Além de aprofundar a pobreza no campo, as mudanças nas aposentadorias dos trabalhadores rurais da economia familiar e assalariados propostas na Reforma da Previdência deve aumentar o êxodo rural, os bolsões de miséria nas cidades, reduzir a oferta de alimentos e encarecer o custo de vida em todo o país.
É o que avalia Aristides Veras dos Santos, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). A entidade, que atua com 27 federações e mais de 4 mil sindicatos, coordena os esforços para retirar os pontos relacionados aos trabalhadores rurais da reforma. Agricultor familiar e formado em Letras, ele nasceu em Tabira, sertão de Pernambuco. Sua família produz milho e feijão e cria animais em uma propriedade de dez hectares.
“Ao desmontar esse sistema de proteção, o governo vai criar um problema sério na sociedade como um todo”, disse Aristides, em entrevista ao blog. Cálculos da Contag apontam que em 45% dos municípios brasileiros o montante da renda das aposentadorias rurais é maior do que o valor recebido do governo federal via Fundo de Participação dos Municípios.
A proposta enviada pelo governo Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional demanda de pequenos produtores, pescadores, extrativistas uma contribuição anual mínima de R$ 600,00, por família, durante 20 anos, ao invés de apenas comprovar o trabalho no campo por 15 anos, como é hoje. Não raro, esses grupos terminam o ano sem renda líquida, por fatores climáticos ou de preço no mercado, dependendo do Bolsa Família. Quanto aos assalariados rurais, o projeto prevê aumento de 15 para 20 anos de contribuições mensais. Para ambos, sobe a idade de aposentadoria da mulher, equiparando-a à do homem, de 55 para 60 anos.
As mudanças nas regras dos rurais são alvo de boa parte das emendas propostas por deputados federais na comissão especial que discute a reforma.
“A intenção do governo tanto com os segurados especiais quanto com os assalariados é transferir todos para o BPC [Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos em situação de miséria], ou seja, do Regime Geral para a Assistência Social. O que é um absurdo. Reduzir a Previdência e aumentar o BPC é a prova de que o Estado brasileiro não está criando as condições para incluir trabalhadores no seu sistema de produção e na cidadania”, afirma.
Em seu projeto enviado ao Congresso, o governo propôs que a idade mínima para que idosos em condição de miserabilidade (menos de R$ 249,50 de renda familiar mensal per capita) possam receber o salário mínimo mensal do Benefício de Prestação Continuada (BPC) passe de 65 para 70 anos. Em contrapartida, quer desembolsar uma fração desse total – R$ 400,00 – dos 60 aos 69 anos. A proposta foi duramente criticada uma vez que a vulnerabilidade é muito maior dos 65 aos 69 do que dos 60 aos 65.
“Quando os legisladores fizeram a Constituição de 1988, trouxeram os rurais para o Regime Geral da Previdência a fim de corrigir uma injustiça. O que o Bolsonaro quer fazer agora é cometer essa injustiça.”
De acordo com Aristides dos Santos, além de retirar as mudanças para os trabalhadores rurais da reforma, a Contag também defende excluir as alterações no BPC, a proposta de retirar as regras previdenciárias da Constituição, o pagamento de menos de um salário mínimo para benefícios e a previsão do sistema de capitalização, entre outros pontos.
Afirma que a entidade vem dialogando com o “centrão”, além da oposição, e que a pauta dos rurais têm receptividade. Mas que eles estão atuando nas bases dos parlamentares. ” Segundo a entidade, das 30.278.655 pessoas que recebiam benefício previdenciário, em 2018, 9.546.063 eram rurais.
Leia, abaixo, a entrevista com o presidente da Contag ao blog:
Como vocês avaliam a proposta da Reforma da Previdência para os trabalhadores rurais da economia familiar?
Primeiro, ela causará forte impacto negativo na própria renda dos municípios. Porque, em 45% deles, o montante da renda das aposentadorias rurais é maior do que o valor recebido do Fundo de Participação dos Municípios. Portanto, você vai ter impacto direto na economia local.
