Com o novo presidente já empossado e o fim do recesso no Congresso Nacional, começou, enfim, o ano político em Brasília. Com isso, voltou à pauta a reforma tributária, assunto debatido há décadas e que, desta vez, pode mesmo sair do papel.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu em sua campanha eleitoral trabalhar por essa reforma. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), afirmou durante sua participação no Fórum Econômico Mundial, na Suíça, que espera que o texto seja aprovado por deputados e senadores ainda neste semestre.
Recém-reeleitos, os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sinalizaram que o cronograma é viável.
Lira falou em aprovar um texto na Câmara em três meses, isto é, até o final de abril. Pacheco, que já queria ter votado a reforma no ano passado, destacou em discurso na quarta-feira (1º) que pretende colaborar com o governo para que projetos considerados prioritários sejam apreciados o mais rápido possível no Senado.
Tramitam hoje no Congresso duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) para a reforma. Uma, a PEC 45/2019, está hoje em análise na Câmara. A outra, a 110/2019, está no Senado. Ambas tratam basicamente dos mesmos temas.
Até o momento, o governo não se pronunciou sobre qual dessas propostas é considerada a melhor. A proposta da Câmara está em está em estágio pouco mais adiantado de tramitação, pois já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e enviada a uma comissão especial para sua avaliação. A proposta do Senado não passou por comissões.
Que reforma é essa?
A PEC 45/2019 e a PEC 110/2019 propõem uma reforma sobre impostos vinculados ao consumo. Toda loja que vende uma mercadoria ou prestador que realiza algum serviço é obrigado a recolher um imposto sobre esse ganho. Isso acaba embutido nos preços e, no final das contas, pago pelo consumidor. A reforma em discussão no Congresso quer rever esses impostos, pagos indiretamente pela população.
Há diferentes tipos de impostos cobrados sobre mercadorias e serviços: PIS, Cofins, ISS e ICMS, entre outros. Parte deles são federais, outros estaduais e ainda existem os municipais. A cobrança de cada imposto segue uma determinada lei. Um mesmo imposto, em estados diferentes, pode ter uma forma de cobrança diferente também.
Essa pluralidade de regras, segundo Vilson Antonio Romero, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), torna o sistema tributário brasileiro um “manicômio”. Por isso, o grande objetivo das duas PECs em tramitação no Congresso é a simplificação.
As duas preveem a criação de uma regra única e global para os impostos sobre consumo no Brasil. Preveem também a unificação de tributos.
Basicamente, as propostas apontam para a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Ele substituiria a maior parte dos tributos existentes hoje.
No caso da PEC 45/2019, o IBS seria um imposto único cobrado sobre qualquer compra ou serviço. A arrecadação dele seria dividida entre União, estados e municípios.
Já a PEC 110/2019 prevê que o IBS seria o único imposto estadual e municipal. O governo federal arrecadaria por meio da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS).
“Com a reforma, vamos simplificar o sistema, acabar com o litígio tributário e ter mais transparência nessa loucura, nesse manicômio tributário que é o Brasil”, disse Romero.
Marcelo Lettieiri, conselheiro do Instituto Justiça Fiscal, afirmou que, com uma tributação mais simples, empresas não precisariam manter uma estrutura tão grande só para acertar suas contas com o fisco. Em tese, sobraria mais tempo e dinheiro para produzir.
“Isso ajudaria a economia porque as empresas gastariam menos para administrar a sua contabilidade e pagar seus impostos”, explicou.
Um estudo de pesquisadores do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), que colaborou com a elaboração da PEC 45/2019, estima que o Produto Interno Bruto (PIB) Nacional poderia crescer até 20% em 15 anos com a aprovação dessa proposta de reforma. O crescimento seria resultado do investimento do capital economizado por empresas com a simplificação.
Por que não saiu?
Lettieiri ratifica que os objetivos da reforma são louváveis. Lembra, no entanto, que ela ainda não foi aprovada porque também contém pontos polêmicos e pode prejudicar alguns setores da economia, que trabalham para alterá-la.
Segundo ele, empresas de planos de saúde, por exemplo, hoje pagam cerca de 6% de impostos sobre seu faturamento em Imposto Sobre Serviços (ISS), recolhido por prefeituras. Se a reforma passar, esse imposto subiria para a alíquota padrão, que está estimada entre 25% e 30% do faturamento. A alta poderia acarretar em custos extras para os usuários de planos de saúde, criando problemas para a população.
