A cada aproximação do fim de semana, as redes sociais são tomadas pela expressão “sextou!” É uma palavra que traz a promessa de descanso ou diversão, ou ambos. Entretanto, há muita gente que vem optando por uma ideia oposta. É a turma do “segundou”.
No Instagram, a hashtag #thankgoditsmonday (graças a Deus é segunda) contabiliza quase 40 mil menções. É só 10% de #thankgoditsfriday (graças a Deus é sexta), mas não deixa de ser um número expressivo. As mensagens contidas em muitos dos posts revelam uma cultura de glorificação da correria e do trabalho, generosamente temperada com platitudes motivacionais como “a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”.
“Vi as maiores cabeças da minha geração contabilizar jornadas de 18 horas — e depois se gabar sobre isso no Instagram. Quando foi que o ‘workaholismo’ performativo se tornou um estilo de vida?”, perguntou a jornalista de tecnologia e negócios Erin Griffith, em um artigo de opinião para o jornal The New York Times.
O texto procura entender as origens e o contexto do que nos Estados Unidos é chamado de “hustle culture”. A gíria “hustle”, em inglês, tem diversos sentidos, muitos deles negativos. Mais recentemente, entretanto, virou um termo para o ato de trabalhar muito duro para ganhar dinheiro. Em português, seria algo como “ralação”.
“Tem um outro lado, menos visível, que é a criação de um ambiente tão bacana, onde você fica tão à vontade, que basicamente você passa sua vida lá. Isso é bom ou ruim? Depende pra quem”
– Alexandre Teixeira, Autor de “Rotinas criativas: Um antimanual de gestão do tempo para a geração pós-workaholic”
Para a autora, o conceito está disseminado pela cultura contemporânea, em anúncios de marcas esportivas, livros de negócios e no discurso de luminares do Vale do Silício como o empresário Elon Musk que famosamente tuitou que “ninguém nunca mudou o mundo trabalhando 40 horas por semana”.
Glorificar a ralação é central para a imagem do WeWork, empresa americana especializada em espaços de trabalho compartilhado. Seus ambientes exibem frases como “Não pare quando estiver cansado, pare quando terminar”. A empresa, avaliada em US$ 47 bilhões (eram US$ 16 bilhões em 2016), já conta com uma rede de 500 estabelecimentos em 27 países.
Para Alexandre Teixeira, jornalista que pesquisa a felicidade no trabalho e autor de “Rotinas criativas: Um antimanual de gestão do tempo para a geração pós-workaholic”, o WeWork é um símbolo dessa tendência. “Eles são globalizados e tem uma aura bastante cool, então são muito influentes. Ficam na ponta de lança desse modismo”, afirmou ao Nexo.
A popularização dessa nova versão do jeito “workaholic” de ser é muito promovida pela cultura de startups e empresas de tecnologia do Vale do Silício, com escritórios que nem parecem escritórios, mas onde as pessoas não batem ponto e trabalham muitas horas por dia.
De acordo com Teixeira, as empresas de tecnologia do Vale do Silício, na Califórnia (EUA), trouxeram inovações importantes para o ambiente de trabalho, especialmente no que diz respeito à qualidade de vida dos funcionários, com horários menos rígidos, conveniências e locais para descompressão.
“Tem um outro lado, menos visível, que é a criação de um ambiente tão bacana, onde você fica tão à vontade, que basicamente você passa sua vida lá. Isso é bom ou ruim? Depende pra quem”, ponderou. “Costuma funcionar muito para o profissional jovem, é divertido, tem muita gente parecida com você. E é uma lógica do desenvolvedor e programador, gente que em geral precisa mesmo de longuíssimas horas para completar tarefas.”
Ele lembra que o mundo corporativo vem incorporando conceitos do universo geek como o “scrum”, modelo que busca otimizar o tempo de execução de um projeto, e o “sprint”, nome dado aos ciclos temporais que compõem o scrum.
Lanchinho grátis
“Tem futebol e sala de jogos e cerveja e festas, mas realmente eles não te tratam tão bem, eles te esgotam e depois se livram de você”, afirmou o jornalista Dan Lyons, autor de “Lab Rats: How Silicon Valley Made Work Miserable for the Rest of Us” (Ratos de laboratório: como o Vale do Silício fez o trabalho ser miserável para o resto de nós, em tradução livre), em entrevista ao site The Six Fifty.
Para Lyons, o verniz “cool” (de “bacaneza”) encobre uma realidade de precarização. “Estes novos laços entre trabalho e capital, entre empresas e empregados (…) se baseiam em muitos contratantes ou temporários que não conseguem os benefícios de trabalhar para uma empresa. São descartáveis… mas ei, tem lanchinho de graça”, afirmou.
