‘Quem vai querer um funcionário com HIV?’, diz homem que perdeu aposentadoria após 13 anos

“Ele vai me perguntar por que passei 13 anos sem trabalhar. Eu vou responder que estava aposentado por invalidez e ele vai perguntar o que eu tinha. Aí, pronto, engavetou tudo.”

É assim que Augusto*, de 48 anos, diz que termina uma entrevista de emprego. A explicação para a aposentadoria por invalidez ele contou só a cinco amigos: o HIV.

Em 2005, ele passou a receber o benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por causa dos efeitos do HIV. No ano passado, depois de 13 anos, teve a notícia de que teria a aposentadoria cortada, após passar por perícia médica.

Atualmente, 59,5 mil pessoas que vivem com HIV – vírus causador da Aids – recebem benefício do INSS, entre aposentadoria por invalidez e auxílio-doença, segundo o órgão.

Augusto está no grupo de pessoas com HIV que tiveram a aposentadoria por invalidez cortada nas últimas revisões feitas pelo INSS. Os benefícios são cancelados quando, após perícia, o órgão avalia que a pessoa tem condições de voltar ao mercado de trabalho.

O órgão não respondeu quantas pessoas com HIV tiveram o benefício cortado nos últimos anos.

Agora, aposentados por invalidez que vivem com HIV/Aids não precisam mais passar por perícia de revisão, e, portanto, não correm o risco de ter seus benefícios cortados. Mas, como a dispensa está em uma lei que entrou em vigor em junho, ela não vale para perícias já realizadas, como a de Augusto.

Defensores públicos que atuam na área previdenciária contam que se depararam com mais casos de corte de aposentadoria e auxílio-doença de pessoas com HIV/Aids nos últimos meses – ou seja, de perícias feitas antes da nova lei. A Defensoria Pública da União (DPU) auxilia os cidadãos carentes (com renda familiar bruta que não ultrapasse R$ 2 mil) que precisam recorrer à Justiça para questionar decisões de órgãos como o INSS.

“Antes, eu atuava em casos de HIV, mas era esporádico. De repente, em 2018, com o pente-fino, notei que estavam chegando muitos casos assim, tanto de gente que vinha em gozo de auxílio-doença quanto que tinham aposentadoria por invalidez”, diz a defensora pública federal Carolina Botelho, que atua no Ceará.

Questionados sobre os critérios para o corte de benefícios, a Secretaria de Previdência e o INSS informaram que os benefícios por incapacidade não dependem exclusivamente da identificação de uma síndrome ou de uma doença, mas da “incapacidade para exercer sua atividade laboral”.

Carolina Botelho define esses casos como um “problema silencioso”, já que muitas pessoas com HIV evitam falar sobre o tema, inclusive com a família, devido ao estigma social. “Hoje alguns dos casos mais difíceis para a defensoria são os de HIV.”

É comum, segundo ela, que juízes apresentem o entendimento de que em cidades maiores não há tanto problema de preconceito e, por isso, o “estigma social” não seria um motivo para o trabalhador ter direito ao benefício por invalidez.

“Os juízes dizem que em cidade grande não tem isso (estigma social). É um tipo de caso que ainda perdemos muito, mas começou a mudar. Precisamos entender que o ponto central é o estigma sofrido por essa pessoa.”

Ela diz que as pessoas, em geral, esperam uma imagem específica de quem vive com HIV. “A maioria das pessoas com HIV que atendi não estão no estereótipo que temos em mente. A maioria é homem, jovem, bem cuidado.”

Carolina Botelho elogia a iniciativa de fazer revisão nos benefícios para combater fraudes, mas diz que pessoas que teriam direito aos benefícios acabam prejudicadas.

“O difícil é aceitar que, para fazer essa faxina, tem que prejudicar a vida de alguns. O problema não é a revisão, é a falta de planejamento.”

‘Quem vai querer um funcionário com HIV?’

A defensora aponta que, mesmo que o beneficiário aparentemente tenha condições de trabalhar, ele precisa de suporte para conseguir fazer o tratamento adequado.

Augusto, que estudou até a 7ª série e trabalhava como auxiliar de produção em uma indústria no Paraná antes de se aposentar, diz que as empresas não querem contratar pessoas que terão que apresentar atestado médico com muita frequência.

“A empresa lógico que não vai querer contratar um funcionário que pode ter que sair toda hora. Quem vai querer um funcionário com HIV? Não é assim que funciona, teria que ser uma empresa muito legal.”

