Qual o preço que o Brasil paga por sua desindustrialização?

Assolada por problemas conjunturais e uma crise estrutural diante da ‘locomotiva’ asiática e da revolução 4.0, a manufatura brasileira derrapa.

Carlos Drummond

Fonte: Carta Capital
Data original da publicação: 24/05/2018

O governo brasileiro mostrou pressa em afirmar que não há canal de contágio entre a Argentina às portas do FMI e o Brasil, mas deveria aproveitar o susto para examinar a velocidade da desconstituição da indústria brasileira, ilustrada pontualmente pelos dados conjunturais negativos divulgados pelo IBGE em 02/05.

Pois, se o risco de “argentinização” é remoto de acordo com Brasília, o mesmo não se pode dizer quanto ao perigo de “mexicanização” do setor com a transformação de fábricas em reles montadoras de importados ou “maquiladoras”.

A variação negativa de 0,1% da produção industrial em março na comparação com o mês anterior foi provocada em grande medida pela queda da produção de bens intermediários. O recuo denota problemas crônicos, entre eles o dos juros altos e o do real valorizado herdados do governo FHC, sendo essa apreciação apenas atenuada durante surtos de alta do dólar em crises como a atual, mas não é só isso.

“Além dos graves problemas conjunturais, a indústria vive profundo colapso estrutural. É como se ela estivesse parada no caminho de duas locomotivas, a da manufatura asiática liderada pela China e a da nova revolução industrial”, compara Fernando Sarti, professor do Instituto de Economia da Unicamp.

O declínio no segmento de bens intermediários ou insumos tem a ver com o avanço dessa crise estrutural. O segmento é o coração da indústria e compreende todas as matérias-primas processadas e os bens manufaturados que uma fábrica compra de outras empresas para a elaboração dos seus próprios produtos ou bens finais. São exemplos as bobinas de aço, as autopeças e os pneus, entre inúmeros itens que uma montadora adquire para produzir automóveis.

A estagnação da indústria, com variação negativa mencionada de 0,1% em março, e a oscilação positiva de igual valor em fevereiro após o recuo de -2,2% em janeiro se deve, em grande parte, às taxas negativas da categoria de bens intermediários, tanto na comparação com fevereiro de 2017 (-0,7%) quanto no confronto com março desse mesmo ano (-0,2%), mostra a Pesquisa Industrial Mensal do IBGE.

Os bens intermediários, explica a instituição, correspondem a cerca de 60% da indústria nacional e abrangem todas as matérias-primas, a exemplo de minério de ferro, petróleo, celulose, açúcar, derivados da soja, produtos da metalurgia, adubos e fertilizantes, além dos biocombustíveis e derivados de petróleo.

“Os bens intermediários têm relação direta com a dinâmica da demanda doméstica. Por isso, quando há menos procura por matérias-primas a categoria recua e isso se reflete no indicador geral”, explicou André Macedo, gerente encarregado da pesquisa.

O risco inerente à substituição da produção nacional por importados nesse segmento crucial em um processo que converte fábricas brasileiras em “maquiladoras” foi denunciado por esta revista em abril do ano passado e parece cada vez mais provável, sugerem os dados do IBGE.

“A indústria segue com dificuldades”, confirma a Confederação Nacional da Indústria, que anotou queda do faturamento real em 2,5% e das horas trabalhadas na produção em 0,9% em março, enquanto a utilização da capacidade instalada e o emprego permaneceram estagnados, com variação de 0,2%.

“O desempenho nos últimos meses mostra que a melhora foi efêmera. A importação de têxteis, calçados e couro voltou a ser muito forte, inclusive perante o desempenho da produção desses bens. Nenhum deles se saiu muito bem agora no primeiro trimestre e os dados do IBGE mostram que esses são os ramos mais sensíveis aos produtos asiáticos concorrentes, que têm competitividade quase inquestionável nesses segmentos”, atesta Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial.

Isso que a gente está vendo agora, prossegue, é um sintoma conjuntural de problemas de ordem mais estrutural que contribuíram para que a indústria fosse realmente perdendo participação na produção doméstica e na economia mundial também. Já foi mais importante no contexto global, possuiu maior participação em valor adicionado e esteve mais bem colocada.

Para o professor Antonio Corrêa de Lacerda, da PUC-SP, os dados do IBGE mostram que “a saída da longa crise na indústria será lenta, frágil e instável” e que se trata de um movimento não apenas conjuntural, mas estrutural, decorrente da desindustrialização em curso provocada pelo ambiente adverso (juros elevados, crédito escasso, ausência de política industrial, política cambial não favorável na maior parte do tempo).

