A precarização do trabalho vai além do que é materialmente visível e vem assumindo novas facetas que naturalizam o acúmulo de funções não remuneradas.
Henrique Weiss
Nos últimos anos, as paisagens urbanas brasileiras se encheram de caixas de isopor revestidas por logotipos coloridos. Elas estão nas costas de homens jovens, pedalando suas bicicletas ou pilotando suas motos. Algumas exceções se aplicam tanto ao gênero e a faixa etária quanto ao veículo utilizado, mas uma questão afeta a todos: quem gerencia um trabalho onde não há gerente?
A figura do gerente foi central na constituição da moderna organização do trabalho – parecendo quase evidente a necessidade de uma pessoa fiscalizando e controlando a realização do trabalho. Entretanto, no trabalho uberizado, inserido na economia de bico (gig economy) ou em qualquer outra denominação que dermos, não há a figura do gerente. Ao menos, não na forma convencionalmente conhecida.
Pode-se argumentar que os aplicativos e seus algoritmos são os novos gerentes. Isto é uma verdade, mas é uma verdade parcial. Os aplicativos realmente possuem uma capacidade sobre-humana de coleta e manipulação de dados. Entretanto, estes possuem “furos”, são burláveis e, mesmo assim, os trabalhadores tendem a realizar o trabalho exatamente como a empresa gostaria que o fizessem. Por quê?
É sabido que neste profundo processo de precarização do trabalho, os custos e riscos são de responsabilidade de quem o realiza. É o entregador que deve ter a sua própria bicicleta ou moto, é o motorista de Uber que deve possuir seu próprio carro. Caso algum acidente aconteça, a responsabilidade é exclusiva do motorista.
A realidade é que, para além das ferramentas necessárias para a execução do trabalho, os trabalhadores e trabalhadoras também arcam com um acúmulo de funções, incluindo a de gerência.
Durante pesquisa relacionada ao trabalho de entregadores-ciclistas das empresas Rappi, iFood e Uber Eats em Porto Alegre, percebi que havia duas características que se ressaltavam: 1) uma profunda auto responsabilização pelo seu sucesso individual e pela realização do seu trabalho; 2) e um também profundo senso de apoio mútuo para com os outros entregadores-ciclistas. Estas duas características tornam possível a realização do trabalho tal como o é feito, dado que o suporte prestado pelas empresas é muitas vezes nulo ou negativo.
A primeira característica se relaciona à forma de lidar consigo mesmo; a segunda, com os outros. É possível afirmar que a uberização do trabalho atrai e cria sujeitos que se organizam a partir de um autogerenciamento. A lógica vendida é simples: quem melhor souber controlar as condições e se esforçar mais, terá maior retorno financeiro. Esta é uma afirmação facciosa, dado que as possibilidades do trabalhador em definir qualquer questão referente ao seu trabalho são mínimas.
Também é possível encontrar este senso de apoio mútuo, quando um trabalhador ajuda o outro tanto em relação a problemas materiais – como se deslocar para auxiliar na manutenção de uma peça quebrada ou pneu furado, por exemplo – quanto em relação a ensinar o outro como seria melhor agir para receber maiores rendimentos, explicando onde são os melhores locais e quais são os melhores horários.
Este apoio mútuo também ocorre de forma motivacional, quando algum trabalhador perde sua fé na suposta meritocracia referente ao trabalho uberizado, o outro terá a função de torná-lo crente outra vez.
É a partir destas dinâmicas que surgem os trabalhadores-gerentes, que socializam, fiscalizam e supervisionam a si mesmos e aos outros, ensinando como se deve executar o trabalho e como se deve imaginar que tudo depende apenas de si, que é possível definir os seus ganhos e a qualidade do seu trabalho.
Dentro desta mesma linha de raciocínio, podemos pensar que há um processo de cooptação da cooperação por parte das empresas, que não prestam nenhum tipo de suporte ao trabalhador, fazendo com que estes, entre si, acabem por acumular e executar também estas funções.
A precarização do trabalho vai além do que é materialmente visível e vem assumindo novas facetas que naturalizam o acúmulo de funções não remuneradas, deixando os trabalhadores cada vez menos amparados, criando a necessidade de formas de apoio mútuo para que seja possível se aproximar de um mínimo de segurança acerca da possibilidade de um rendimento suficiente para a reprodução da vida.
Esta constatação foi baseada no depoimento de um uberista que entende como empoderamento o que é simplesmente precarização:
É uma geração de empoderamento… tu toma as tuas próprias decisões, tu escolhe a tua rota, como tu vai concluir aquele serviço… como tu vai te posicionar, tanto com o comerciante, quanto com o aplicativo, quanto com o cliente que vai receber… fica a teu critério como resolver cada situação, desde o momento em que tu aceita a corrida, vai lá retira o pedido, trata com as pessoas que tão lá no restaurante, trata com o cliente… é tudo contigo. Isso se chama empowerment.
A auto responsabilização é a forma mais engenhosa de exploração. O trabalhador interioriza as normas e a ideologia responsáveis pela sua situação subordinada e explorada. Os termos mistificados, de preferência em inglês, justificam o novo mundo do trabalho.
Henrique Weiss é aluno do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).