Proposta de reforma administrativa no Congresso abre caminho para um Estado patrimonialista e autoritário. Entrevista especial com Roseli Faria

por Igor Natusch

Neste momento, o Congresso Nacional concentra todas as suas energias na definição do novo presidente da Câmara, marcada para 2 de fevereiro. Logo após essa definição, porém, os projetos de lei que estão na fila voltam a tramitar – incluindo alguns de especial importância para os funcionários públicos de todo o Brasil. Protocolada no Senado em setembro do ano passado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32 é vendida por seus defensores como uma medida fundamental na modernização da coisa pública em nosso país – evitando o mau uso de recursos financeiros, eliminando o inchaço de servidores e permitindo a prestação de serviços mais eficientes.

Muitas vozes, contudo, se erguem contra essa idealização quase idílica da chamada Reforma Administrativa. A economista Roseli Faria, da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor), tem sido uma delas. Diante da quase completa ausência de debate público sobre os efeitos e consequências da reforma, tal como está posta, ela tem denunciado o suposto avanço como um retrocesso – uma alteração que, se for concretizada, vai arremessar o serviço público brasileiro várias décadas para trás, inviabilizando políticas públicas e deixando o Estado vulnerável aos caprichos e interesses particulares dos poderosos da vez.

Durante a conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, Roseli Faria falou em detalhes sobre os muitos efeitos negativos que a PEC 32 pode, se aprovada, causar ao serviço público brasileiro. Em sua visão, o tempo de falar em teoria já passou: agora a proposta é uma realidade, e é fundamental enfrentá-la no corpo a corpo com os parlamentares, de forma a convencê-los a não aprovar o texto. Uma luta difícil, mas que deve ser a principal tarefa das entidades ligadas à defesa de trabalhadores e trabalhadoras nos primeiros meses de 2021.

DMT – A chamada Reforma Administrativa está na agenda imediata do governo federal, e deve ser colocada na frente da fila nos primeiros meses de 2021. Em que contexto essa proposta se insere? De onde ela surge, e com quais premissas ela se alinha?

Roseli Faria – A PEC 32/2020 – que eu tenho uma certa resistência em chamar de ‘reforma’, porque o termo ‘reforma’ traz uma ideia positiva que não está em lugar algum desta proposta – nem nas outras mudanças constitucionais e infraconstitucionais que tivemos nos últimos cinco anos, compõe um projeto de país que estava muito claro naquele documento que o MDB soltou lá em 2015, Uma Ponte para o Futuro. Lá, se fazia um diagnóstico de que a crise econômica, que já estava se aprofundando então, era o resultado do excesso de Estado. Logo, a solução seria limitar ou até reduzir o tamanho do Estado, para que as forças do mercado pudessem ocupar esse espaço que o Estado ineficiente não conseguiria atender e voltaríamos a crescer e ser felizes no futuro. Esse projeto começa a ser implementado a partir do impeachment da Dilma, passa pelo (projeto de Emenda Constitucional do) Teto de Gastos Públicos no final de 2016, pela reforma trabalhista – entre aspas – do primeiro semestre de 2017, pela reforma da previdência. Aliás, pouco antes da reforma trabalhista também tivemos a ampliação da possibilidade de terceirização, a gente acaba esquecendo um pouco isso, mas é algo importante nesse contexto. Daí vem a reforma da previdência de 2019 e agora surgem tanto a PEC 32, que é chamada em vários lugares de reforma administrativa, quanto um outro conjunto de mudanças constitucionais que foi enviado ao Senado no finalzinho de 2019, e que teve menos atenção da mídia e até mesmo dos servidores. O “Plano mais Brasil”, composto pelas PEC 186-187-188/2019, traz, dentre outras coisas, a ideia de quebrar o piso mínimo de gastos sociais, como da Saúde e da Educação, por exemplo.

Se você considerar o discurso de melhoria dos serviços públicos, de entregas, de maior qualidade etc, você vai ler a PEC 32 e não vai conseguir enxergar como esta Proposta vai entregar isto, porque existe uma grande contradição entre os dispositivos que nela estão e o discurso de melhoria de gestão. Mas, se você considerar o movimento desses últimos cinco anos, aí será possível entender a PEC 32, porque fica claro que ela é um pedacinho de um projeto maior.

