Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 12/01/2019
Comandantes das Forças Armadas têm defendido publicamente que os militares sejam poupados da Reforma da Previdência ou, pelo menos, que ela lhes seja gentil. Os discursos têm peso, uma vez que a corporação é um dos pilares sobre o qual o governo Jair Bolsonaro está assentado e é talvez um dos únicos grupos capazes de rivalizar com a equipe econômica de Paulo Guedes, que representa parte do mercado.
De forma mais discreta, representantes das carreiras mais altas do funcionalismo público têm conversado com o Palácio do Planalto, o ministério da Economia e deputados e senadores a fim de garantir que as propostas mais agressivas de mudanças na previdência pública não vinguem. Até porque os mesmos parlamentares que hoje decidem o futuro de magistrados são os mesmos que poderão ser julgados por eles num futuro próximo.
Diante dos avisos daqueles que exercem o poder pela baioneta, tribuna ou caneta, não tem sobrado muito espaço para a defesa daqueles que nunca tiveram autonomia econômica sobre suas próprias vidas. E que apesar de serem representados por alguns sindicatos, defensores públicos, advogados, procuradores e sociedade civil, saem em larga desvantagem no debate sobre o futuro da Previdência.
Seja qual rumo a reforma tomar, os mais pobres e vulneráveis deveriam ser protegidos a qualquer custo. O próprio Bolsonaro e seus filhos-assessores já afirmaram que mudanças não podem afetar os trabalhadores braçais da mesma forma que aqueles que atuam em escritórios ou nivelar os mais pobres do interior do país aos demais. Até agora foram declarações esparsas, de vindas de quem começou a carreira política representando interesses sindicais de soldados, cabos e sargentos. Falta saber se isso se transforma em ação ou ficará na bravata.
O projeto de Reforma da Previdência que tramitou durante o governo de Michel Temer sofreu tanta pressão que acabou cedendo na garantia de direitos desses grupos sociais mais vulneráveis. A manutenção do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o salário mínimo pago a idosos abaixo da linha da pobreza com mais de 65 anos, é um exemplo. Outro foi garantir que a aposentadoria especial de trabalhadores rurais da economia familiar, que hoje se aposentam aos 60 anos (homens) e 55 (mulheres), possam manter o direito de receber seu salário mínimo ao comprovar 15 anos de atividade – e não 15 anos de contribuição, como queriam alguns.
O governo Bolsonaro está estudando uma série de propostas, algumas delas danosas a esses públicos. Há aquelas que querem reduzir o valor da aposentadoria rural paga para 70% do salário mínimo ou desindexa-la desse referencial – o que causaria um impacto não apenas na vida desses idosos, mas na própria economia de locais pobres. Outras sugerem emparelhar a idade mínima com a do restante dos trabalhadores, ignorando que famílias pobres que produzem alimentos transformam-se em bagaço muito antes que o restante da população. Sem contar que produtores familiares, coletoras de babaçu e pescadores artesanais começaram a trabalhar, infelizmente, muito antes dos 14 anos.
A aposentadoria rural especial é o maior programa brasileiro de distribuição de renda ao lado do Bolsa Família. Não deve ser visto como um problema de planilha, portanto, mas como um instrumento para garantia de dignidade através da redistribuição de riqueza, o que acarreta em redução da desigualdade social. É um preço pequeno a pagar diante da possibilidade de evitar mais êxodo rural, mais inchaço das grandes cidades e garantir soberania alimentar – uma vez que a agricultura familiar fornece boa parte dos alimentos que consumimos.
Lembrando que Bolsonaro e a bancada ruralista no Congresso Nacional defendem uma anistia bilionária à proprietários rurais e agroindústrias devedores do Funrural (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural) – exatamente a contribuição previdenciária, que incide sobre a receita bruta proveniente da comercialização. Segundo a Receita Federal, o prejuízo pode chegar a R$ 17 bilhões aos cofres públicos.
Já o BPC não é uma aposentadoria, mas um benefício assistencial e não demanda contribuição anterior. A expectativa de vida no Brasil aumentou e tende continuar aumentando, bem como os índices de sobrevida após os 65 anos. Isso poderia servir como justificativa para aumentar a idade mínima para alcança-lo em três ou cinco anos. Mas segue difícil para os mais pobres com 65 anos ou mais conseguirem um emprego ou mesmo um bico decente.
Considerando que uma massa de trabalhadores pobres, mas não tão pobres, que atuam na informalidade, terá mais dificuldades para se aposentar por conta das mudanças nas regras de aposentadoria, o governo Temer propôs inicialmente o aumento da idade mínima para que idosos pobres possam pleitear o benefício de um salário mínimo mensal de 65 para 70 anos. Depois, o relator da Reforma da Previdência, após pressão de parlamentares, baixou para 68 – com um regra de transição que aumenta a idade nos próximos anos. E, enfim, novas propostas apontaram para a manutenção dos 65.
Antes de dificultar a vida desses idosos, o Brasil deveria implementar políticas para que eles pudessem trabalhar com dignidade.
Como o acesso ao BPC é para famílias com renda per capita inferior a 25% do salário mínimo, nem todos os pobres têm acesso a ele. Só aqueles que são considerados matematicamente pobres ou extremamente pobres por padrões internacionais – como ter renda per capita inferior a 30% do salário mínimo fosse miséria diferente. Os outros, que não entrarem no corte, tem que escolher entre rebaixar sua remuneração familiar para poder receber o benefício ou continuar trabalhando, provavelmente com bicos e subempregos, até conseguirem se aposentar por um valor maior.
Por isso, seria importante que uma grande massa de trabalhadores pobres que não se encaixa nem na aposentadoria especial rural, nem é elegível ao BPC, e já se aposenta por idade aos 65 anos (homens) e 60 (mulheres), ganhando não fossem obrigados a saltar a contribuição de 15 para 25 anos, como defendem alguns.
Isso beneficiaria os assalariados pobres da cidade e do campo – operários da construção civil e cortadores de cana, que contribuem com pouco e se aposentariam recebendo valores em torno de 1,5 salário mínimo, mas também trabalhadores da economia informal. Exigir 25 anos de contribuição ininterrupta para trabalhadores assalariados urbanos e rurais pobres como o mínimo de tempo de contribuição é ignorar a realidade de informalidade de um grande naco dos brasileiros. Que mal consegue juntar o suficiente para sobreviver um mês, o que dirá pagar o carnê da previdência.
A Reforma da Previdência precisaria de um debate mais aberto, franco e sem pressa para podermos redesenhar, de forma democrática, como será a política de aposentadoria que um Brasil mais velho deverá ter. Mas, nas eleições, preferimos discutir o futuro da mamadeira de piroca e a Venezuela. Nessa eleição ultrapolarizada, projetos de país não foram debatidos como precisaríamos. Isso não significa, contudo, que a população entregou um cheque em branco ao vencedor – pesquisas mostram preocupação com a Reforma da Previdência mostram isso.
A garantia que os idosos pobres, do campo e da cidade, tenham um mínimo de dignidade tem um custo, claro, que tem que ser pago coletivamente. Compreender e efetivar isso é o que nos dá o direito de, ao final de cada dia, sermos chamados de civilização e não de barbárie.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.