Argelina Cheibub Figueiredo
Fonte: Nexo
Data original da publicação: 06/06/2019
O que se espera de um presidente (ou primeiro-ministro) quando seu partido não consegue maioria no Legislativo? Se o objetivo é aprovar suas propostas de políticas públicas, a decisão racional seria formar um governo de coalizão. Ou seja, um governo que divide poder e responsabilidade com outros partidos, visando construir maioria parlamentar. Isso é o que a maioria dos presidentes (e primeiros-ministros) fazem. Jair Bolsonaro rejeita sumariamente essa alternativa. Vê a formação de maiorias via coalizões de governo, adotada de maneira geral em países multipartidários, como a “velha política”. Supõe que qualquer negociação é espúria. Pelo contrário, representação no governo e acordos são parte da dinâmica dos processos decisórios em uma democracia.
Por outro lado, as principais políticas do governo requerem aprovação legislativa e, portanto, apoio majoritário. A reforma da Previdência, anunciada como prioridade máxima do governo, sem a qual a economia não andaria, precisa de maioria qualificada e votação nominal em dois turnos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Só os partidos podem garantir que as diversas visões da sociedade sobre temas em pauta sejam discutidas, ponderadas e representadas por meio de alterações nas propostas legislativas do governo.
Mudanças no sistema previdenciário implicam a aprovação de medidas, classificadas na ciência política como “politicamente inviáveis”. A estrutura de benefícios previdenciários afeta de forma direta ou indireta a totalidade da população. As decisões a serem tomadas impõem custos certos e imediatos a grupos específicos da sociedade, mais ou menos organizados. Os benefícios esperados da mudança, por sua vez, são difusos e incertos. No presente, a disputa se dá sobre as perdas e ganhos dos diversos setores e grupos afetados. O cálculo envolve também as expectativas de compensação futura das perdas sofridas.
As dificuldades de aprovação legislativa de medidas dessa natureza não são peculiares ao Brasil. Nem se devem a características específicas das instituições e da dinâmica política brasileira. Só para dar um exemplo, na Inglaterra, depois de uma vitória consagradora do Partido Conservador, de Margaret Thatcher, o projeto de reforma da Previdência, devido à reação de seu próprio partido, foi retirado, negociado internamente, reapresentado e aprovado depois de cinco anos, observando um período de transição de 14 anos. E lá a aprovação da reforma não requeria emenda constitucional. O Parlamento era unicameral. E o Executivo tinha maioria folgada.
Esse exemplo diz muito sobre a necessidade de negociação e cooperação entre o Executivo e o Legislativo. No Brasil hoje, a prioridade e a urgência atribuídas à reforma da Previdência requerem ainda mais cuidado e humildade no trato com um Congresso que tem poder, legitimidade e capacidade de fazer, à revelia do governo, a reforma da Previdência. É preciso lembrar que se o presidente foi eleito pela maioria, a Câmara dos Deputados, no nosso sistema proporcional, representa 100% do eleitorado. Os partidos que dela fazem parte representam interesses e opiniões de diferentes parcelas da sociedade e de diferentes localidades neste país de dimensões continentais.
Os presidentes da Câmara e do Senado, por posição institucional e por afinidade quanto ao papel da reforma da Previdência na solução da drástica situação econômica do país, se alinharam ao governo na busca de uma rápida tramitação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 06/2019, com um mínimo de alterações na proposta do governo, a eles solenemente entregue no dia 20 de fevereiro. Até agora o ritmo não é o esperado. Em grande parte, devido à postura do presidente da República.
Reforma dos militares
Ao receber a proposta, o presidente da Câmara Rodrigo Maia transmitiu ao governo a demanda dos partidos sobre a necessidade de enviar a proposta de reforma dos militares e de sua tramitação simultânea à do setor privado. A base da demanda era a preocupação dos partidos em mostrar aos seus eleitores que a reforma visa de fato diminuir privilégios. Não é fácil justificá-la apenas como parte fundamental de pacote de ajuste fiscal, visando o crescimento econômico.