DMT – Não a concretização de um projeto, exatamente, mas um degrau de uma escada.

Roseli Faria – Isso, basicamente isso. O que temos visto, nos últimos cinco anos, é a destruição do pacto da Constituição de 1988, do projeto de país que está lá – sem a realização de uma Constituinte. Você vai fazendo essas reformas – que, ao meu ver, mesmo juridicamente são bastante discutíveis, não poderiam ser feitas por forma de PEC como eles fazem – e, assim, vai enfraquecendo as estruturas da Constituição de 1988. Todo mundo concorda que precisa melhorar a gestão pública – até pela obrigação de qualquer instituição, a gente sempre quer melhorar e atingir melhores resultados. Acontece que, na verdade, você poderia fazer todos esses melhoramentos por legislações infraconstitucionais. Para melhorar a gestão pública no Brasil você não precisa de PEC, mas começam pela PEC porque ela faz parte de projeto de desmonte, de transformação forçada de um país, que o grupo que entrou no poder em 2016 tem em mente.

DMT – Gostaria de retomar mais tarde o tema de uma reforma adequada, que de fato apontasse para uma melhoria na gestão pública etc. Mas, antes, queria que você falasse a respeito de alguns discursos que surgem para legitimar essa reforma administrativa na esfera pública. Que o funcionalismo brasileiro custa demais, que o quadro é inchado e ineficiente…

Roseli Faria – Quando você tem contato com esse discurso, e vai analisar os estudos que eles usam para dar suporte a esse discurso, você percebe que há uma série de problemas técnicos e que esse discurso não se sustenta. O percentual de servidores públicos do Brasil, de todas as esferas e de todos os poderes, em relação à população e em relação ao setor privado, é inferior a países da OCDE, que é a base que muitas vezes se usa e que faz sentido, porque você vai olhar para cima e não para países que não queremos tomar como modelo. O número de servidores, nesses dois sentidos, já é inferior (ao de países da OCDE). Com relação a gastos, a mesma coisa: você tem uma comparação entre setor privado e público de 8% a mais de gastos, em média, que o setor público pagaria – mas você vê também um percentual semelhante em outros países da OCDE, exceção feita aos Estados Unidos, que é um desenho distinto em relação aos outros países do bloco.

Quando mais você olha para estados e municípios, acaba verificando o problema de pagar pouco, de não incentivar o servidor a se qualificar ou atrair os melhores quadros. E quando você vai para a União e para alguns Poderes, como Legislativo e Judiciário, aí sim você vai encontrar um problema de remuneração descolada do setor privado, de uma forma que você não conseguiria justificar a remuneração falando em atrair melhores quadros ou em termos republicanos em geral. Então, o que temos são problemas localizados, que precisam ser enfrentados sem nenhuma dúvida, mas que você não consegue mudar por emenda constitucional. Aliás, há um teto constitucional remuneratório institucional que não foi seguido, e que não é seguido justamente pelos membros do Judiciário e do Ministério Público, bem como alguns outros casos isolados em algum Poder ou esfera. Na verdade, o grande problema remuneratório que a gente tem é de desigualdade: paga-se muito pouco para a base e muito mais para a elite, inclusive acima do teto constitucional. E nada que está na PEC 32 enfrenta esse problema.

DMT – Parece claro que os setores com salários mais altos não são atingidos pelas reformas propostas, enquanto a base do funcionalismo é tratada como a raiz do problema, como se ganhasse fortunas.

Roseli Faria – Uma coisa importante: às vezes a gente vê uma crítica da mídia da tradicional sobre como os membros de poder ficaram de fora da PEC – porque o Judiciário está na PEC 32, os servidores do Judiciário estão, os servidores do Ministério Público; os procuradores, promotores e juízes é que não estão. Eles deveriam estar? Penso que não, porque nada na PEC é aproveitável. Ou seja, não é uma questão de criticar a PEC porque ela deixou esses cargos de fora, mas de criticar a PEC pelo seu desenho em si. Inclusive dentro daquilo que eu comentei: precisamos de PEC para melhorar a gestão pública? Não, podemos fazer isto com algumas leis e normativos infralegais.