Segundo, há quem não conseguirá se aposentar. Os trabalhadores rurais da economia familiar, hoje, arrecadam uma alíquota no momento da venda de seus produtos, mas o obrigatório é comprovar 15 anos de atividade no campo. Agora, querem que eles arrecadem por 20 anos, mas se o grupo familiar não atingir a contribuição anual mínima de R$ 600,00, devem recolher a diferença até esse valor. Isso ignora que há estiagem, secas.
Além disso, o IBGE mostra que a média da renda líquida anual das famílias rurais não ultrapassa R$ 1500,00. Imagine nessa condição você tirar R$ 600,00 para a Previdência.
Quem é que vai permanecer no campo sem ter o mínimo de segurança via política pública? A pessoas vão optar ir para cidade, vai aumentar os bolsões de miséria. Uma das coisas que mais motivam pessoas a ficarem no campo, inclusive a juventude, é certeza de que irão se aposentar. Isso não é garantia pouca em momento de tanta dificuldade que a gente vive no país. A pessoa ter certeza que, na velhice, vai ter um mínimo para sobreviver é muito importante para fixá-la no campo.
E se houver êxodo rural, quem vai plantar, produzir os alimentos que chegam na cidade? Mais de 70% da população recebe alimentos que vêm da agricultura familiar. Se você quebra esse sistema de proteção, impacta nas famílias que moram no campo, mas também na vida das pessoas da cidade. E com menos alimento à disposição, aumenta o preço – o que vai comer mais renda das famílias urbanas. É só ver: quando falta tomate, falta cebola, como é que fica preço no mercado? A mudança na aposentadoria dos rurais vai encarecer o custo de vida nas cidades. O debate que a Contag vem fazendo é para mostrar que, ao desmontar esse sistema de proteção, o governo vai criar um problema sério na sociedade como um todo.
E o impacto nas mudanças dos trabalhadores assalariados rurais?
O governo está propondo mudar o tempo de contribuição de 15 para 20 anos e equiparar a idade mínima da mulher, hoje em 55 anos, com a dos homens – que está em 60. A Contag está conversando com parlamentares para garantir que a regra permaneça a de hoje. Se com 15 anos já é muito difícil, imagine o governo querer colocar mais cinco e ainda por cima depois da Reforma Trabalhista. E com uma média de contrato de quatro meses… Calcule quantos anos levaria para se aposentar uma pessoa que tem contrato formal de quatro meses a cada 12. A informalidade no campo passa de 60%. Isso vai deixar os assalariados rurais de fora da Previdência, empurrando todo mundo para o Benefício de Prestação Continuada.
A intenção do governo tanto com os segurados especiais quanto com os assalariados é transferir todos para o BPC, ou seja, do Regime Geral para a Assistência Social. O que é um absurdo. Reduzir a Previdência e aumentar o BPC é a prova de que o Estado brasileiro não está criando as condições para incluir trabalhadores no seu sistema de produção e na cidadania.
Essas pessoas contribuíram ou comprovaram atividade no campo. E a assistência social não te dá 13o e outros benefícios que só o segurado da Previdência tem direito ao longo de sua vida laboral. Quando os legisladores fizeram a Constituição de 1988, trouxeram os rurais para o Regime Geral da Previdência a fim de corrigir uma injustiça. O que o Bolsonaro quer fazer agora é cometer essa injustiça.
O que a Contag está fazendo para que a reforma leve em conta as suas propostas?
Pressão social nas Câmaras de Vereadores e nas Assembleias Legislativas, envolvendo sociedade, igrejas, comércio e políticos para mostrar as consequências. Mas também no Congresso Nacional. Conversando com todos os partidos políticos. E apresentamos sugestões de emendas, que vêm sendo bem recebidas. Estamos defendendo manter as regras atuais para os trabalhadores rurais, sem regra de transição. Também estamos defendendo a retirada do BPC, pois é uma proposta perversa. E não se pode permitir o pagamento de benefícios inferiores ao salário mínimo.
Mas também que não se desconstitucionalizem as regras da Previdência. Proteger os direitos dos trabalhadores é como proteger ouro e joias. O que você faz com outro e joias? Guarda no cofre. O direito do trabalhador à Previdência está no cofre, ou seja, na Constituição. Se você tirar a joia do cofre e colocar na prateleira, um dia alguém leva um anel, em outro, uma pulseira, e quando você perceber, terão levado tudo.
