Recuperação de renda dos mais pobres evidencia fosso das desigualdades. Entrevista com Marcelo Ribeiro e André Salata

Fotografia: Unidos do Bem

Embora haja quem insistentemente defenda o contrário, os números não são imparciais. Aliás, quem acredita piamente neles vê o mundo só desde uma metade. Isso fica evidente quando observamos os dados do mais novo Boletim do Observatório das Metrópoles. De imediato, percebemos que, com o arrefecimento da pandemia no Brasil, houve uma recuperação nas perdas dos mais pobres. “A renda desse estrato inferior vem se recuperando. Mas a recuperação é lenta e ainda insuficiente para alcançar o patamar do período anterior à pandemia. Se considerarmos o quarto trimestre de 2019, a renda – domiciliar per capita do trabalho – para este grupo era de R$ 278, e agora ela chegou em R$ 239”, aponta o cientista social André Salata, em entrevista conjunta com o economista Marcelo Ribeiro, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

No entanto, é importante que não nos iludamos, pois, em resumo, a situação chegou a ser tão dramática que é difícil falar em melhora. Talvez, no máximo, estejamos num quadro “menos pior”. “Todos perdiam em nossas metrópoles, mas os mais pobres sofriam proporcionalmente mais, fazendo a desigualdade aumentar. Como consequência, o incremento da desigualdade no primeiro ano de pandemia foi notável”, completa Salata.

Ao longo da entrevista, analisam os dados da pesquisa e indicam que “é um retorno àquele patamar numa situação diferente, em que tanto os mais ricos quanto os mais pobres possuem rendimentos menores”. É verdade que os pobres, ao menos nessa recuperação, têm se saído melhor do que aqueles mais ricos, mas essa ainda não é uma realidade de redução de desigualdades. “Essa, obviamente, está longe de ser a melhor maneira de reduzirmos desigualdade, e é muito diferente do que ocorrera no Brasil entre aproximadamente 2004 e 2014, quando todos os estratos aumentavam sua renda, mas os estratos inferiores aumentavam proporcionalmente mais”, detalha Salata.

Marcelo Ribeiro ainda explica que a inflação tem corroído e transformado a realidade de todos, mas piora para quem é mais pobre. Além do mais, esses mais pobres que recuperam a renda são trabalhadores informais ou precarizados, sem ter assim qualquer segurança ou estabilidade. “A obtenção de renda, numa sociedade monetizada como a nossa, depende em grande medida do acesso ao mercado de trabalho, especialmente por meio de empregos”. E, logo, como completa o economista, “geração de empregos depende, por sua vez, de um processo de crescimento econômico do país, e para isso acontecer há diversas variáveis envolvidas, mas a atuação do governo central nesse processo é fundamental, especialmente por meio de estímulos à retomada do crescimento econômico”.

Marcelo Ribeiro. Fotografia: Arquivo Pessoal

Marcelo Ribeiro é graduado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-Goiás, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás – UFG e doutor em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR da UFRJ e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Observatório das Metrópoles – INCT-OM.

André Salata. Fotografia: PUC-RS

André Salata é graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, mestre e doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, leciona no curso de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Confira a entrevista.

IHU – Segundo o mais novo Boletim do Observatório das Metrópoles, os mais pobres recuperaram renda e os mais ricos perderam. Mas qual é o efeito dessa recuperação, pois, ao que parece, ela não tem sido sentida nas ruas?

André Salata – É importante deixar claro que a renda dos mais pobres está se recuperando após um enorme tombo sofrido logo no início da pandemia. Na média das nossas metrópoles, os 40% mais pobres perderam aproximadamente um terço de seus rendimentos do trabalho entre o primeiro e o terceiro trimestres de 2020, ou seja, logo que os primeiros efeitos da crise provocada pela Covid-19 se fizeram sentir no país.

Desde então, com a vacinação e a retomada das atividades, a renda desse estrato inferior vem se recuperando, mas a recuperação é lenta e ainda insuficiente para alcançar o patamar do período anterior à pandemia. Se considerarmos o quarto trimestre de 2019, a renda – domiciliar per capita do trabalho – para este grupo era de R$ 278, e agora ela chegou em R$ 239. Ou seja, a queda de rendimentos foi gigantesca, e a recuperação é ainda parcial. Por isso ainda não sentimos seus efeitos no dia a dia.

