Leonardo Sakamoto
Fonte: UOL
Data original da publicação: 26/03/2019
Líderes de partidos que representam a maioria dos deputados federais defenestraram, na terça (26), as mudanças propostas pelo governo Bolsonaro para o benefício assistencial a idosos em situação de miséria e para a aposentadoria dos trabalhadores rurais da economia familiar.
Poucas coisas são tão negativas para a sociedade quanto deixar idosos pobres ao relento, no campo e na cidade. Essas alterações eram encaradas como “moeda de troca”, “gordura para queimar” e, claro, “bode na sala” – daqueles bem fedorentos, do tipo que todo mundo fica tão aliviado quando são retirados que esquece dos outros problemas.
Determinados políticos, economistas e formadores de opinião merecem, aliás, o Oscar de melhores atores e atrizes coadjuvantes. Pois prefiro acreditar que foram gênios da interpretação a aceitar que há pessoas que defendem realmente que dificultar benefícios assistenciais e aposentadoria especial a gente pobre e miserável é a saída para o nosso buraco fiscal.
O governo Bolsonaro propôs que a idade mínima para que idosos em condição de miserabilidade possam receber o salário mínimo mensal do Benefício de Prestação Continuada (BPC) passe de 65 para 70 anos. Em contrapartida, quer desembolsar uma fração desse total – R$ 400,00 – dos 60 aos 69 anos. E demanda dos trabalhadores rurais uma contribuição anual mínima de R$ 600,00 por família durante 20 anos, ao invés de apenas comprovar o trabalho no campo por 15 anos, como é hoje. Não leva em consideração que há safras que nem se pagam, fazendo com que a família dependa do Bolsa Família para sobreviver.
O mais relevante dessa história, contudo, não é que os líderes prometeram vetar essas duas anomalias da Reforma da Previdência, nem que isso possa ter sido uma possível cutucada no presidente devido ao momento ruim com o Congresso. Mas que o governo federal insistiu nelas durante 36 dias, desde a apresentação da proposta ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mesmo sabendo que é mais fácil um bode passar pelo buraco de uma agulha do que ambas serem aprovadas pelo plenário em duas votações.
Se o mote da Proposta de Emenda Constitucional é dar uma paulada nos privilégios, não fazia sentido algum optar por incluir um sarrafo em quem nada tem – Temer também abraçou o bode e teve que recuar. Mas a inabilidade deste governo deixou o bicho fedorento fermentando na sala a tal ponto que ele impregnou cortinas, carpete, sofá. Mesmo fora, a percepção da população de que a reforma atinge os mais pobres só vai mudar mediante um grande esforço. Até porque, o bode deixou vários cabritos. E um gambá.
Por exemplo, a proposta de pagar pensões a viúvas e órfãos em valores menores que um salário mínimo. Ou o aumento da contribuição mínima de 180 para 240 meses (15 para 20 anos), que atinge especialmente a parcela da população que vive em alto grau de informalidade e pode levar 30 anos, na prática, para alcançar a carência. Esse pessoal, que está na pobreza, mas não na miséria, ficaria num limbo, uma vez que não é o público do BPC. A menos que empobreça ainda mais.
Não é só o presidente que tem sua passagem bíblica preferida. A dele é João, capítulo 8, versículo 32: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” – no que pese estarmos todos esperando uma epifania sobre laranjais e nada. Particularmente, prefiro Eclesiastes, capítulo 1, versículo 2: “Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”. Pois, numericamente, contas podem estar certas.
Mas a partir do momento em que a dignidade se resume apenas a um campo de uma planilha do ajuste fiscal é que a sociedade deu errado.
Bolsonaro & Sons já haviam afirmado que mudanças não podiam afetar trabalhadores braçais da mesma forma que aqueles que atuam em escritórios ou nivelar os mais pobres do interior do país aos demais. Eram declarações que lembravam que ele começou a carreira política representando interesses sindicais de soldados, cabos e sargentos. Quem acreditou na conversão liberal do presidente tem que tomar cuidado para não cair no golpe do trote da filha sequestrada.
Do ponto de vista do governo, é questionável a vantagem de ter defendido com tanto fervor esses dois pontos cujo veto foi hoje anunciado. Essa defesa, como se os cortes no BPC e na aposentadoria rural fossem fundamentais para o país sobreviver, ajudou a chamar a atenção de milhões de brasileiros pobres e deixá-los apreensivos com seu futuro, maldizendo seus representantes políticos pelas tais das mudanças. Os líderes, no final das contas, deram uma ajudinha ao governo ao retirarem esses pontos, mas deixaram outros que serão alvo de questionamento. Para resolver isso, agora, ao contrário do que disse Bolsonaro, a bola está com ele e sua capacidade (sic) de articulação política.
Enquanto isso, um gambá, esquecido na sala, observa tudo à distância. Não adianta maquiá-lo para vendê-lo como gato em propagandas na TV e nas redes sociais. O cheiro, no final das contas, entrega.
Dizem que se você chamá-lo de “capitalização”, ele sorri.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.