“A vasta maioria das pessoas batendo o bumbo da ‘hustlemania’ não são as pessoas fazendo o próprio trabalho. São gerentes, financiadores e donos”, afirmou David Heinemeier Hansson, cofundador da empresa de software Basecamp, ao The New York Times. Em 2018, ele lançou um livro chamado “It Doesn’t Have to Be Crazy at Work” (não precisa ser doideira no trabalho, em tradução livre).
Trabalho sem sentido
Um outro aspecto da cultura de longas horas de trabalho foi ressaltado em 2013 pelo antropólogo britânico David Graeber: os “bullshit jobs”, ou “empregos ruins”. Segundo sua definição, são trabalhos que só existem para servir aqueles que trabalham muito e não têm tempo de fazer mais nada, como o passeador de cachorro e ou a pizzaria 24 horas.
“É como se alguém ficasse inventando empregos sem sentido só para nos manter trabalhando”, escreveu Graeber. “No capitalismo, é exatamente o que não era para acontecer. Claro, em velhos estados socialistas ineficientes, como a União Soviética (…) o sistema inventava quantos empregos queria”.
Ele lembra da previsão do economista John Maynard Keynes, feita na década de 1930, de que a tecnologia permitiria no futuro que as pessoas nos EUA e Reino Unido trabalhassem apenas 15 horas por semana. Graeber pergunta por que isso não aconteceu. Segundo ele, trata-se de uma forma sofisticada de controle social, de um sistema que enxerga riscos na ideia de ter a população com muito tempo livre.
Baseado na premissa de Graeber, dois economistas holandeses realizaram um estudo que avaliou o quanto as pessoas consideram seu trabalho útil para a sociedade. De 100 mil pessoas entrevistadas, em 47 países, cerca de 8% viam sua ocupação como inútil para o coletivo, enquanto outros 17% tinham dúvidas sobre a utilidade do que faziam. Além disso, cerca de 77% acreditavam ser importante ou muito importante ter um trabalho que contribuísse para a sociedade de alguma forma.
O estudo foi citado pelo historiador holandês Rutger Bregman, em entrevista ao site do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Bregman (cuja fala em Davos defendendo altos impostos para os ricos contra a desigualdade viralizou) destacou as áreas em que a sensação de inutilidade é maior.
“Mais e mais pesquisas dizem que o trabalho das pessoas não está acrescentando nada. Não estamos falando sobre professores, policiais, enfermeiras ou faxineiras, estamos falando principalmente sobre pessoas com perfis maravilhosos no Linkedin”, afirmou. “Se você olha para o relatório, 21% dos profissionais de vendas, marketing, propaganda e relações públicas acreditam que seu trabalho é socialmente inútil, em contraste com 0% dos bibliotecários.”
Os perigos da sobrecarga
Mais tempo no trabalho não se traduz em melhores resultados. Um estudo realizado por um economista da Universidade de Stanford, citado no relatório “Overworked America” (América sobrecarregada, em tradução livre), revelou que a produção de um funcionário é razoavelmente constante se ele trabalhar menos de 49 horas por semana. Trabalhar mais do que as 49 horas semanais, ainda mais por semanas consecutivas, resulta em uma queda abrupta de desempenho.
E, segundo o levantamento, há pouca diferença entre aqueles que trabalharam 70 horas por semana e os que se dedicaram por 56 horas. “Em outras palavras, aquelas 14 horas extras são um desperdício de tempo em termos de conseguir realizar trabalho de fato”, conclui o relatório.
O documento também ressalta as diferenças entre posições em relação ao excesso de trabalho. Os que trabalham por mais horas têm maior probabilidade de pertencerem a “profissões com salários mais altos, como as das áreas gerenciais e jurídicas”. “Mudanças na maneira como empresas organizam o trabalho, junto com o aumento da desigualdade, resultaram no crescimento de empregos que demandam muito para alguns funcionários e que deixam pouco tempo para cuidar de assuntos fora do escritório”, afirmou o texto.
Além disso, é uma mentalidade que trata as mulheres e os homens “como se eles ainda tivessem uma esposa em casa para cuidar das atividades do lar e relacionadas à família”, afirmou o sociólogo Arne Kalleberg, da universidade North Carolina-Chapel Hill.
Por fim, muito trabalho pode afetar a saúde do empregado. “O ‘burnout’ [esgotamento] é um problema para as empresas porque a pessoa chega num estado em que fica incapacitada”, relatou Alexandre Teixeira. “É uma epidemia internacional. No Brasil, uma estimativa de alguns anos atrás era de que 3 a cada 10 pessoas da população economicamente ativa já sofrem ou estão perigosamente próximas de sofrer.”
Fonte: Nexo
Texto: Camilo Rocha
Data original da publicação: 04/02/2019