O trabalho tenderá a ser mais autônomo, com responsabilidades individuais na determinação nas suas formas e organização. Mas quanto mais autonomia se quiser, mais têm que se desenvolver os compromissos coletivos e a cooperação entre indivíduos.
Manuel Carvalho da Silva
Fonte: Sul 21
Transcrição: Raquel Martins
Data original da publicação: 13/01/2015
A Utopia de Thomas More surge como contraponto a uma sociedade semifeudal, de servos e senhores, em que a noção dos direitos – desde logo o direito ao trabalho com direitos – estava longe de ter emergido. Cinco séculos depois, registramos avanços extraordinários, que projetam no futuro novos desafios, pois nenhuma conquista é definitiva. A grande contribuição que More nos deixa é a ideia de que há alternativas ao discurso e às práticas instituídas e que não nos devemos conformar com a “realidade” do presente.
Não podemos abdicar de um elemento essencial para o ser humano que é a possibilidade de sonhar sobre o realizável e o ainda não realizável, e de construir projetos. Uma das maiores contradições dos tempos que vivemos é, precisamente, a tentativa de, pela contínua invocação de riscos e medos, gerar a negação do futuro, em particular às gerações mais jovens.
Neste momento, um exercício para perceber para onde vai o futuro do trabalho – nas suas dimensões econômica, social, cultural e política –, surge-me organizado em três componentes. A primeira implica debruçarmo-nos, com o máximo de objetividade possível, sobre quais são os traços dominantes de requisitos de vida que se projetam – sem ficarmos presos à sobrevivência ad eternum do sistema capitalista – e, nessa projeção, identificar as necessidades básicas das sociedades do futuro.
Há requisitos de vida que não vão mudar tão cedo: vamos continuar a vestir, a calçar, a ter necessidade de sistemas de comunicação e de deslocação, vamos continuar a habitar principalmente nos grandes centros urbanos e a forma de nos alimentarmos talvez também não se altere assim tanto. O trabalho, incorporando conhecimentos e tecnologias diversas, vai situar-se, desde logo, em grande parte na garantia desses fatores determinantes do estilo de vida.
A segunda componente tem a ver com a aquisição de conhecimentos, a formação necessária para o desenvolvimento dessas atividades e, em particular, para uma interação humana muito mais desafiadora, em consequência da presença crescente das tecnologias, do digital e, sobretudo, de uma inovação social que háde responder a crescentes anseios de igualdade e aos impactos, nomeadamente, do aumento da esperança de vida e do peso quantitativo e qualitativo das mulheres no trabalho, nas instituições e nas organizações da sociedade.
O aumento da esperança da vida e o papel das mulheres no trabalho e na sociedade são, para mim, duas enormes mudanças do último século e vão estar bem mais presentes no futuro que se projeta neste início do século XXI. Conforme a sociedade vai envelhecendo, é inevitável a consciência de que o facto de os indivíduos serem mais velhos não os torna despidos de direitos, logo surgirão novas agendas reivindicativas. O mesmo se projeta já, e se intensificará, em relação ao papel das mulheres.
A terceira componente tem a ver com a utilização das tecnologias e do conhecimento. Isto conduz-nos a uma reconsideração do que devem ser as trajetórias e as carreiras profissionais. Vai ser preciso encontrar novos trabalhos, novas formações. A escola e outras instituições de formação e de aquisição de conhecimentos ao longo da vida terão de ser capazes de transportar para o comum dos indivíduos essas novas profissões.
Tempo: a utopia mais perene
Com base nestas três componentes, pode projetar-se um grande debate em torno da organização e prestação do trabalho e o tempo de trabalho vai estar – inevitavelmente – no cerne da discussão. Esta é, talvez, a utopia mais perene.
O texto de More tem uma componente bastante atual quando propõe que se reduza o tempo de trabalho de forma significativa. Preconiza seis horas de trabalho por dia – utopia a colocar desde já na agenda do realizável – e projeta espaços de aprendizagem para as profissões, para a formação plena dos indivíduos e para o lazer. E concebe o trabalho como um direito/dever universal.
Estou plenamente convencido que o rompimento com o pensamento neoliberal, que por agora está instalado, coloca entre outros desafios, uma nova discussão sobre o tempo de trabalho. O debate vai estar aí, motivado pela necessidade de responder ao desemprego, às desigualdades e, sobretudo, à inatividade e à pobreza.
Por outro lado, há um conjunto de alterações que se produziram na sociedade, que não estão sendo assumidas. mas que se irão impor. Refiro-me aqui apenas a duas: o facto de as instabilidades e inseguranças atuais (as precariedades) não serem sustentáveis, e a constatação de que o aumento da esperança média de vida altera toda a nossa concepção de preparação para o trabalho, de formação ao longo da vida, o conceito de vida ativa, de reforma, as relações entre as gerações ou o quadro de estruturas necessárias na sociedade. A longevidade deixará de ser tratada e experimentada como um fardo.