Por exemplo, quando você procura na PEC dispositivos que aumentem a eficiência do Estado, você não encontra. É interessante notar que nem mesmo dispositivos para a redução de gastos estão presente diretamente na proposta. Digo isto, porque a proposta não vai necessariamente reduzir os gastos do Estado no curto prazo, e eu arrisco dizer que não há essa garantia nem mesmo no longo prazo: a garantia é de sucateamento, não de redução de custos. A proposta em si é tão patrimonialista que é possível, sim, você sucatear o serviço público mas, ao mesmo tempo, também inchar a folha de pagamento do Estado com servidores apaniguados, indicações políticas não legítimas. É óbvio que há indicações políticas que são legítimas: ninguém vai discutir se o chefe do Executivo pode ou não colocar o seu grupo na estrutura de governo, é evidente que ele pode. Mas você tem que fazer isso dentro de regras republicanas. Então, nem quando você fala que, com a PEC, vai haver redução de gastos com folha de pagamento você está falando de algo garantido. Ao permitir um aumento desregrado do número de servidores temporários e comissionados, que não possuem as mesmas prerrogativas dos servidores estatutários, o que você pode ter é um aumento dos gastos com folha salarial e, ao mesmo tempo, um sucateamento dos serviços públicos.

O que eu quero dizer que esse discurso de que é uma PEC fiscalista, não é necessariamente verdadeiro. Porque o fiscalismo da reforma administrativa está em outras propostas, nas PEC 186 e 188/2019, que não recebem o nome de reforma administrativa, mas que, dentro dessa ideia de reformar para deixar pior, acabam entrando no conjunto. Nestas outras PECs, há a previsão de redução de jornada do servidor público em algumas situações– o que significa, na prática, a redução da oferta de serviços públicos – com a consequente redução salarial. Suponhamos que nós tivéssemos um diagnóstico de que a remuneração geral é muito alta, sem que houvesse uma justificativa administrativa ou republicana. Nem para combater isso a reforma serviria, porque ela não promove uma redução direta e imediata das remunerações, o que eu ela faz é subverter alguns pilares republicanos nos quais se avançou justamente com a Constituição de 1988: o concurso para entrada em um emprego do serviço público, a construção de uma burocracia profissional, a garantia da continuidade nos serviços públicos – poder mudar o dirigente e você ter servidores continuados de carreira estruturada que vão continuar ali tocando a máquina. Isso tudo a proposta subverte. Reduzir salários e reduzir a máquina, aí são coisas que ela não faz em curto prazo e é discutível que ela, a médio ou longo prazo, consiga fazer.

DMT – Uma das críticas mais fortes que surgem contra a reforma administrativa, tal como está posta, é de que ela acaba com a estabilidade dos servidores. Quais as consequências disso para a administração pública?

Roseli Faria – Não só não haverá mais estabilidade, como existem dispositivos na PEC que flexibilizam muito a entrada para concurso público. Há umas armadilhas para as quais é preciso ficar muito atento.

Eu brinco que, na melhor das hipóteses, a gente volta para o Brasil da República Velha. Que é mais ou menos o que o próprio presidente Bolsonaro já disse em entrevistas: que o novo governante entre, coloque a sua turma e mande embora todo mundo que estava lá antes. A melhor das hipóteses é um Estado da República Velha, em que não há essa burocracia do Estado trabalhando para a continuidade dos serviços públicos para a população, mas uma burocracia patrimonialista que estará ali para trabalhar em nome dos interesses do chefe do Poder Executivo. Sempre lembrando que a PEC não é só para a União, que a gente não está falando apenas do Presidente da República. Vai valer para 26 estados, para o Distrito Federal e 5.570 municípios – que são, inclusive, a esfera em que, em larga medida, não conseguiu profissionalizar a burocracia, onde há um número de comissionados muito maior e mais descontinuidade quando muda o prefeito. Mas enfim, na melhor das hipóteses você volta para antes do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), criado na metade da Era Vargas, e que iniciou o processo de profissionalização da burocracia.

DMT – E na pior das hipóteses?