Uma desindustrialização bem diferente daquela dos países avançados, cabe acrescentar, pois ocorre antes do desenvolvimento pleno da manufatura, daí ser denominada de precoce.

“Havia uma expectativa um pouco exagerada de recuperação da indústria diante do grande tombo do consumo e do investimento desde 2016. Uma queda tão profunda exige, entretanto, uma reflexão mais detida sobre várias questões importantes para a retomada”, sublinha Sarti.

Além de vários fatores conjunturais e do problema do conteúdo crescente de bens intermediários importados nos produtos, diz, a indústria brasileira está pressionada por duas grandes forças no cenário internacional que talvez expliquem muito desse quadro atual.

De um lado, construiu-se nos últimos 30 anos uma potente locomotiva na economia global que é a grande fábrica asiática capitaneada pela China, com alguns efeitos muito importantes no cenário mundial. O primeiro deles é uma redução significativa dos preços industriais.

“Pouco se comenta, mas isso tem um impacto imenso sobre a rentabilidade e a competitividade e afeta no limite até as decisões de investimento”, destaca o economista.

A outra transformação estrutural importante, acrescenta, fica evidente nos elevados e crescentes investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação nos países avançados e nos asiáticos que aceleram a quarta revolução industrial, com fortes impactos sobre o nível e a qualificação de emprego, a competitividade dos setores tradicionais e a criação de outros.

As mil empresas globais com maiores gastos naquelas três áreas investiram mais de 700 bilhões de dólares em 2017, um acréscimo de 50% em relação ao início da década. “Nessas condições, quem é que vai pensar em investimento no Brasil que não seja só localizado e para modernização? A situação não é tranquila”, alerta o economista.

A fotografia do setor de bens intermediários impressiona pela esqualidez. Na área de eletroeletrônicos, o grau de penetração de insumos importados foi muito elevado nos últimos 20 anos e praticamente todas as empresas são quase maquiladoras, diz Cagnin.

Entre os segmentos mais atrofiados, acrescenta Sarti, estão o de produtos têxteis sintéticos, onde a concorrência da Ásia é muito forte; o de autopeças, no qual o aumento do coeficiente de importação foi brutal e as empresas se desnacionalizaram e viraram sistemistas, isto é, integradoras de componentes de outras firmas em conjuntos fornecidos às montadoras; e o de insumos para a indústria farmacêutica, com elevação drástica das importações do complexo químico.

A consequência mais grave do processo descrito acima para o País é a perda de parcelas crescentes de autonomia. A economia cada vez mais internacionalizada permite às corporações “fazer arbitragem das suas capacidades ociosas no planeta”, jogando com situações momentâneas de subsidiárias em detrimento dos interesses dos países onde elas estão localizadas, analisa Sarti.

Em outras palavras, a desnacionalização galopante de hoje “transfere para fora do Brasil decisões de onde realizar os investimentos, quanto e o que produzir e exportar para quais mercados. Quando se abdica de manter no País os centros de decisão das empresas, é claro que a base produtiva fica muito enfraquecida”.

Para um país vítima de desindustrialização precoce como o Brasil, o quadro detalhado acima é catastrófico. “A indústria é absolutamente chave, dadas as conexões com os demais setores e por ser potencialmente a maior geradora de valor agregado, ou seja, de emprego, renda, pagamento de impostos. Uma crise nunca se circunscreve a ela, mas atinge toda a economia com aumento do desemprego, precarização do trabalho e da renda, perda de tecnologia, desmantelamento das cadeias produtivas, substituídas na maioria das vezes por importados”, chama atenção Lacerda.

Entre as poucas alternativas para começar a sair do lamaçal está o investimento em infraestrutura, um dos poucos consensos entre os economistas. “É consenso, mas tem de viabilizar, sair do papel e pegar pesado nas quatro áreas: transporte e logística, energia, telecomunicações e saneamento. O Brasil segue com uma relação infraestrutura-PIB muito baixa para o padrão internacional e nos últimos três anos desacelerou de vez”, insiste Cagnin.

Outra opção, salienta Sarti, está no setor agropecuário, “importante para puxar a produção de caminhões, máquinas agrícolas e implementos diversos. Não faz sentido o País ser forte em café, açúcar, soja e outras commodities e não ter aqui uma belíssima estrutura fabricando tratores, colheitadeiras. Além de que infraestrutura e agropecuária propiciam internalizar também a manufatura 4.0.”

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