Reforma Tributária precisa reduzir o déficit social

Fotografia: Unidos do Bem

Uma reforma tributária com justiça fiscal é capaz de reduzir profundamente a desigualdade social. Não há justificativa técnica para que o direito à alimentação não seja plenamente atendido.

Dão Real Pereira dos Santos

Fonte: IHU, com Ecodebate
Data original da publicação: 09/05/2023

Não há justificativa técnica para que o direito à alimentação não seja plenamente atendido. Se as pesquisas estão certas e se uma cesta básica é suficiente para prover a alimentação de uma família por um mês, a erradicação total da fome no Brasil teria um investimento de aproximadamente R$ 60 bilhões ao ano, que corresponderia a uma cesta básica (R$ 731,00) por mês para sete milhões de famílias que se encontram em situação de fome no Brasil.

Em 2021, as empresas multinacionais que atuam no Brasil remeteram para o exterior mais de R$ 140 bilhões de lucros isentos de Imposto de Renda. Em 2020, foram distribuídos para pessoas físicas no Brasil mais de R$ 500 bilhões de lucros e dividendos, também isentos do Imposto de Renda. Com a revogação apenas destas duas isenções concedidas às rendas do capital, já seria possível arrecadar mais de R$ 120 bilhões, o dobro do que seria necessário para acabar com a fome. Essa proposta não representa nenhuma revolução. Todos os países cobram imposto sobre lucros e dividendos distribuídos. Portanto, se vamos fazer uma reforma tributária séria, precisamos tratar de reduzir os nossos déficits sociais, começando pela erradicação da fome.

Nesses tempos em que a Reforma Tributária tem ocupado, diariamente, as manchetes dos jornais, é preciso colocar um pouco de luz sobre os nossos déficits sociais. O que está faltando para que os direitos sociais definidos na Constituição Federal, há quase 35 anos, possam ser efetivamente atendidos? Mais do que uma questão técnica, é do financiamento público que estamos tratando. Se vamos reformar o sistema tributário, as dívidas sociais, que se acumulam ao longo do tempo, precisam ser consideradas.

O Artigo 6º da Constituição Federal de 1988 não poderia ser mais explícito ao determinar que, ao lado da saúde, da educação, da previdência e da segurança, a alimentação constitui também um direito social, ou seja, o acesso à alimentação precisa ser garantido pelo Estado a todos e de forma indiscriminada. Vou me ater, neste artigo, apenas a este direito social, ainda não atendido, mas que deveria estar no campo das preocupações daqueles que estão pensando em uma nova estrutura tributária para o país.

O preâmbulo da Constituição estabelece que o nosso Estado Democrático se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança e o bem-estar, dentre outras coisas. A dignidade humana é um dos fundamentos da nossa sociedade, que tem como objetivo, entre outros, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e não há como desconectar esses pressupostos à necessidade de garantir a todos o acesso à alimentação.

Segundo o Relatório sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Rede Penssan) 15,5% da população, que corresponde a 33,1 milhões de pessoas, passavam fome em 2022. São pelo menos sete milhões de famílias vivendo nesta situação dramática. A fome significa exatamente a negação do direito à alimentação. Ao atribuir à alimentação a condição de um direito social, os constituintes relativizaram a sua condição de mercadoria, ou seja, ninguém pode ser privado da alimentação, ainda que não tenha condições financeiras para adquiri-la no mercado.

Assim como a todos deve ser assegurado o acesso à saúde e à educação, também deve ser assegurado o acesso à alimentação, e essa é a forma mais direta de erradicar a fome, de garantir o direito à vida, direito fundamental constante do Artigo 5º da Constituição e de observar o fundamento da dignidade da pessoa humana (Artigo 4º da CF/1988).

A universalidade dos direitos impõe ao Estado e à sociedade a obrigação de prover os meios necessários para sua implementação. Assim é com a saúde pública que deve estar disponível, tenham ou não, os seus usuários, condições financeiras. Diversas decisões judiciais têm confirmado essa condição da saúde como um direito social ao determinar obrigações ao SUS de financiar o acesso a medicamentos ou tratamentos específicos, muitas vezes, extremamente onerosos aos cofres públicos. Também o acesso à justiça é um direito que assiste a todos, independente de quanto isso represente em termos de gastos para o Estado.

O que é direito não é mercadoria, embora, para alguns, tais coisas possam ser obtidas no mercado, como a educação, a saúde, a segurança ou a previdência, por exemplo. No entanto, para todos os que necessitarem, o direito precisa ser garantido, mesmo que a pessoa não tenha condições de pagar. Por que, então, a alimentação básica ainda não está disponível a todos? Por que há tanta gente que ainda passa fome no Brasil? Não é por falta de alimentos, evidentemente, pois somos um dos maiores exportadores de grãos do planeta.

Obviamente que nem todos os direitos previstos no Artigo 6º da Constituição já estão sendo garantidos plenamente ou de acordo com as necessidades ou expectativas da população, mas alguns deles, no entanto, são recorrentemente ignorados como direitos. É o caso da alimentação, do trabalho, da moradia, do transporte e do lazer, por exemplo.

Por outro lado, o direito à obtenção de renda pelo trabalho não substitui os demais direitos e não é possível imaginar que se pudesse negar acesso à saúde, à educação, à segurança àqueles que possuíssem renda. Por outro lado, não pode nos passar despercebido que o pleno atendimento dos direitos sociais pode significar uma elevação no valor dos salários, já que os trabalhadores com suas necessidades essenciais atendidas podem não se submeter a qualquer condição de emprego. Em sentido oposto, necessidades não atendidas pelo Estado aumentam a disponibilidade para o trabalho sob quaisquer condições, o que implicaria a redução geral das remunerações. Essa constatação nos ajuda a entender por que há tantas resistências para o avanço das políticas de ampliação e de garantia dos direitos sociais.

O acesso à alimentação necessária à sobrevivência não deve ser tratado como uma contrapartida da renda do trabalho, assim como o acesso à saúde pública não é. Portanto, o direito ao salário para os que trabalham ou à renda básica para os que estão em situação de vulnerabilidade não substitui o direito à alimentação, assim como não substitui o direito à educação e à saúde. Imaginar que se possa considerar atendido o direito à alimentação pela garantia de renda apenas reforça a tese de substituição dos serviços de saúde e de educação por vouchers, que os liberais tanto defendem.

Dão Real Pereira dos Santos é auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos.

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