O dia em que o campeão do mundo de xadrez Gary Kasparov foi derrotado pelo famoso computador criado pela IBM, em 1998, foi o primeiro alerta de que o homem poderia ser desafiado e derrotado pela sua própria criação. Mas não foi o início de uma revolução. Antes disso, em 1961, a fábrica da General Motors tinha já substituído funcionários da sua linha de montagem pelo primeiro robô industrial, o Unimate, e a universidade de Stanford (EUA) tinha criado a Sharkey, a primeira “pessoa eletrônica”, um robô capaz de realizar múltiplas tarefas. Os robôs já não são o futuro, estão entre nós. Prever o seu impacto na economia e no mercado de trabalho já não é um mero exercício de futurologia. Hoje discutimos se os avanços da inteligência artificial e automação conduzirão, ou não, a uma eliminação direta de postos de trabalho. Mas o que parece indiscutível é que — seja pela sua eliminação ou pelas mudanças que terão de sofrer para se adaptarem à tecnologia —, há carreiras em risco e muitas profissões, tal como hoje as conhecemos, poderão não existir no futuro. E muitas são altamente qualificadas.
Carteiros, operadores de caixa, porteiros, operadores de call center, agentes de viagens, maquinistas e motoristas (de pesados e ligeiros), funcionários de armazém ou bancários estão entre os profissionais mais ameaçados pelos avanços da tecnologia e da inteligência artificial (ver caixa). Várias estatísticas internacionais confirmam-no e Carlos Sezões, sócio (partner) da consultora de recrutamento Stanton Chase, valida a análise. “Todas as profissões sustentadas em tarefas rotineiras estão na linha da frente das mais ameaçadas, quer pela digitalização quer pela robotização”, explica o especialista acrescentando que “esta ameaça não se coloca apenas no seu número, mas também na sua essência”. Ou seja, não é imperativo que todas estas profissões deixem efetivamente de existir — “algumas deixarão” —, mas é certo que terão de mudar nos seus fundamentos e posicionamento.
Os mais qualificados não escapam
E se as profissões elencadas parecem óbvias, ora pela transferência das comunicações para o contexto online ora pelos avanços das técnicas de reconhecimento da fala, expansão dos sistemas de pagamento automático e inteligência artificial aplicada à mobilidade urbana, outras há em que a ameaça não só não é tão óbvia como custa mais a aceitar.
Ter um robô a realizar-lhe um diagnóstico clínico ou uma entrevista de emprego, a servir-lhe o almoço no restaurante, a patrulhar a rua onde mora para garantir a sua segurança, a recebê-lo à chegada a um hotel, a gerir os seus investimentos num banco, a apoiar o seu advogado na sua defesa judicial, a conduzir a orquestra no concerto a que assiste, a pilotar o avião onde viaja ou a celebrar uma cerimônia religiosa, parece-lhe coisa do futuro? Não é. É real.
A Enlitic, uma das muitas startups a trabalhar com inteligência artificial e com o deep learning — redes de neurônios artificiais biologicamente inspiradas nas nossas células cerebrais — está a desenvolver soluções de apoio ao diagnóstico clínico e o Watson, o robô-médico desenvolvido nos laboratórios da IBM e treinado por investigadores do Memorial Sloan Kettering Cancer Centre, em Nova Iorque, já está operacional em inúmeros hospitais apoiando clínicos no diagnóstico de pacientes com cancro.
Nos Emirados Árabes Unidos, as forças policiais já contam com robôs a patrulhar as ruas — os REEM — e a previsão é a de que até 2030 estes elementos representem 25% da força policial. Na China e na Índia, ser servido à mesa num restaurante por um robô já não é novidade e a automação também já chegou, embora com grande discussão, à religião. Alemanha e Japão já tiveram rituais religiosos celebrados por robôs, deitando por terra a ideia de que há profissões que são intocáveis (na perspectiva da ameaça tecnológica), pela forte componente emocional e humana que detêm.
Neste aspecto, Carlos Sezões é mais cético. O especialista em recrutamento advoga a ideia de que “as tarefas com maior vertente emocional são mais difíceis de automatizar”, mas reconhece que a inteligência artificial já não ameaça apenas profissões indiferenciadas e chegou aos mais qualificados. Advogados, auditores, atuários, médicos (na vertente do diagnóstico) são hoje confrontados com a concorrência da inteligência artificial. E até no recrutamento o algoritmo já tem poder e casos há em que a primeira entrevista de seleção a um candidato é realizada por um robô. “Todas as funções físicas e operacionais que possam ser programadas vão ser substituídas pelas máquinas, a uma velocidade muito grande”, explica Carlos Sezões.
Formatar novas carreiras
De acordo com um novo estudo da consultora McKinsey, até 2030, entre 75 milhões a 375 milhões de profissionais (3% a 14% da força de trabalho global) terão de mudar de profissão e outros tantos terão de atualizar competências, já que trabalharão lado a lado com máquinas cada vez mais capazes. O relatório não aponta, contudo, para uma eliminação de postos de trabalho, mas sim para uma adaptação das funções e dos profissionais. Novas carreiras surgirão, tal como tem sucedido ao longo da história.
Sérgio Monte Lee, sócio (partner) da consultora Deloitte que também tem estudado o impacto da automação e da inteligência artificial no emprego, recorda que “40% dos empregos que hoje existem também não existiam há duas décadas e surgiram a partir das necessidades do desenvolvimento econômico e das imposições tecnológicas”. Razão pela qual defende que “saibamos nós liderar este processo como deve ser e não teremos eliminação de emprego, mas sim transformação”. A máquina, argumenta, “só é melhor do que o homem na gestão da informação racional e cognitiva, nunca na emocional”.
Na lista das profissões emergentes do futuro o especialista destaca novas funções e especializações no setor dos serviços. Carlos Sezões fala também em assistentes de realidade virtual e aumentada que possam fazer a mediação entre as novas tecnologias e as empresas desmistificando o seu potencial, técnicos vocacionados para o desenvolvimento de tecnologia inovadora e “profissionais com pensamento computacional, que sejam capazes de perceber como tirar o melhor partido do potencial das máquinas”. Porque afinal é disso que se trata, elas existem para nos servir e não ser ultrapassado pela tecnologia exige acima de tudo que os profissionais se mantenham exatamente o que são: humanos.
Fonte: Expresso
Texto: Cátia mateus
Data original da publicação: 01/01/2018