IHU – Se mais pobres recuperaram a renda e ricos perderam, significa que diminui a desigualdade? Quais os prós e os contra de uma redução do abismo entre ricos e pobres nos moldes do que detectou a pesquisa?

André Salata – Logo que os efeitos da crise provocada pela pandemia da Covid-19 se fizeram sentir nas regiões metropolitanas brasileiras, a renda dos estratos socioeconômicos inferiores despencou. No terceiro trimestre de 2020, a renda média dos 40% mais pobres tinha caído 32% em relação ao primeiro trimestre daquele ano. Enquanto isso, entre os 10% mais ricos a queda havia sido de somente 2,5%.

Portanto, todos perdiam em nossas metrópoles, mas os mais pobres sofriam proporcionalmente mais, fazendo a desigualdade aumentar. Como consequência, o incremento da desigualdade no primeiro ano de pandemia foi notável. O coeficiente de Gini – quanto mais alto, maior a desigualdade – médio de nossas metrópoles pulou de 0,602 para 0,635 em apenas dois trimestres, o que é um aumento muito acentuado se considerarmos as características dessa medida.

Nos últimos trimestres, contudo, a situação é diferente. A média de renda dos 40% mais pobres vem se recuperando, e do quarto trimestre de 2020 para o quarto trimestre de 2021 aumentou 22%, subindo de R$ 195 para R$ 239. Enquanto isso, no mesmo período a renda média dos 10% mais ricos caiu 7%, indo de R$ 6.917 para R$ 6.424.

Entendendo esse movimento

Há dois fatores principais para compreender esse movimento. Primeiro, a renda dos mais pobres tinha sofrido uma queda enorme no início da pandemia, e, com a vacinação e a retomada das atividades, vem se recuperando, mesmo que lentamente e de modo ainda insuficiente para retornar aos valores de antes da crise provocada pela Covid-19. Já a renda dos mais ricos, que na verdade expressam a parcela da população que costumamos chamar de (alta) classe média, tinha sofrido um abalo muito menor no início da pandemia, e, então, possui menos espaço para recuperação.

E, em segundo, nos últimos trimestres verificamos uma alta considerável da inflação, que afeta todos os estratos. No entanto, entre os mais pobres a retomada das atividades tem mais do que compensado as perdas provocadas pela inflação. O mesmo não ocorre entre os mais ricos, cuja renda não tinha sofrido abalo tão forte no início. Os mais ricos, então, veem a inflação corroer seu poder de compra em um contexto econômico onde é difícil negociar reposições salariais que possam repor parte significativa do rendimento real perdido.

Redução das desigualdades

A consequência disso é uma redução das desigualdades médias nas metrópoles, que retornam a valores mais próximos daqueles encontrados no período anterior à pandemia. No entanto, é um retorno àquele patamar numa situação diferente, em que tanto os mais ricos quanto os mais pobres possuem rendimentos menores. Essa, obviamente, está longe de ser a melhor maneira de reduzirmos desigualdade, e é muito diferente do que ocorrera no Brasil entre aproximadamente 2004 e 2014, quando todos os estratos aumentavam sua renda, mas os estratos inferiores aumentavam proporcionalmente mais.

IHU – Qual é a natureza dessa renda dos mais pobres que sofreu recuperação e como compreendem os movimentos de recuperação?

Marcelo Ribeiro – Parte significativa do trabalho das pessoas que ocupam o estrato dos 40% mais pobres caracteriza-se por atividades informais e precárias. São atividades de trabalho que as pessoas conseguem realizar por não haver grandes exigências em termos de qualificação e que não dependem, necessariamente, da contratação de algum empregador, não tendo que se submeter a um processo de seleção.

Essas atividades de natureza informal e precárias são muito comuns nas metrópoles brasileiras e tendem a crescer sua participação, especialmente em contexto de crise econômica, quando o mercado formal de trabalho não tem contrato ou está reduzindo a sua mão de obra. Tais atividades se apresentam, portanto, como alternativa de sobrevivência para muitos brasileiros. Apesar de se apresentarem como alternativa, por serem atividades que não têm barreiras à entrada e, portanto, há grande competição entre aqueles que delas participam, podemos compreender que se trata de atividades de trabalho com níveis de remuneração muito baixos.