E a capitalização, outra perversidade. Por que você sai de um regime de repartição, de solidariedade, para um sistema em que é uma espécie de poupança. Ficou provado em vários países do mundo, a exemplo do Chile, que isso traz impactos negativos para a população, que paga um enorme custo de transição e recebe baixas pensões. Muitos países já desistiram ou estão desistindo desse modelo.
O governo deveria estar buscado formas de aumentar a receita da Previdência. Por que esse país não passa a taxar dividendos, grandes fortunas, heranças, buscar outras fontes? E por que não fazer o Brasil voltar a crescer? Até 2015, a Previdência era superavitária. A economia caiu, o desemprego aumentou, a Previdência só pode arrecadar menos. E ainda fizeram uma Reforma Trabalhista que prejudicou ainda mais.
E qual a receptividade das propostas de vocês no parlamento?
Quando se fala dos rurais, do BPC, da desconstitucionalização e até da capitalização, a gente percebe que tem uma boa aceitação. Os dois primeiros, um pouco mais. Na comissão especial que trata do tema na Câmara dos Deputados, o debate foi muito bom. Há partidos que estão bancando emendas da Contag, inclusive partidos que estão no centro. Estamos construindo diálogos com vários, como o PSDB, o DEM, o PRB… E, na oposição, temos consenso quanto a essas propostas. O próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, colocou que os rurais estarão fora e isso será resolvido ainda na Comissão. A questão é que o texto que for ao plenário tem que incorporar as mudanças e chegar bastante mudado em comparação ao que Bolsonaro apresentou.
Isso significa que a pressão das bases de vocês está funcionando?
Sim, a nossa impressão é que a receptividade de muitas pessoas no Congresso com relação a este tema já tem relação com as pressões nos municípios. Em cada sessão de debate local, é constituída uma ata, que é enviada para todos parlamentares do estado, deputados federais e senadores. E há eventos em que eles mesmos participam. Tem estados que conseguimos fazer reunião com a bancada em Brasília, como a do Maranhão. No Espírito Santo, o governador chegou a convocar, junto com a federação dos trabalhadores da agricultura familiar, a bancada para tratar desse assunto. Então está ocorrendo várias iniciativas interessantes. Os trabalhadores têm procurado os deputados nas feiras, nas festas, em que eles participam para cobrar. Chegando em seus municípios, já tem assunto para eles ouvirem.
O relator da matéria, Samuel Moreira, insiste em manter alguma mudança nas regras dos rurais na Reforma da Previdência. Não há algo que possa ser aprimorado na aposentadoria rural?
Primeiro, manter as regras atuais. Os trabalhadores rurais da economia familiar devem comprovar a atividade no campo de 15 anos. Mas pode-se melhorar o recolhimento da alíquota previdenciária no momento da venda de sua produção, o que não acontece na maioria dos casos devido à informalidade e à falta de sistemas para arrecadação.
Temos que construir um sistema que seja capaz de captar as contribuições na venda de produtos no campo, um sistema que funcione. Vamos incentivar, fazer campanhas para gerar a cultura de recolhimento via bloco de notas. Hoje, há produtores que têm que ir até a Prefeitura para emitir uma nota, o que dificulta muito. Para que isso funcione, deve haver conversa e integração entre a área da Fazenda nacional e as Fazendas estaduais. E, depois, muita orientação ao pequeno agricultor. Não é de hoje que defendemos isso, chegamos a propor isso no Grito da Terra [evento anual que reúne milhares de trabalhadores rurais em Brasília para reivindicar], na época do governo Lula, mas não andou.
Mas o governo também não entrega os dados detalhados de como e quanto é arrecadado hoje no momento da venda da produção. Falam que os trabalhadores rurais custam R$ 120 bilhões e só arrecadam R$ 10 bilhões, mas não mostram os números. Nós entendemos que o valor é bem maior, pois hoje ele não pega todo mundo. Por exemplo, quando há atravessadores, o produtor de gado não aparece como aquele em nome de quem se recolhe, lá na ponta, no frigorífico, e sim o nome do atravessador.
Fonte: UOL
Texto: Leonardo Sakamoto
Data original da publicação: 03/06/2019