Na fase em que ficou com a saúde mais debilitada, Augusto conta que passou 50 dias de cama, depois de contrair hepatite B. Com quase 1,80 de altura, chegou a pesar 40 kg.

Enquanto recebia aposentadoria por invalidez, Augusto diz que as pessoas conhecidas o questionavam sobre o motivo do afastamento e ele sempre evitou contar sobre o HIV.

“Eu inventava uma história sobre minhas varizes na perna, por causa do estigma que a gente tem que carregar o tempo todo. Eu não conto isso para as pessoas. Tenho medo de que, de boca em boca, caia no ouvido da minha mãe, que tem 73 anos. Não quero que ela se preocupe comigo.”

Reabilitação profissional

Retornar ao mercado de trabalho em uma condição competitiva é outro desafio para quem passa anos recebendo benefícios por incapacidade. Carolina aponta a necessidade de essas pessoas passarem por “reciclagem”, para adaptar suas habilidades e formação a um novo contexto.

“O mercado de trabalho hoje é completamente diferente de anos atrás. As exigências são muito maiores hoje. Isso vale para casos de HIV e outras situações também.”

Carolina lembra que a oferta é uma obrigação do INSS, mas que muitas vezes os cursos não são capazes de preparar as pessoas para retornarem ao mercado de trabalho. “O INSS tem que oferecer, segundo a lei, o curso e o transporte para o curso. Mas as reabilitações são muito falhas e, em muitos casos, não são oferecidas”, diz.

O INSS informa que oferece “assistência educativa ou reeducativa e de adaptação ou readaptação profissional” para proporcionar aos beneficiários “os meios indicados para o reingresso no mercado de trabalho e no contexto em que vivem”. O encaminhamento do segurado para esse serviço depende da perícia médica, segundo o órgão.

‘Você não tem mais capacidade de trabalhar’

Heitor*, de 39 anos, tenta reaver na Justiça o auxílio-doença que ele perdeu no ano passado. Ele trabalhava como cozinheiro em uma empresa há dez anos quando, em 2015, descobriu que era soropositivo.

“Quando eu fiz a sorologia, comuniquei à empresa. Aí me informaram que eu não podia trabalhar com objeto cortante e me mandaram tirar férias. Quando retornei, me chamaram dizendo que não podia mais fazer parte do quadro de funcionários porque não podia ter contato com os clientes e que eu deveria me afastar.”

Ele ficou afastado até o ano passado, quando o auxílio-doença foi cortado e ele voltou para a empresa, que fica no Ceará.

“Trabalhei uns meses, aí em janeiro me deram férias e, quando retornei, fui demitido. Desta vez, a empresa tomou o cuidado de dizer que era uma redução de quadro de funcionários”, disse.

Nas conversas informais, contudo, ele diz que ficou claro que a demissão teve relação com o fato de ser HIV positivo: “A funcionária do RH disse para mim: ‘você não tem mais capacidade de trabalhar, você deve falar com um advogado’. Fiquei com vontade de pedir isso por escrito.”

Hoje, ele oscila entre se arrepender ou não de ter comunicado à empresa. “Sinceramente, eu me arrependo de ter contado, essa é a verdade”, diz, para minutos depois emendar: “Por outro lado, para mim, seria muito grave não contar.”

Veto derrubado

A discussão sobre os benefícios por incapacidade para pessoas com HIV chegou a Brasília. E terminou – não sem divergências – com a sanção da lei, em junho deste ano, que dispensou de perícia o aposentado por invalidez que vive com HIV/Aids.

O Congresso Nacional aprovou o texto que trazia essa determinação, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou o projeto, em abril deste ano.

O argumento usado na justificativa de veto foi o de que o texto aprovado pelo Congresso era inconstitucional e contrariava o interesse público.

O Ministério da Economia disse que “a proposta legislativa tem o potencial de estigmatizar e violar a dignidade do segurado com HIV, que seria afastado, por presunção, da possibilidade de reabilitação profissional, decorrente de perícia médica periódica, que tem ainda a relevante função de combate a fraudes no âmbito previdenciário”.

Ao analisar o veto presidencial, o Congresso derrubou a decisão do Palácio do Planalto e a lei foi sancionada.

A Secretaria de Previdência reforçou que a lei não tem efeito retroativo – ou seja, não vale para perícias que já foram realizadas.

*Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar a identidade deles.

Fonte: BBC News Brasil
Texto: Laís Alegretti
Data original da publicação: 29/07/2019

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