Prioridades para a Economia no COVID-19

Como é provável que o COVID-19 permaneça conosco ainda por muito tempo, há espaço de sobra para garantir que nossos gastos reflitam nossas prioridades.

Joseph Stiglitz

Fonte: Carta Maior, com Project Syndicate
Tradução: Anna Maria Dalle Luche
Data original da publicação: 06/07/2020

Embora pareça algo antigo, não faz muito tempo que as economias do mundo inteiro começaram a se fechar em resposta à pandemia do COVID-19. No início da crise, a maioria dos economistas antecipou uma rápida recuperação em forma de V, supondo que a economia apenas precisasse de um pequeno intervalo. Depois de dois meses de intensos e dedicados cuidados e muito dinheiro, ela continuaria de onde parou.

Foi uma ideia atraente. Mas já estamos em julho e a recuperação em forma de V é provavelmente uma fantasia. É muito provável que a economia pós-pandemia seja anêmica, não apenas nos países que não conseguiram administrar a pandemia (especialmente os Estados Unidos), mas até mesmo naqueles que se deram bem. O Fundo Monetário Internacional projeta que, até o final de 2021, a economia global ficará pouca coisa maior do que era no final de 2019, e que as economias dos EUA e da Europa ainda estarão cerca de 4% menores.

As perspectivas econômicas atuais podem ser vistas em dois níveis. A macroeconomia nos diz que os gastos cairão devido ao enfraquecimento dos orçamentos das famílias e das empresas, uma onda de falências que destruirá o capital organizacional e informacional e um forte comportamento de precaução induzido pela incerteza sobre o curso da pandemia e as respostas políticas a ela. Ao mesmo tempo, a microeconomia nos diz que o vírus age como um imposto sobre atividades que exigem contato humano próximo. Como tal, continuará a conduzir grandes mudanças nos padrões de consumo e produção, o que, por sua vez, trará uma transformação estrutural mais ampla.

Sabemos, tanto pela teoria econômica quanto pela história, que os mercados por si só não conseguirão gerenciar essa transição, especialmente considerando-se quão repentina ela foi. Não há uma maneira fácil de converter funcionários de companhias aéreas em desenvolvedores da Zoom. E mesmo que pudéssemos, os setores que agora estão se expandindo necessitam de muito menos mão-de-obra e muito mais de pessoal habilitado do que aqueles que estão suplantando.

Também sabemos que amplas transformações estruturais tendem a criar um problema keynesiano tradicional, devido ao que os economistas chamam de efeitos de renda e substituição. Mesmo que os setores sem contato humano estejam em expansão, refletindo melhorias em sua atração relativa, o aumento de gastos associado será superado pela diminuição nos gastos resultantes da queda de renda dos setores em retração.

Além disso, no caso da pandemia, haverá um terceiro efeito: o aumento da desigualdade. Como as máquinas não podem ser infectadas pelo vírus, aos empregadores elas parecerão relativamente mais atraentes, particularmente nos setores contratantes que usam mão-de-obra relativamente não qualificada. E, como as pessoas de baixa renda precisam gastar uma parcela maior de sua renda em bens básicos do que aquelas que estão no topo, qualquer aumento na desigualdade causado pela automação será contracionário.

Além desses problemas, há mais duas razões para o pessimismo. Primeiro, embora a política monetária possa ajudar algumas empresas a lidar com restrições temporárias de liquidez – como ocorreu durante a Grande Recessão de 2008-09 – ela não pode resolver problemas de solvência, nem estimular a economia quando as taxas de juros já estão próximas de zero.

Além disso, nos EUA e em alguns outros países, objeções “dos conservadores” ao aumento dos déficits e níveis de dívida impedem o estímulo fiscal necessário. Por certo, essas mesmas pessoas ficaram mais felizes em cortar impostos para bilionários e corporações em 2017, socorrer Wall Street em 2008 e ajudar os gigantes corporativos este ano. Mas é coisa bem diferente prolongar o seguro-desemprego, prover cuidados à saúde e oferecer apoio adicional aos mais vulneráveis.

As prioridades de curto prazo têm sido claras desde o início da crise. Obviamente, as emergências de saúde devem ser tratadas (por exemplo, garantindo suprimentos adequados de equipamentos de proteção individual e capacidade hospitalar), porque não pode haver recuperação econômica até que o vírus seja contido. Ao mesmo tempo, políticas para proteger os mais necessitados, oferecer liquidez para evitar falências desnecessárias e manter vínculos entre trabalhadores e suas empresas são essenciais para garantir um rápido reinício quando chegar a hora.

Mas, mesmo com esses óbvios fundamentos na agenda, há escolhas difíceis a serem feitas. Não deveríamos resgatar empresas – como varejistas tradicionais – que já estavam em declínio antes da crise; fazer isso criaria apenas “zumbis”, limitando, em última análise, o dinamismo e o crescimento. Também não deveríamos resgatar empresas já demasiadamente endividadas para conseguirem suportar qualquer choque. A decisão do Federal Reserve dos EUA de apoiar o mercado de títulos podres com seu programa de compra de ativos é quase certamente um erro. De fato, esse é um caso em que o risco moral é realmente uma relevante preocupação. Governos não deveriam proteger empresas de seus próprios desvarios.

Como é provável que o COVID-19 permaneça conosco ainda por muito tempo, há espaço de sobra para garantir que nossos gastos reflitam nossas prioridades. Quando a pandemia chegou, a sociedade americana estava devastada pelas desigualdades raciais e econômicas, pelos padrões de saúde em declínio e por uma destrutiva dependência em combustíveis fósseis. Agora que os gastos do governo estão sendo liberados em grande escala, o público tem o direito de exigir que as empresas que recebem ajuda contribuam para a justiça social e racial, melhoria da saúde e mudança para uma economia mais verde e baseada no conhecimento. Esses valores deveriam se refletir não apenas na maneira como alocamos dinheiro público, mas também nas condições que impomos a seus destinatários.

Como meus coautores e eu indicamos em um recente estudo, os gastos públicos bem direcionados, particularmente os investimentos na transição verde, podem ser oportunos, intensivos em mão-de-obra (ajudando a minimizar o problema do aumento do desemprego) e altamente estimulantes – proporcionando muito custo-benefício mais eficiente do que, digamos, cortes de impostos. Não há razão econômica para que países, incluindo os Estados Unidos, não possam adotar grandes e sustentados programas de recuperação que os confirmem e os aproximem das sociedades a que pertencem.

Joseph Stiglitz é um economista, professor e estudioso estadunidense. Sua obra tem influência direta nos campos de finanças públicas, crescimento, distribuição de renda, eficiência de economias capitalistas e, especialmente, nos estudos sobre as teorias do mercado.

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