O projeto de lei que altera a Previdência dos militares chegou mais de um mês depois, prevendo uma economia de R$ 96 bilhões em dez anos. Veio, porém, acompanhado de um plano de reestruturação da carreira militar que geraria um gasto de R$ 86 bilhões no mesmo período. Mais uma vez, Maia, reforçando a preocupação dos partidos com a reação de suas bases eleitorais, comunica o desagrado dos parlamentares porque o governo lhes tirou o discurso da justiça da reforma.
Pior ainda, na cerimônia de entrega do projeto de lei, o presidente da República pede celeridade na tramitação e faz um “apelo” em favor dos militares, alertando os parlamentares sobre as perdas que já haviam sofrido no governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2001). Em um laivo de clarividência reconhece sua suspeição para fazer tal pedido, por ser capitão da reserva e por seu comportamento corporativo como deputado.
A insatisfação da Câmara pode ser vista pela lenta tramitação dos projetos. A PEC demorou a sair da Comissão de Constituição e Justiça. O processo até a instalação da comissão especial para a apreciação da reforma e de reestruturação da carreira dos militares foi lento.
Articulação com o Congresso
Nesse processo, a relação do governo com a Câmara vem sofrendo reveses, devido principalmente ao comportamento no mínimo pouco respeitoso do presidente da República para com o presidente da Câmara, o principal articulador da reforma no Congresso. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre a intromissão de um dos filhos de Bolsonaro em assuntos de governo, no caso a defesa da posição do ministro da Justiça Sergio Moro de tramitação do pacote da segurança pública. A situação se torna mais complicada quando Bolsonaro, colocando lenha na fogueira, tuíta contra a “velha política”.
Mesmo com a ameaça do presidente da Câmara de se afastar da articulação política da reforma da Previdência, Bolsonaro insiste com sua atitude belicosa comentando ironicamente que Maia estava “abalado” com problemas pessoais, em alusão à prisão do ex-ministro Moreira Franco, padrasto de sua esposa. Mais uma vez, Bolsonaro reage em total desacordo com a postura de um presidente da República que depende do Congresso para a aprovação de sua agenda legislativa e de seu próprio governo.
A solução foi terceirizar a articulação política. Passa a bola ao ministro da Economia Paulo Guedes, que, por suas boas relações com Maia, consegue aparar as arestas. Mas, segundo relato de Claudia Safatle, em reunião ministerial, Guedes “deixou claro que não há condições de, a cada postagem do presidente e/ou seu filho, Carlos Bolsonaro, no Twitter ou no Instagram, levar uma ‘bola nas costas’”. Uma vez terceirizada a gestão e a articulação política, caberá ao capitão cumprir as diretivas.
Depois de quase dois meses de seu envio à Câmara, a comissão especial destinada a proferir o parecer sobre a reforma da Previdência dá início aos trabalhos com a apresentação e discussão da PEC pela equipe econômica. O presidente da comissão, Marcelo Ramos, do PR de Pernambuco, declara pretender votar o parecer na comissão em junho para cumprir o calendário de votação em plenário estabelecido por Maia. Adverte, porém, que nesse debate existem elementos “que independem de nós porque a elaboração do relatório na comissão tem que ser coordenada com a construção da maioria no plenário”.
Esse é o X da questão. Como vai ser construída essa maioria? O presidente da Câmara afirma que o Congresso agirá com independência e responsabilidade, mas que serão respeitados “os ritos, os debates e o tempo do Parlamento”. Como em qualquer país democrático, o tempo do parlamento depende de muita negociação entre os partidos no Congresso – e entre este e o governo. A reforma da Previdência deve sair. Mas não a que o governo quer.
Argelina Cheibub Figueiredo é professora do Iesp-Uerj (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), doutora em ciência política pela Universidade de Chicago, pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia) e membro da Ordem Nacional do Mérito Científico, classe comendador. Faz pesquisas sobre instituições políticas, relações entre Executivo e Legislativo, políticas públicas e eleições.