Romero, da Anfip, disse que o conjunto da legislação tributária federal garante hoje isenções tributárias de R$ 400 bilhões por ano a determinadas empresas. Essas isenções, em tese, são concedidas para estimular setores da economia. Com a reforma, eles tendem a acabar, contrariando os interesses de quem hoje é beneficiado.
Por fim, o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional), Mauro Silva, lembrou que essa proposta está sendo discutida em Brasília, mas diz respeito a interesses de todos os estados e municípios do país. Chegar a um acordo entre todas essas partes é complicado. Por isso, a dificuldade em aprová-la.
Essa reforma resolve?
Silva, aliás, ressaltou que a reforma dos impostos sobre o consumo não é a única necessária para criação de um sistema tributário justo no Brasil, conforme prometeu Lula. Para ele, mais urgente é a reforma sobre o imposto de renda, cobrado sobre salários e lucros, por exemplo.
O ministro Haddad afirmou, também na Suíça, que essa reforma deve ser apresentada pelo próprio governo ao Congresso Nacional no segundo semestre, após a reforma dos impostos sobre consumo ser concluída.
Ele não deu detalhes sobre a proposta do governo. Lula, por sua vez, já disse que a ideia é reduzir a tributação sobre os mais pobres e aumentar sobre os mais ricos. “O pobre que ganha R$ 3 mil proporcionalmente paga mais que alguém que ganha R$ 100 mil. Quem ganha muito paga pouco porque quem ganha muito recebe como dividendo, como lucro, para pagar pouco imposto de renda”, disse o presidente.
Silva afirmou que reformar o imposto sobre renda não significa apenas corrigir a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) – o que, aliás, também é promessa de campanha de Lula. É preciso rever as isenções concedidas a donos de empresas.
“Não é simplesmente aumentar as alíquotas na tabela para até 35% [hoje são até 27,5%] e dizer que está taxando ricos”, disse Silva. “Se você não combater a ‘pejotização’ e tributar dividendo, não vai cobrar 35% de imposto de ninguém.”
É preciso também, disse Mauro, rever até a forma como impostos sobre o lucro das empresas é cobrado. Tudo isso, considerando que não se pode comprometer a competitividade de empresas brasileiras no mundo.
“Quando fala-se em imposto de empresa eu não posso comparar uma alíquota nos Estados Unidos com uma alíquota no Brasil: ‘aqui é 35% e lá 24%'”, explicou Silva, que é auditor da Receita. “O importante é a base de cálculo. No Brasil, no lucro tributado, há muitas coisas que são excluídas, coisa que não acontece em outros países.”
Lettieiri reforçou que questões como as apontadas por Silva são as mais importantes quando o assunto é reforma tributária. Ratificou que a simplificação prometida é positiva, mas não é crucial.
“Essa reforma não resolve o principal problema do nosso sistema tributário”, disse. “O principal problema é que ele é muito regressivo [cobra mais de pobres que de ricos]. Também é muito forte sobre o consumo e muito baixo sobre renda.”
Segundo Lettieiri, cerca de 35% dos impostos arrecadados no Brasil são sobre consumo. A média de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) é 22%. E a proposta de reforma no Congresso não propõe alterar isso.
Já a média da tributação sobre a renda na OCDE é 33%. No Brasil, 22% dos impostos arrecadados são sobre a renda. A reforma do imposto de renda pode mudar isso, mas ela está atualmente em segundo plano.
E o patrimônio?
Ainda de acordo com Lettieiri, só 5% dos impostos nacionais são sobre patrimônio: sobre propriedade de carro ou casa, por exemplo. Além disso, no país, não há imposto sobre fortunas, defendido pelo especialista.
“O ideal é você tributar bem a renda e não o patrimônio. Mas como a gente não tributou a renda nos últimos 20 anos, os ricos criaram uma riqueza muito grande com renda não tributada“, afirmou. “Eu sou defensor de um imposto sobre grandes fortunas provisório. Cinco anos cobrando sobre o que foi gerado por essa renda não tributada. Depois, acabou.”
Silva, da Unafisco, defende a tributação patrimonial porque ela cria uma “sensação de justiça tributária no país”, apesar de não ser relevante em termos de arrecadação.
“É uma questão para a moral do contribuinte, para que a classe média não se sinta enganada”, afirmou. “Ver quem tem jatinho ou iate pagando imposto. Hoje não paga.”
Nem governo, nem Congresso deram sinais de compromisso com propostas que mexem com esse tipo de tributação.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Vinicius Konchinski
Data original da publicação: 04/02/2023