Roseli Faria – Na pior das hipóteses – e é nela que eu apostaria, para ser sincera – você não vai apenas rumo a um Estado mais patrimonialista, mas também mais mercenário e autoritário. Eu percebo que, muitas vezes, o caráter autoritário da proposta não está sendo devidamente aprofundado. Além de desestruturar essas regras para os servidores públicos, você altera regras também para a modelagem organizacional do Poder Executivo da União. O que eu quero dizer com isso? Que ali há dispositivos em que o chefe do Poder Executivo, ou seja, o Presidente da República, pode extinguir órgãos, tirar atribuições de carreira, fundir órgãos públicos… Ou seja, você tem um Estado que, na minha opinião, não terá apenas uma forma diferente, mas uma matéria, um substância diferente, que mistura o paternalismo da Velha República com o autoritarismo que a gente teve em tempos de ditadura. As regras que estão lá dão ao chefe do Executivo um poder maior do que os líderes da ditadura militar tiveram. Eu costumo dizer que é um Estado dos senhores da guerra, um Estado tribal, que quem vier traz seus milicianos e mercenários, faz a pilhagem que quiser, desestrutura e leva o que quiser e permanece até que aconteça uma mudança de poder, se acontecer. Eu sempre me vejo como uma pessoa moderada, mas esse é o grau do meu pessimismo. Lendo o que está na proposta, e somando a uma leitura geral dos últimos anos, eu não posso deixar de achar que é isso que está sendo entregue.

DMT – Seria possível, então, dizer que seria o fim das políticas de Estado no Brasil, e que passaríamos a ter apenas políticas de governo, e olhe lá?

Roseli Faria – Sim, totalmente. Isto explicaria por que militares e os membros de poder do sistema judiciário estão fora (da reforma): porque um Estado que exista do modo como essa proposta desenha vai precisar mesmo de forças de segurança muito mais fortes para controlar as forças sociais que vão se rebelar contra uma sociedade e um Estado tão injusto. Para mim, faz todo sentido eles ficarem de fora – embora eu ache que todo mundo tem que ficar de fora, já que essa reforma não deveria nem mesmo existir, mas por motivos diferentes.

Outro ponto da PEC que fica bastante claro para mim é que o Brasil, nos últimos cinco anos, realmente perdeu o rumo econômico, o projeto de país da Constituição de 1988 se foi, e esse outro projeto, que está na Ponte Para o Futuro, não tem força para se instituir imediatamente. O Brasil entrou em uma crise econômica entre 2015-2016 e não conseguiu se recuperar mais. Às vezes eu paro e digo para mim mesma: “Roseli, essa sua análise é construída a partir de um certo saudosismo”. Talvez seja, mesmo porque eu não tenho estudos nesse sentido que me deem subsídios – mas eu tenho convicção, e convicções têm sido suficientes para muita coisa por aí, incluindo ações de Estado – mas tenho a impressão que as elites econômicas brasileiras desistiram da ideia de desenvolvimento do país. Então, trocamos empresários que eu mesma criticava na minha adolescência, como Antônio Ermírio de Moraes, José Mindlin, o próprio Jorge Gerdau (Johannpeter) – uma elite que pensava um país industrializado e desenvolvido, que seguia uma lógica monopolista, mas que tinha efetivamente um projeto de país – e troca tudo isso pelo Velho da Havan (Luciano Hang). Deixamos de ter propriamente uma elite e passamos a ter apenas uma classe dominante, que não tem condições de mostrar um rumo, de orientar um projeto de país. O Velho da Havan, por exemplo, não pretende fazer um complexo industrial de nada, ele quer apenas ampliar o número de suas lojas vendendo bugigangas. Onde, então, você tem espaço para as forças capitalistas aumentarem a acumulação? A partir da mercantilização de direitos do Estado – basicamente, saúde e educação. Não é coincidência que a irmã do ministro Paulo Guedes (Elizabeth Guedes) trabalha no segmento de educação superior particular. Não é coincidência que o Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, defenda a ideia de uma nova Constituinte. Vamos lembrar que ele, quando foi ministro da Saúde de Michel Temer, queria incentivar planos de saúde supostamente populares…

Então, eu vejo a PEC 32 em cima desses três pilares. É um Estado patrimonialista, que vai permitir esse sucateamento dos serviços públicos; é um Estado autoritário, e é por isso que você tem determinadas carreiras fora, porque você vai ter que fortalecê-las para controlar as forças sociais; e é um Estado cujos serviços vão ser mercantilizados para promover essa acumulação capitalista. Realmente, saúde e educação são os setores que mais irão perder se essa PEC for aprovada, porque essa é a intenção, é conseguir tirar mais recursos a partir da mercantilização de serviços.