Podemos exemplificar pelas atividades de trabalho tradicionais existentes nas nossas metrópoles, como o comércio ambulante, ou pelas novas atividades informais e precárias que emergiram nos últimos tempos ligadas às plataformas tecnológicas (aplicativos), como é o caso de entregadores de mercadorias de todo tipo ou dos motoristas do Uber.

IHU – Outro dado que chama atenção é o de milhares de famílias cujos rendimentos do trabalho, já insuficientes, estão há dois anos enfrentando perdas. Como mensurar o impacto disso na vida das pessoas? De que forma podemos explicar essas perdas, num quadro em que os mais pobres parecem ter tido recuperação nos rendimentos?

André Salata – Há várias razões para a queda de renda entre os mais pobres ter sido tão acentuada. Eu destacaria três.

1) Há uma diferença grande entre os estratos em termos de qualificação da mão de obra, com concentração de pessoas menos qualificadas mais próximo da base da pirâmide. Em um momento de crise, como foi a pandemia, os menos qualificados ficam em situação bastante vulnerável, pois são mais facilmente substituídos;

2) Segundo, há também uma concentração muito grande de pessoas trabalhando no setor informal nesses estratos, e que sentem imediatamente os efeitos da redução das atividades em seus rendimentos. Como não contam com qualquer proteção, a queda de renda do trabalho é instantânea;

3) E, terceiro, há também ali uma concentração de ocupações que não permitem a transferência para o modo remoto, como ocorre nas ocupações de classe média. E o resultado desses três fatores é o aumento acentuado das desigualdades que a gente presenciou no primeiro ano de pandemia.

Crescimento, mas diante de base muito baixa

Nos últimos trimestres, em grande medida em função da vacinação, tem havido um processo de retomada da atividade econômica. E isso tem beneficiado essas famílias mais pobres. Entre o quarto trimestre de 2020 e o quarto trimestre de 2021 a renda – domiciliar per capita do trabalho – dos mais pobres em nossas metrópoles aumentou mais de 20%. Mas esse é um aumento em cima de uma base extremamente baixa, e após uma queda brutal dos rendimentos desse estrato.

Ainda no quarto trimestre de 2021, a renda média dos mais pobres era 8,5% menor do que no quarto trimestre de 2019 – antes da pandemia. Então estamos falando de uma parcela enorme da população que tradicionalmente já possui rendimentos muito baixos, que durante a pandemia foi a mais afetada, e que tem vivido os últimos dois anos com renda abaixo daquela que estava habituada.

Os resultados aparecem nos gráficos que trazemos. Por exemplo, a proporção de famílias vivendo com renda do trabalho abaixo de um quarto do salário-mínimo chega a quase 30% no auge da pandemia. Isso é uma tragédia social que se expressa não só nos números, mas que é perceptível para qualquer morador das regiões metropolitanas brasileiras, a partir do aumento do número de pedintes, de vendedores ambulantes nos sinais etc.

IHU – Pelo que vocês têm defendido, essa recuperação de renda dos mais pobres, embora tímida, está relacionada com o arrefecimento da pandemia no Brasil. É possível afirmar que quanto mais controlada a Covid-19, maiores serão as recuperações de perdas?

Marcelo Ribeiro – Apesar de não termos realizado análise de causalidade entre esses fenômenos – porque isso depende de controlar diversas variáveis –, pelas observações que nós temos apresentado a partir dos dados que divulgamos, constatamos que, na medida em que ocorreu o avanço da vacinação na população brasileira, tornou-se possível a volta para o mercado de trabalho de muitos trabalhadores que estavam parados durante a fase mais aguda da pandemia, e isso contribuiu para o aumento da renda principalmente entre as pessoas que estão no estrato dos 40% mais pobres.

Como hoje o Brasil possui uma cobertura vacinal já elevada, podemos considerar que a contribuição da vacinação para a retomada da atividade econômica já aconteceu. Isso significa que o processo de recuperação do nível de renda ou mesmo de sua elevação para patamares superiores depende, principalmente, do crescimento da economia de modo sustentável e, também, do arrefecimento do processo inflacionário que temos observado atualmente, tendo em vista que o aumento da inflação tem provocado perda do poder de compra dos rendimentos nominais.

