Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 28/02/2019
A diferença na idade mínima entre homens e mulheres proposta por Jair Bolsonaro em sua Reforma da Previdência é suficiente para compensar a dupla jornada de trabalho à qual boa parte das mulheres está submetida? Elas acumulam sua ocupação com os afazeres domésticos e o cuidado com crianças e idosos e, no saldo final, trabalham mais horas por semana do que os homens sem serem remuneradas por isso. E sem contar esse tempo para a Previdência.
Trabalhadores urbanos podem pleitear a aposentadoria por idade aos 65 anos e trabalhadoras, aos 60. Em atividades rurais, as idades são de 60 e 55, respectivamente. A proposta de Reforma da Previdência apresentada por Jair Bolsonaro quer implementar uma idade mínima para todo mundo, inclusive os que hoje se aposentam por tempo de contribuição, estabelecendo 65 anos, para homens, e 62, para mulheres, na cidade, e 60 para ambos no campo. O tempo mínimo de contribuição passaria de 180 meses (15 anos) para 240 (20 anos).
O defensores da proposta – já abandonada pelo próprio presidente – de uma idade única para homens e mulheres afirmam que as taxas de sobrevida delas após os 65 anos são maiores que a dos homens. Mas isso ignora exatamente a jornada dupla, reconhecida pela Assembleia Constituinte, em 1988, após mobilização da sociedade civil, para fins de aposentadoria por idade, para tentar compensar parte de um sistema social e economicamente injusto.
A consciência sobre a divisão de responsabilidades no seio familiar melhorou nas últimas três décadas, mas ainda está longe de ser equilibrado. Da mesma forma, a mulher ainda ganha, em média, menos pela mesma função do que os homens. Isso sem contar que, não raro, ficam mais tempo fora do mercado de trabalho que os homens por conta da criação dos filhos.
Não se nega a importância de estabelecer uma idade mínima para aposentadoria uma vez que os que ganham menos já contam com essa barreira por não conseguirem contribuir por muito tempo dada a informalidade e o desemprego. Mas essa diferença de três anos basta para equilibrar o jogo entre homens e mulheres?
Já se discute no Congresso emendas para reduzir o tempo mínimo de contribuição para as mulheres em alguns anos, como reduzir um ano de contribuição para cada filho. Outras propostas devem diminuir a carência mínima para todas. A desigualdade competitiva que elas enfrentam, vale lembrar, não se deve a lacunas de formação, falta de dedicação ou competência questionada, mas pelo nosso machismo, que garante que tenham menos cargos de chefia e ganhem menos que nós.
A dedicação de mulheres a afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas representa quase o dobro da dos homens, com uma média de 20,9 horas semanais frente a 10,8 horas por semana. Os dados são de uma Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, divulgada pelo IBGE, em abril do ano passado. Mulheres no mercado de trabalho que também são responsáveis por afazeres domésticos ou cuidam de pessoas trabalham 4,8 horas a menos no mercado, mas 7,8 horas a mais em casa do que homens.
Infelizmente, trabalho doméstico ainda não é considerado trabalho, mas sim obrigação, muitas vezes relacionada a um gênero (e, não raro, também a uma cor de pele) que tem o dever de cuidar da casa. Dever este que não está escrito no código genético da humanidade, mas foi construído e imposto. E, transformado em tradição e cultura, é dificilmente discutido.
Não à toa que, apenas recentemente, a Organização Internacional do Trabalho tenha conseguido aprovar uma convenção para igualar direitos para trabalhadoras domésticas em relação ao restante da sociedade. Ou que o Brasil, apenas em 2015, tenha finalmente regulamentado a emenda constitucional que abriu uma fresta de luz para essa categoria, garantindo a elas os mesmos direitos desfrutados pelo restante da população. Vale lembrar que o então deputado federal Jair Bolsonaro votou contra a proposta de emenda constitucional.
O ganho médio mensal delas ainda corresponde a 85,1% do nosso salário, de acordo com a Relação Anual de Informações Sociais divulgada pelo governo federal em outubro do ano passado. Já a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua apontou que as mulheres ganhavam em média cerca de 70% do que salário masculino.
Segundo o IBGE, as mulheres continuam com menos acesso a cargos gerenciais do que os homens. No Brasil, em 2016, 62,2% dos cargos gerenciais, tanto no poder público quanto na iniciativa privada, eram ocupados por homens e 37,8% por mulheres.
Falta criar condições não apenas para que elas cheguem lá mas, chegando, sejam tratadas com o mesmo respeito que nós, homens. O que inclui a adoção de direitos reprodutivos nas políticas corporativas, por exemplo, garantindo que carreiras não sejam sepultadas na maternidade. Mas também uma mudança de mentalidade dentro de nossas próprias casas. Não se “ajuda” as mulheres em trabalhos domésticos, mas “compartilham-se” responsabilidades iguais.
A política, enquanto for um negócio majoritariamente de homens vai continuar decidindo em nome delas, aplicando resoluções que não casam necessariamente com sua realidade e prioridade. Não à toa, a imagem da entrega do texto da Reforma da Previdência ao Congresso mostra uma vastidão de homens brancos. Outras mulheres podiam estar no recinto, mas dependendo da foto, apenas uma ou duas aparecem, de forma coadjuvante, no enquadramento. Se a Câmara tivesse 50% de deputadas ao invés de 15% talvez essa discussão ocorreria em outras bases. Mas, daí, o país seria outro. E, com isso, esta discussão seria, em si, bizantina.
Em tempo: não entrei na discussão da equiparação das idades para homens e mulheres do campo em 60 anos porque este texto não trata de bobagens que serão retiradas se o governo quiser que sua proposta tenha chance de aprovação.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.