Quarto de despejo 4.0: os ecos da escravidão na pandemia

Deixemos como sociedade civil a hipocrisia de lado, e passemos a ter um compromisso ético e radical para a melhoria das condições de vida das trabalhadoras domésticas.

Rayane Andrade e Vladimir Paes de Castro

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 22/04/2021

Carolina Maria de Jesus em seu diário de uma favelada registrou como era a vida da população pobre e negra do país. Suas páginas, que felizmente tiveram reconhecimento em vida, são ainda mais atuais diante da pandemia provocada pelo COVID-19 que castiga o mundo, e o Brasil em particular. Carolina narra como a fome amargava e fazia tremer, traduzindo o que é viver em um quarto de despejo, e mostra como é ser lida como um corpo além de descartável, como uma existência que incomoda apenas por partilhar o dom da vida.

As páginas de Carolina retratavam o Brasil do início da década de 1960, num momento de ebulição social e econômica, na véspera do golpe cívico-militar, que atava seu destino a elaboração de uma identidade nacional fundada em um mito unificador: o da democracia racial. De lá para esse 2021 pandêmico observamos que sob novas capas essa idealização de “paraíso da cor” é um verdadeiro pesadelo para quem não é lido como branco no país. Em todos os índices de desenvolvimento humano a população negra brasileira tem as piores performances. A origem comum desses trágicos resultados vem da fonte inesgotável opressora do complexo patriarcal-racista-capitalista.

Assim, não estranha que durante a pior crise humanitária que atravessamos enquanto nação, após a abolição formal da escravidão, esses ecos saudosistas dos tempos de “Casa Grande e Senzala” voltem com força, de forma desavergonhada. O recente caso envolvendo o esposo da famosa cantora de axé, Ivete Sangalo, pinta com cores fortíssimas essa triste realidade. Em live transmitida pela rede Instagram, ele conversava com a atriz Regina Casé sobre como a sua família estava reagindo ao resultado positivo para a infecção provocada pelo coronavírus. Em determinado momento ele afirma categoricamente que a origem da doença tinha “chegado pela cozinheira” e que “esse lance de o funcionário passar uma semana aqui, folgar, enfim…” teria sido o responsável pelo COVID-19 ter batido em sua porta. Não custa lembrar que o referido cidadão é branco, privilegiado financeiramente, e expressa exatamente o que os seus pensam: o dedo em riste para a empregada doméstica nunca descansa. E mesmo na pandemia, não seria diferente. Percebam que ele sequer cita o nome da trabalhadora, e para piorar, arremata de forma cruel e irônica que ela teria trazido o vírus quando usufruiu de sua folga. 

Esse comportamento preconceituoso e desumanizador em face da trabalhadora doméstica é mais comum do que se imagina. Quem não lembra da trágica morte do menino Miguel num condomínio de luxo no Recife? A patroa, “Sinhá 4.0”, largou o filho de sua funcionária, uma criança de 5 anos, sozinho dentro de um elevador, enquanto a mãe de Miguel, Mirtes Souza, estava cuidando e passeando com o pet da “madame”. Em pleno pico da pandemia no início de junho/2020, a patroa não podia ficar sem os serviços da funcionária, submetendo a trabalhadora a risco de infecção pelo coronavírus, e pior ainda, como ela não tinha com quem deixar seu filho Miguel, já que as escolas estavam fechadas, teve que levar seu bem mais precioso para o trabalho. 

A desumanização e objetificação da população negra, a herança escravagista e os privilégios da branquitude na realidade desse sistema capitalista liberal hegemônico, tudo é muito bem retratado nessa tragédia: A mãe que não tem com quem deixar seu filho na sua comunidade periférica; a falta de política pública que proteja essas famílias; a sinhá moderna que “não sabe” cuidar de sua casa, nem mesmo de seu cachorrinho, mesmo estando em pico da pandemia, isolada no conforto de sua residência de luxo; a sujeição cruel da trabalhadora a risco alto de infecção pelo COVID-19 nos deslocamentos em transportes lotados até a “casa grande”; a falta de cuidado e a morte de mais uma criança negra.    

A Covid-19 explicita nossa conformação de classe, raça e gênero. Ela não atinge igualmente os sujeitos. Não à toa, segundo a ABES, a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, o risco de morte de um trabalhador de limpeza é seis vezes maior que o do restante da população. Logo atrás deles estão as trabalhadoras domésticas. E o que explica isso senão os corpos que ocupam essas posições vistas como subalternas em nossa sociedade? São homens e mulheres negras cujas vidas sempre foram tratadas como dispensáveis no país que teve mais séculos de escravismo que de República.