DMT – Um dos argumentos dos defensores da reforma é de que as mudanças não atingiriam os funcionários presentes. Isso corresponde à realidade?

Roseli Faria – Em hipótese nenhuma. Para começo de conversa, ela abrange todas as esferas possíveis: União, Estados e municípios. Todos os poderes… Então, servidores do Legislativo serão afetados? Serão. Do Judiciário? Serão. Quem está fora, mesmo, são os membros de poder: juízes, membros do Ministério Público e militares – que, pela Constituição, não são considerados servidores públicos. Ela afeta diretamente os servidores que estão na ativa, sim.

Desde 1998 nós temos a possibilidade de demissão de servidores por desempenho insatisfatório. Isso aconteceu a partir de uma mudança com a reforma gerencial do governo Fernando Henrique Cardoso, em que ele previu a regulamentação dessa demissão por meio de lei complementar, que nunca foi aprovada. Os políticos brasileiros adoram mudar a Constituição, mas não demonstram o mesmo apreço pela regulamentação. Quando não sabem o que fazer, mudam a Constituição. No caso da demissão por insuficiência de desempenho, a proposta muda a exigência de lei complementar, que precisa de um quórum diferenciado no Congresso Nacional, para lei ordinária. O que significa isso? Que o presidente da ocasião pode emitir uma medida provisória, com validade imediata, estabelecendo uma avaliação de desempenho insatisfatório e, depois, se o Congresso aprovar, a medida afetará todos os servidores atuais que estão na ativa.

Outro exemplo é o poder conferido ao presidente da república para mudar as atribuições de carreiras, que não somente afetaria os servidores da ativa, como também os servidores inativos. Vamos supor que um presidente da república se incomodasse com a atuação dos fiscais ambientais, que estivessem multando muito ou fiscalizando demais. Este presidente poderia retirar parte da atribuição dessa carreira e repassar para servidores comissionados. Isso enfraqueceria imediatamente essa carreira, que perderia parte da sua atribuição e importância. A carreira perderia poder de negociação dentro do serviço público, com impacto inclusive salarial. Neste caso, os servidores inativos que ainda têm paridade iriam ter perdas salarias ao pertencer a uma carreira irrelevante, com atribuições esvaziadas, e que poderia entrar em extinção. Então, a PEC não apenas impacta os servidores ativos e inativos, como pode impactar imediatamente.

DMT – Levando em conta, então, todos esses pontos que estamos discutindo… Quais seriam, na sua leitura, as premissas para uma reforma administrativa efetiva, que trouxesse melhoras concretas para a gestão pública sem desmontar a estrutura que hoje temos?

Roseli Faria – Começa em três pontos. O primeiro se refere ao desenho do Estado: ao invés de mais poder para o Chefe do Executivo fazer mudanças organizacionais, deveria haver mecanismos que garantisse mais estabilidade. Porque a sociedade não tem ideia do que acontece no Executivo quando você funde secretarias, muda órgãos, quando ocorre uma reforma ministerial. Isso causa uma rede de efeitos em cadeia que geram uma enorme ineficiência, não só porque você muda essas estruturas e seus dirigentes, mas porque isso também altera metas e prioridades. Ou seja, em um determinado momento toda a burocracia dirigente está buscando A, e de repente se diz: não busquem mais a coisa A, agora a meta é B. Então, penso que seria necessário fazer essa discussão sobre estrutura organizacional, para evitar que coisas assim aconteçam.

Outro ponto que seria importante é falar de processos. A administração pública é organizada em processos, então, por mais que eu queira ou ache que o melhor caminho para a minha nota técnica é contornar A, mandar direto para B e o B já encaminhar para o ministro assinar, eu não posso fazer isso, porque existe uma série de normativas e até uma certa cultura de compartilhar responsabilidades. Isso tudo é infraconstitucional, pode ser feito até mesmo por decreto ou portaria. Seria interessante implantar uma lógica de gestão que dê flexibilidade e agilidade nos processos internos da administração pública, em todas as esferas e poderes.

