção profunda entre capital e trabalho, devendo esse último ser mantido o mais possível no nível do indivíduo, de modo não só a reduzir a sua possibilidade de aquisição de consciência de classe, mas também a reduzir a sua participação em espaços coletivos de enfrentamento do próprio sistema capitalista, como sabem ser os sindicatos.

É nesse contexto, e com esses objetivos mais amplos, que devemos ver a regulamentação da negociação coletiva na administração pública, na medida em que ela vem exatamente contribuir para a consolidação e a ampliação do sentimento de classe – ou o seu restabelecimento, onde ele foi perdido -, indispensável para que os trabalhadores dos serviços públicos se vejam como agentes ativos no processo de mudanças que o Estado brasileiro precisa experimentar para se tornar capaz de promover distribuição de renda e justiça social, ao tempo em que contribuirá sobremaneira para a superação da antiga e absurda visão do trabalhador do setor público como “serviçal” do governante, que marcou nossa história desde o Brasil Império, e que segue produzindo seus deletérios efeitos até os dias atuais, como vimos ocorrer inúmeras vezes durante o Governo Bolsonaro.

É que o direito à negociação coletiva implica no reconhecimento jurídico de que os trabalhadores do serviço público – independentemente do vínculo “celetista” ou “estatutário” com a administração -, são sujeitos detentores de direitos oponíveis ao Estado de forma coletiva, enquanto categoria, o que implica na introdução de uma dinâmica que se opõe à atomização da classe trabalhadora em simples indivíduos, tão desejada pelo capitalismo, ao tempo em que dá ensejo, também, à superação do argumento segundo o qual a introdução da negociação coletiva no setor público enfrentaria óbice no princípio constitucional da primazia do interesse público, até porque essa primazia não deveria estar (como está para alguns) na falsa proteção do Estado diante dos legítimos interesses de classe dos trabalhadores do serviço público, e sim na preservação e realização dos interesses da população brasileira, que assim tenderá a ver os conflitos eventualmente instaurados serem resolvidos com maior celeridade e eficácia.

De outra parte, nos soa evidente que tratando-se de regulamentação de uma Convenção Internacional, a competência para sua regulamentação no plano interno é exclusiva da União, sem que haja aqui qualquer espaço constitucional para o exercício de competência concorrente por parte de Estados e Municípios, salvo aquela que lhes seja especialmente reservada pela própria norma regulamentadora nacional, soando evidente também, a nosso sentir, que o tão desejado regulamento venha a alcançar a mesma amplitude de aspectos jurídicos contida na Convenção e da Recomendação que lhes servem de motivo, não devendo por isso se limitar apenas à regulamentação da própria negociação coletiva, stricto sensu, cabendo-lhe ir além,  para dispor também sobre outras garantias necessárias ao pleno exercício do direito de greve e à efetiva realização do direito à sindicalização, tais como a garantia de acesso de dirigentes sindicais aos locais de trabalho; a liberação de “ponto” para participação da categoria em eventos sindicais; a concessão de licença remunerada de dirigentes sindicais, com ônus para a administração pública; e o mecanismo de financiamento das entidades sindicais, dentre outras.

Nesse diapasão, é certo que as discussões em torno da proposta de regulamentação da negociação coletiva colocarão no centro do debate político ao menos duas questões de crucial relevância para a própria eficácia do processo que pretende regular, quais sejam:

a) a definição de que a participação no processo negocial cabe precipuamente às entidades dotadas de feição sindical (nos termos do art. 8º, da Carta da República), admitindo-se a participação de entidades de cunho meramente associativo apenas quando se tratar de categorias onde inexistam sindicatos representativos; e,

b) a definição sobre quais entidades sindicais detém a necessária legitimidade e representatividade para negociar, tarefa essa que, a nosso sentir, deve ser entregue diretamente às próprias organizações sindicais de servidores públicos, às quais compete chegar a um consenso capaz de afastar a (indesejada) intervenção do Poder Público na disputa, admitindo-se essa intervenção, por lei, apenas nos casos em que não seja possível chegar ao pretendido consenso, hipótese em que o critério que se nos apresenta mais objetivo e politicamente justo é aquele que faz recair essa representatividade e legitimidade sobre o sindicato que detiver maior número de sindicalizados.

Demais disso, penso que o debate em torno da regulamentação da negociação coletiva pode trazer consigo a discussão em torno de outro tema de relevo, qual seja a regulamentação do exercício do direito de greve no setor público.

Neste sentido é imperioso recordar que o que temos na prática, hoje, já é uma regulamentação desse direito, realizada através de decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Mandados de Injunção[5], impondo que sejam observados os dispositivos da Lei nº 7.783, de 1989, que rege a realização de greves no setor privado. Ou seja, enquanto não vier outra norma legal as greves no serviço público seguirão submetidas à incidência da Lei de Greve do setor privado, incapaz de responder às especificidades e peculiaridades do trabalho na administração pública, como a especialidade dessas atividades, para fins de enquadramento como “serviços e atividades essenciais”, que vem dando margem à decisões judiciais absurdas, como aqueles que mesmo professando o direito à greve, determinam a manutenção de absurdos percentuais como 90% (noventa por cento) ou 100% (cem por cento) em funcionamento.

Pensamos, assim, ser fundamental que estejamos preparados para esse debate (se ele vier), comungando do entendimento daqueles que sustentam que a melhor alternativa seria a auto-regulamentação, ou seja, que a lei venha a delegar às entidades sindicais representativas dos trabalhadores do serviço público a atribuição de regular o direito, dizendo em que condições e limites a greve no setor deve ser exercida, cabendo-lhes ainda,  ato continuo, promover o depósito (entrega) dessas regras junto a organismos competentes, como o Ministério Público, o Ministério da Justiça, e os Ministérios e Secretarias responsáveis pela operacionalização da negociação coletiva nos âmbitos federal, do Distrito Federal, dos Estados ou dos Municípios, dando-lhe ampla divulgação também entre entidades representativas da sociedade civil, como a OAB, a CNBB, a ABI, dentre outras de expressão nacional, para que fiscalizem o cumprimento do que for regulado.

Por fim, temos que a regulamentação da negociação coletiva no setor público dará espaço não só à democratização das relações de trabalho, como também à democratização do próprio Estado, tornando-o mais permeável a debates em torno da necessária modernização da máquina administrativa, da ampliação dos serviços públicos (em especial nas áreas de maior interesse social), e da valorização da função pública, tão indispensáveis à prestação de serviços públicos de qualidade.

Notas

[1] Organização Internacional do Trabalho;

[2] A Convenção nº 151 e a Recomendação nº 159, foram aprovadas pelo Congresso Nacional por intermédio de Decreto Legislativo, o que coloca as normas internacionais no patamar de lei ordinária;

[3] De autoria do Senador Paulo Paim – PT/RS),

[4] Quando o Projeto de Lei nº 3.831, de 2015[4], de autoria do Sem. Antonio Anastasia (PSDB/MG) foi integralmente vetado pelo então Presidente Michel Temer;

[5] Como foram os casos dos Mandados de Injunção nºs 670, 708 e 712;

Autor é advogado integrante do Escritório SLPG Advogados e Advogadas, com sede em Florianópolis/SC. Graduado em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialização em relações laborais pela Universidade Castilha La Mancha/Espanha. Integra o Conselho Consultivo da Associação Americana de Juristas – Rama Brasil. É pesquisador-colaborador da Escola Nacional da Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz;

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