Proteção ao trabalhador vira “entrave burocrático” só em país que dá errado

É possível promover geração de empregos sustentável sem jogar o custo da retomada da economia apenas no lombo dos trabalhadores.

Leonardo Sakamoto

Fonte: UOL
Data original da publicação: 14/08/2019

Garantias de que trabalhadores não terão saúde, segurança e dignidade violadas ao prestarem serviço a um empregador não deveriam ser vistas como “burocracias” ou “entraves ao crescimento” em qualquer sociedade minimamente civilizada. Por isso, a utilização desses argumentos ad nauseam durante o trâmite da Medida Provisória da “Liberdade Econômica” (que teve seu texto principal aprovado, nesta terça, na Câmara dos Deputados) mostra que seguimos impávidos em direção à barbárie.

O projeto nasceu bem intencionado, com o objetivo de facilitar a vida do pequeno empresário no Brasil – que realmente sofre com um país que não é amigável. No meio do caminho, ganhou uma série de propostas que representavam, na prática, uma segunda fase da Reforma Trabalhista promovida no governo Michel Temer. Por pressão de deputados e representantes de trabalhadores, parte das alterações problemáticas caiu antes da votação.

É possível promover geração de empregos sustentável sem jogar o custo da retomada da economia apenas no lombo dos trabalhadores. Sem matar o descanso aos domingos com a família ou atropelar a pausa para recompor as forças em nome de uma colheita. Sem tentar dificultar o registro de horas extras, criar entraves para interditar locais de trabalho inseguros ou dificultar a verificação das condições por parte da fiscalização.

Que este governo, seu presidente e seu ministro da Economia, repitam incansavelmente que os direitos são barreiras e pedras no sapato, é de se entender. Eles não servem a todos os brasileiros, pelo contrário, cada um deles tem seu Povo Escolhido. Compreendo quando o poder econômico e seus representantes na política defendem abertamente que greves são um fiasco ou dizem que críticas às mudanças trabalhistas da MP da “Liberdade Econômica” vêm de quem não quer que o país saia da crise. É uma questão de defesa da narrativa usada por eles e de sua própria sobrevivência.

Mas o que dizer dos trabalhadores que, apesar de estarem na mesma condição que os demais, atuam como guerreiros do capital alheio, tentando convencer outras pessoas que menos proteção à saúde e à segurança são coisa boa?

Trabalhadores que, não raro, sofrem por conta de patrões exploradores, chefes violentos e por um sistema que arranca-lhes o couro e que ataca violentamente toda e qualquer tentativa de lutar contra injustiças. O que, além do desconhecimento histórico e da doutrinação, faz com que pessoas chamem outras que resolveram cruzar os braços em busca de uma vida melhor de “vagabundas”?

Muitos são adeptos do pensamento “se me estrepei a vida inteira, todo mundo tem que se estrepar também”. Isso representa o melhor da filosofia “Para o Buraco, Eu Não Vou Sozinho” (muito conhecida desde que o segundo hominídeo tentou derrubar o primeiro hominídeo após este ter se erguido e andado com duas pernas), mas que vem se aprofundando em sociedade individualistas. “Se aguentei tudo calado, por que essas pessoas não podem aguentar também?” Nada como uma sociedade no cabresto para servir de cão de guarda.

A verdade é que se as pessoas soubessem como certas regras e normas são alteradas no seu dia a dia, com discursos que escondem reais intenções, haveria um motim. Aquela velha história da salsicha. Sendo que a produção de salsicha é muito melhor e mais saudável do que de certas leis.

Direitos e proteções que nós temos hoje, como aposentadoria, férias, 13o salário, limite de jornada de trabalho, descanso aos domingos, piso de remuneração, proibição do trabalho infantil, licença maternidade não foram concessões vindas do céu. Mas custaram o suor e a vida de muita gente através de diálogos e debates, demandas e reivindicações, paralisações e greves, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

É função de empregadores e políticos fazerem parecer que foram eles que, generosamente, nos deram tudo isso. E função da História contada pelos vencedores registrar isso como fato inquestionável, retirando do povo o registro dessas vitórias, como já disse aqui várias vezes. Nossa função é lembrar que não, quantas vezes por necessário.

Enquanto isso, a narrativa se espalha e ganha fãs. “Não fale em crise, trabalhe”, de Michel Temer. “O trabalhador vai ter que decidir se quer menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego”, de Jair Bolsonaro.

O povo, devidamente treinado garante, no final das contas, o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia. Quem sai da linha do que é visto como o padrão, leva na cabeça. Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável é, não raro, retratado como um pária. Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível uma ideia se manter de forma aparentemente pacífica. Afinal, o melhor gado somos nós mesmos, quando dispensamos a cerca.

Em tempo: Um dos momentos mais relevantes da minha função como professor de jornalismo é quando discuto direitos trabalhistas com os alunos. Não só os da sociedade como os deles próprios. A percepção de si mesmos como trabalhadores ajuda a verem com empatia as demandas de outros trabalhadores. Reconhecerem-se não como empreendedores individuais, lutando sozinhos por sua sobrevivência, no estilo cada um por si e o sobrenatural por todos, mas percebendo que as aflições e dúvidas da pessoa ao lado também são as nossas – o que pode facilitar o diálogo coletivo.

Esse tipo de percepção, quando atrofiada pela falta de debate e reflexão, faz uma falta danada. Ainda mais em momentos de intensa coberturas de temas trabalhistas, como aqueles que vivemos hoje. Greves? Coisa de va-ga-bun-do. Projetos que tiram proteções à saúde e à segurança de trabalhadores? Chega de assistencialismo. Uberização da economia? Vanguarda do emprego. Trabalhar até tarde sem horas extras? Todos tem que dar o sangue pelo país.

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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