E outra questão a ser pensada tem a ver com o quadro de servidores, com gestão de pessoas. É muito interessante que se queira fazer uma reforma de RH, ou seja, dizer que está incentivando o bom servidor a partir de uma punição do suposto servidor ruim a partir da flexibilização ou mesmo extinção de prerrogativas – mas o grande esquecido não só dessa suposta reforma, mas de toda a discussão pública, é sempre o gestor médio. Há hoje um cenário de centenas, talvez milhares, de gestores médios gerenciando equipes grandes, que fazem entregas importantes, sem metas claras a atingir e despreparados para exercer esse tipo de função. Às vezes você tem um grande técnico e o promove para gerir equipes, perdendo um grande técnico e ganhando um péssimo gestor; às vezes é um indicado político que não sabe nem a parte técnica, nem a parte de gestão. É possível mudar este cenário a partir de uma mudança na cultura organizacional, com foco no gestor público e suas equipes e no planejamento. Ou seja, foco no estabelecimento de prioridades e metas, no acompanhamento, na avaliação, na formação do gestor e suas equipes. No entanto, está é uma agenda perdida no debate sobre gestão pública. Sem planejamento, você não consegue estabelecer metas e prioridades, e o gestor médio vai orientar as equipes para alcançar exatamente o quê?

DMT – Como agir, então, diante da proposta de reforma que está posta? É possível evitar que ela seja aprovada? Quais ferramentas de resistência estão ao alcance?

Roseli Faria – Acho que agora a bola está no Congresso. Claro que a gente tem todo um esforço no sentido de informar a sociedade, romper as bolhas das redes sociais, discutir além dos nossos próprios grupos. Há um limite nisso, que está localizado na mídia tradicional: você fica martelando “reforma, reforma, reforma” e aí qualquer coisa que venha com o selo de reforma ela (a imprensa) acaba apoiando de qualquer jeito. Então, há essa disputa de explodir a bolha da mídia tradicional e do próprio campo progressista, e conseguir levar essa discussão para outras pessoas, inclusive de nossas famílias. Mas a grande verdade é que tudo isso seria com o objetivo de pressionar o Congresso, porque agora a bola está com eles.

Para mim, é fundamental buscar discutir com os congressistas. Ir atrás das bancadas, levantando justamente essas deficiências que estão no dispositivo. A gente não pode mais discutir em tese, “ah, olha só, a reforma significa X sendo que os dispositivos dizem Y”. Temos que pegar o que está lá (no projeto), entender efetivamente os seus impactos e pressionar os deputados – seja por meios digitais, seja diretamente nos gabinetes, falando com os assessores. Discutindo na prática, não em tese, a partir do que já está no Congresso. E pressionar também, no caso daqueles congressistas que apoiam, de modo que, quando ele falar coisas tipo “a PEC foi criada para premiar o bom servidor”, se possa questionar diretamente quais os dispositivos que vão premiar o bom servidor. Pedir os números, forçar uma discussão de alto nível a partir do que efetivamente foi enviado.

DMT – Sair do abstrato, então, e forçar uma discussão no terreno concreto?

Roseli Faria – Exatamente. Questionar qual a vantagem de ampliar possibilidades de contratação sem concurso público, em um regime de contratação simplificado, qual a vantagem em flexibilizar a estabilidade do servidor público. Porque veja bem, eu acho extremamente elitista você dizer que algumas carreiras são típicas de Estado e outras não. Na hora em que o bicho pega e você está no SUS, carreira típica de Estado é enfermeiro e médico. Para mim, essa é uma discussão anacrônica, porque lembra aquele período em que você fazia serviço público para ascensorista, e isso não é mais a realidade. E você falar “ah, mesmo assim há um núcleo que merece estabilidade e o outro não” é desconhecer como é a carreira do servidor público. O servidor público de uma carreira-meio vai ter diversos cargos no decorrer de sua vida. Se você diz que um assistente técnico é um cargo inferior, que não precisa de estabilidade, e amanhã ele passa a trabalhar na divisão de licitações e contratações, você acha mesmo que ele não precisa de estabilidade só porque ele ingressou na carreira como assistente técnico e agora está em uma função distinta? Então, é esse desconhecimento de toda a complexidade da carreira no serviço público que precisamos enfrentar.

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