IHU – Os dados da pesquisa se referem à realidade das metrópoles brasileiras, mas, a partir deles, podemos inferir que a realidade nas cidades menores é similar? Como projetam a realidade do interior do Brasil, especialmente nesse contexto pós-pandemia?

Marcelo Ribeiro – Hoje, o Brasil possui uma rede urbana muito mais complexa e diversificada do que era há 40 anos, quando havia se constituído no país alguns grandes centros urbanos – que denominamos de metrópoles –, poucas cidades médias e muitas cidades pequenas. Atualmente, além de termos aumentado o número de metrópoles do país, possuímos uma grande quantidade de cidades médias. Essas cidades médias possuem estruturas econômicas também mais diversificadas, o que as aproximam de estruturas econômicas e, portanto, do mercado de trabalho das metrópoles do país. Neste sentido, podemos dizer que, apesar de nossos dados se referirem às regiões metropolitanas, podemos encontrar semelhanças nessas condições de remuneração, especialmente nas cidades médias.

Evidentemente que as alternativas de sobrevivência, quando as pessoas não conseguem emprego e, portanto, remuneração, são diferentes a depender do contexto urbano em que elas estão situadas. Numa metrópole, em que a condição de reprodução social depende em grande medida da obtenção de renda, as alternativas que as pessoas buscam para garantir sua sobrevivência são encontradas nas atividades informais do mercado de trabalho e, muitas vezes, em condições precárias. Numa cidade pequena, as alternativas podem ser melhor encontradas na produção para o autoconsumo. Portanto, a condição urbana é algo muito importante para analisarmos as possibilidades de reprodução social das famílias.

Ao considerar que mais de 85% da população brasileira vive nas cidades, mesmo que nas metrópoles esse contingente corresponda a 40%, o olhar sobre as condições sociais da população que vive nas metrópoles é fundamental para a compreensão da questão social do país atualmente.

IHU – Nas últimas semanas, o IPCA tem apontado o estrondoso aumento do custo de alimentos da cesta básica. Em alguma medida, esses aumentos, que também estavam há mais tempo sendo apontados, já apresentam algum impacto na renda dos brasileiros? Como isso aparece na pesquisa e como inferem que deve aparecer em amostras futuras?

André Salata – Sim, isso aparece claramente nos dados. Por exemplo, o valor real da média de renda dos mais ricos caiu 8,05% ao longo de 2021. No entanto, caso a gente desconsidere a inflação e trabalhe com valores nominais, a variação foi de -0,94. Entre os mais pobres, por sua vez, a elevação dos rendimentos em 20,9% teria subido para 30,3% num cenário hipotético sem inflação. Ou seja, a inflação tem jogado o poder de compra para baixo ao longo dos últimos trimestres, limitando a recomposição da renda provocada pela vacinação e a retomada das atividades econômicas.

A tendência, parece, é que a inflação não perca força rapidamente. A inflação de março de 2022, por exemplo, foi a maior para o mês desde a criação do Plano Real. E assim é muito provável que ela vá continuar prejudicando o poder de compra da população e a capacidade de a retomada da economia recompor os rendimentos perdidos durante a crise.

IHU – Com base nos dados desse relatório, que projeções futuras os senhores fazem? Que caminhos podemos iluminar para que sejam recuperadas – e quem sabe até revertidas – as perdas de rendimentos dos brasileiros?

Marcelo Ribeiro – A obtenção de renda, numa sociedade monetizada como a nossa, depende em grande medida do acesso ao mercado de trabalho, especialmente por meio de empregos. A geração de empregos depende, por sua vez, de um processo de crescimento econômico do país, e para isso acontecer há diversas variáveis envolvidas, mas a atuação do governo central nesse processo é fundamental, especialmente por meio de estímulos à retomada do crescimento econômico. Em resumo, o crescimento econômico é fundamental para a geração de emprego e de renda e nas condições em que nos encontramos hoje isso depende de uma atuação ativa do Estado.

Porém, o aspecto inflacionário é algo muito importante que tem que ser observado, porque, como estamos atualmente acompanhando, o nível elevado de preços na economia leva à redução do poder aquisitivo dos rendimentos nominais, contribuindo, inclusive, para a redução da demanda por mercadorias e serviços e, portanto, desestimulando a própria atividade econômica.

Fonte: IHU
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 18/04/2022

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