Mas também sabemos que a redução do tempo de trabalho tem sido uma das batalhas mais difíceis nas sociedades modernas. A “crise”, por exemplo, contribui para eliminar o direito ao trabalho para muitos e obriga outros a trabalharem mais e mais barato. A primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de Outubro de 1919, estabeleceu as 48 horas de trabalho e vemos que foi preciso um século com sindicalismo ativo, com Direito do Trabalho, com contratação coletiva, para chegarmos aproximadamente às 40 horas e longe da sua universalização. Ainda não há uma convenção que estabeleça as 40 horas como o limite máximo! A redução do tempo de trabalho foi diminuta se comparada com a alteração dos meios tecnológicos e das capacitações que foi possível introduzir nos mecanismos de trabalho.
Será possível trabalhar menos horas e criar mais emprego, organizando as empresas e serviços para, com as capacidades técnicas, financeiras disponíveis, produzir mais e melhor. A redução do tempo de trabalho surgirá associada também à reposição de novos equilíbrios entre o individual e o coletivo.
Valorizar o salário
Existe outro campo delicado que se projeta para o futuro: como resolver o problema da desigualdade na distribuição de riqueza? Se na produção da riqueza não houver uma distribuição justa que se reflita no salário, dificilmente a justiça é recuperada no sistema fiscal. Tem de haver compromissos coletivos que assegurem os sistemas fiscais e de redistribuição que corrijam situações injustas. Mas não podem fazer mais do que corrigir, não podem substituir-se à redistribuição inicial.
Hoje os custos do trabalho não pesam mais de 20% a 21% nos custos globais das empresas em termos médios; noutros tempos pesavam mais. Tem sentido esse espremer dos custos salariais sem limites, que coloca milhões de seres humanos no desemprego e na pobreza? Não! Há que parar a loucura! Por certo esta discussão estará presente nos debates sobre os novos “paradigmas” para a economia e o emprego e associada a uma forte polêmica sobre conceitos como a produtividade, a competitividade e outros.
A outra questão-chave é a criação de mecanismos de responsabilização. Um dos elementos que ameaça o futuro é, em nome das dificuldades, dos riscos, a eliminação de direitos no trabalho. Numa sociedade democrática – e espero que aquilo a que hoje chamamos sistemas democráticos não continuem a perder densidade e surja uma verdadeira reinvenção da democracia –, quando se retiram direitos aos indivíduos está se gerando uma desresponsabilização deles perante a sociedade, seja no espaço do trabalho, seja fora dele.
O trabalho vai continuar a ser central na sociedade, enquanto fator de produção, fator de socialização, ancoradouro de direitos sociais, enquanto direito universal, até enquanto fator de alienação. Não se pode afirmar a cidadania, a participação cívica e a democracia sem olhar para o trabalho e garantir-lhe dignidade.
Trabalho sofrimento e trabalho criativo
Daqui decorre outra discussão sobre a valorização do tempo de trabalho e do tempo de não trabalho. No século XVI, o trabalho tinha uma elevada carga de sofrimento, mas More introduz o conceito de lazer, projetando dimensões que mantêm certa atualidade.
Na ilha da Utopia, lazer não é sinônimo de estar parado. É a realização do indivíduo para lá do trabalho, o que nos leva desde logo a uma discussão atual que fortemente se projeta para o futuro como um dos pontos-chave: precisamos valorizar o trabalho porque o nosso tempo e o nosso quotidiano para além do trabalho são o fundamental da nossa vida.
Precisamos que o trabalho seja remunerado de forma justa, que tenha condições que respeitem a nossa dignidade, que seja um espaço de relações entre iguais. Mas, acima de tudo, que nos permita criar as bases para nos podermos realizar e para construirmos outras dimensões da nossa vida: a família, as relações sociais, a intervenção na construção dos mecanismos de funcionamento e de organização da sociedade, a cidadania e a política. E ainda propiciar-nos aquilo que noutros tempos era exclusivo de alguns, que é podermos pensar.
O desafio que se coloca à sociedade de hoje e às sociedades que se podem projetar para o futuro é como articular a carga de sofrimento associada ao trabalho com expressões de criatividade, com dimensões de prazer e efetivação da dignidade humana.
As sociedades do futuro têm extraordinárias possibilidades de gerir melhor a carga de sofrimento do trabalho, reduzindo-a e ampliando as componentes de criatividade, de prazer e de realização humana. Os conhecimentos, os meios descobertos pela ciência, propiciam-nos uma afirmação clara de que se deve fazer o percurso de redução do tempo de trabalho, de organizá-lo noutras condições menos penosas, mais solidárias.
O trabalho tenderá, provavelmente, a ser mais autônomo e poderá até haver mais identificação de responsabilidades individuais na determinação das formas de trabalhar e de organizar o trabalho. Mas quanto mais autonomia se quiser, mais têm que se desenvolver os compromissos coletivos e a cooperação entre indivíduos. Caso contrário, isola-se o indivíduo para responsabilizá-lo, essencialmente pelos seus fracassos.Não há autonomia e não há liberdade individual se não houver predisposição para mais articulação e cooperação entre os indivíduos.
Com que instituições, com que poderes, com que organizações vamos fazer estas caminhadas? Essa é outra reflexão.