Os dados são reveladores de como esse tipo de conduta de nossa elite chucra, e também de boa parte da classe média, empurra essas trabalhadoras para a morte, da mesma forma como se faziam nos tempos da escravidão. Não é obra do acaso que a primeira morte registrada pela doença no país tenha sido justamente de uma trabalhadora doméstica, a diarista Rosana Aparecido Urbano, de São Paulo. Dias após a primeira vítima no Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica, cujo nome não foi revelado, que contraiu a doença de sua patroa branca que residia no Alto Leblon, um dos metros quadrados mais caros do país, e acabara de retornar da Itália, importando em primeira mão o vírus que causava frisson na Europa. Então, a lógica se inverte. Quem infectou a população pobre no Brasil foram os privilegiados de sempre, que trouxeram a moléstia de avião, e que agora, através de narrativas desonestas, querem transformar as vítimas vulneráveis de todo esse processo em vilãs.

Outra questão de suma importância que nos salta aos olhos em todo esse cenário de exploração, agressão, e, portanto, de desumanização de trabalhadoras negras periféricas, é o papel “não” exercido pelas instituições que deveriam estar fiscalizando essas violações e buscando alternativas para o respeito de direitos fundamentais mínimos em favor dessas milhões de trabalhadoras. Na nossa avaliação, a institucionalidade, sejam os gestores municipais, estaduais e federais, sejam os órgãos de fiscalização do trabalho e do sistema de justiça trabalhista, continuam no geral inertes nesse triste cenário. Qual a explicação para essa situação de quase absoluta omissão das instituições quando se trata da defesa intransigente de direitos dessa categoria de trabalhadoras?

Entendemos que o privilégio de classe, e o racismo estrutural decorrente, permeiam todo esse cenário de profundas dificuldades que essa categoria de trabalhadoras enfrenta em sua luta histórica e permanente por direitos e igualdade de condições às demais categorias de trabalhadores. 

Vale destacar que a nossa própria Constituição “cidadã” de 1988 sonegou a essas trabalhadoras uma série de direitos fundamentais, perpetuando a vil exploração do trabalho de forma notoriamente discriminatória. Cidadania para alguns, e para essa categoria mais vulnerável de trabalhadoras, menos direitos e estímulo à exploração. Mesmo depois da Emenda Constitucional nº 72/2013, ainda não foi estendido às trabalhadoras domésticas toda a gama de direitos fundamentais trabalhistas previstos em nossa Carta Magna.

Ressalte-se, portanto, que o fio condutor sócio-econômico que conecta as histórias contadas acima é o “bom e velho” privilégio de classe, aliado a herança escravagista presente na gênese da branquitude nacional. Esse pano de fundo está presente na morte de Miguel em Pernambuco, passando pelo comentário do “sinhozinho 4.0” na Bahia, até as mortes das trabalhadoras no Rio de Janeiro e São Paulo, e também atravessa a postura do constituinte originário, legislador federal, auditoria fiscal do trabalho, Ministério Público do Trabalho e Judiciário, ou seja, toda a institucionalidade que se omite desavergonhadamente na consagração da igualdade material de direitos das trabalhadoras domésticas. 

Ora, qual o perfil hegemônico de nossos representantes legislativos, auditores fiscais, procuradores do trabalho e magistrados? Filhas e filhos da classe média e da elite branca privilegiada desse país, com condições financeiras para contratar uma trabalhadora para realizar suas tarefas domésticas. Além disso, o passado escravagista de nossa sociedade, que ainda está cravado no DNA dos membros da “Casa Grande 4.0”, na nossa visão, explicam de forma contundente o porquê de em pleno século XXI ainda termos uma categoria histórica de trabalhadoras com menos direitos. Num ambiente de aprofundamento da precarização do direito do trabalho, a situação das trabalhadoras domésticas é ainda mais aviltante, e não acompanhamos no debate público nenhum movimento para romper essas estruturas de opressão dessas milhões de trabalhadoras negras periféricas. Como diz a célebre frase, “o trabalho dignifica” essas milhões de trabalhadoras? Ou é apenas instrumento de vil exploração dessa mão de obra?

Convocamos toda a branquitude privilegiada que se diz progressista, a exemplo das feministas liberais, para que efetivamente contribuam para o reconhecimento de direitos e dignidade em favor dessa classe de trabalhadoras, que cuida de sua casa, de seus filhos e filhas.   

Como diz a campanha encabeçada pela Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD, com o título “Cuida de quem te cuida”, que possamos proteger a vida das trabalhadoras domésticas durante a pandemia, principalmente nos picos de contágio. 

Deixemos como sociedade civil a hipocrisia de lado, e passemos a ter um compromisso ético e radical para a melhoria das condições de vida das trabalhadoras domésticas. Não compactuemos com discursos desumanizantes como o replicado pelo “Sinhozinho 4.0”, esposo da famosa cantora de axé baiano, sob pena de perpetuarmos todas as opressões que atravessam os corpos e a vida de nossas Carolinas de Jesus da atualidade. 

Rayane Andrade é professora de Direito da Universidade Estadual de Goiás. Doutoranda em Direitos Humanos – UNB. Advogada popular pela RENAP.

Vladimir Paes de Castro é juiz do Trabalho do TRT21-RN, membro da Associação de Juízes para Democracia (AJD) e da Associação Nacional de Magistrados da Justiça  do Trabalho (ANAMATRA).

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