Primeiro de Maio: Com seu discurso, Temer ri da cara dos trabalhadores

Leonardo Sakamoto

Fonte: UOL
Data original da publicação: 1º/05/2018

“Você tem feito a sua parte. Você tem acordado cedo, se dedicado, se empenhado, e do lado de cá nós também estamos trabalhando duro.”

Confesso que não costumo comentar os discursos de Michel Temer linha a linha, na íntegra. Mas achei que este, divulgado nesta segunda (30/04), por conta do Dia do Trabalhador, valia a pena. O presidente tentou levantar a bola de várias categorias de trabalhadores e de si mesmo, mas o resultado foi péssimo. Não com muita dose de cinismo.

Que o trabalhador tem acordado cedo, não tenho dúvida. Alguns nem dormem, engatando emprego e bicos. Agora, o governo até pode estar trabalhando duro, mas em nome dos patrões. Temer aprovou uma Lei da Terceirização Ampla, abrindo a possibilidade de precarização em massa de trabalhadores. Depois empurrou goela abaixo da população uma Reforma Trabalhista – que não estava no projeto de país vendido pela chapa ao qual pertenceu nas eleições de 2014, nem foi alvo de amplo debate público. Uma Reforma Trabalhista Rural, que praticamente propunha trocar trabalho por comida e casa, chegou a ser aventada, mas tomou um vareio e acabou na gaveta.

Em negrito e destaque, o discurso dele. Depois, meu comentário.

É com muito trabalho que o Brasil está mudando para melhor.

Comentário: Alguém aqui continua insistindo em negar números. Segundo o IBGE, a taxa de desemprego ficou em 13,1% no primeiro trimestre deste ano. Maior que a do trimestre anterior (11,8%) e um pouco menor que aquela registrada no mesmo período do ano passado (13,3%). São 13,7 milhões de desempregados.

Você tem feito a sua parte. Você tem acordado cedo, se dedicado, se empenhado, e do lado de cá nós também estamos trabalhando duro.

Já comentei acima.

Amanhã, o Dia do Trabalho, é um dia de reflexão, não é um dia de festa.

Fato. Como é possível um país estar tão anestesiado que deixou um governo fraco e sem credibilidade tripudiar os direitos trabalhistas sem uma única convulsão social? Isso é pauta para teses e teses de doutorado em ciência política, sociologia e psiquiatria.

Nós temos que comemorar a nossa capacidade de trabalho. De resistência, de superação. Só ela vai nos permitir festejarmos amanhã.

Antônio acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas e, com duas conduções, sai da periferia da periferia e vai até o bairro de Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, começa a trabalhar no serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês e, sinceramente, não vale a pena. Mas como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois como não tem acesso ao Sírio Libanês ou ao Albert Einstein, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender “churrasquinho de gato” no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Um dia pôs sua churrasqueira para conseguir algum em um final de semana lotado de corrida perto do autódromo de Interlagos. A Guarda Civil Metropolitana, contudo, levou tudo embora. Como ele tem força para trabalhar no dia seguinte, com o Estado brasileiro jogando sistematicamente contra sua vida? Sei lá. Resistência. Superação.

Veja o exemplo do trabalhador do campo que, com o seu esforço diário, ajudou o país a sair da recessão e com suas safras recordes coloca comida mais barata na mesa de todos os outros trabalhadores.

E, como forma de agradecer, em 16 de outubro do ano passado, o governo Temer publicou uma portaria do Ministério do Trabalho alterando o conceito de trabalho escravo a ser utilizado em fiscalizações, o que dificultou a libertação de trabalhadores. Desde 1995, quando o sistema de combate à escravidão foi criado, a maior parte dos mais de 51 mil resgatados estavam na produção agropecuária. Se não fosse a sociedade dizer “não” e o Supremo Tribunal Federal bloquear a medida, tinha gente que não seria libertada por conta de Temer. No final das contas, ele teria trocado a dignidade do povo do campo por apoio de ruralistas e de empresas da construção civil no momento em que tentava se livrar, no Congresso Nacional, da segunda denúncia criminal contra ele.

Assim como os profissionais de saúde, que diariamente salvam vidas, tratam, curam e preservam a saúde das famílias de tantos trabalhadores brasileiros.

O governo Temer conseguiu a aprovação da PEC do Teto dos Gastos, que congela novos investimentos públicos pelos próximos 20 anos. Um dos setores que mais será afetado com isso será a saúde pública e, consequentemente os profissionais do Sistema Único de Saúde. O achatamento salarial que ela pode produzir ou a falta de medicamentos e equipamentos será uma excelente forma de apoio aos profissionais de saúde.

Declaro aqui o mais sincero e o mais profundo reconhecimento aos profissionais da educação. O seu talento e o seu empenho são as ferramentas que moldam os nossos jovens e transformam o nosso futuro.

É simbólico que professores tenham sido uma das primeiras categorias a sofrer com a entrada em vigor da Reforma Trabalhista. Não apenas com as demissões coletivas para substituir profissionais por outros mais baratos em colégios e universidades, mas também pela aplicação de formas inventivas de precarização do trabalho – usando o trabalho intermitente como referência. Tudo possibilitado pelas mudanças feitas na CLT pelo Congresso Nacional e pelo governo Michel Temer. Simbólico porque, no Brasil, a educação é apontada sempre como a saída para todos os problemas. Mas, paradoxalmente, o professor é visto com um entrave. Nada mais lógico, portanto, que a Reforma Trabalhista transforme a vida desse entrave em um inferno, colocando-o em seu devido lugar.

E dedico especial atenção ao trabalhador que coloca sua vida em risco para proteger nossas vidas. Policiais, militares, bombeiros e todos os profissionais da segurança pública. Todo agradecimento é pouco diante da sua bravura e coragem.

Temer confia tanto em policiais e bombeiros que decretou uma intervenção na área de Segurança Pública do Rio de Janeiro e chamou as Forças Armadas para garantir que o trabalho deles seja cumprido. Mas, verdade seja dita, confia mesmo nos militares. A ponto de ter trazido vários dele para postos-chave de seu governo a fim de se garantir em meio à fragilidade institucional. Tanto que ele é o primeiro presidente pós-ditadura que deixa um comandante do Exército chantagear abertamente o STF.

Quero homenagear os trabalhadores do transporte. Na terra, no ar e na água, seu trabalho é fundamental para que tenhamos alimentos nos mercadinhos, remédios nas farmácias, carne nos açougues. Graças a eles, hoje exportamos muito mais.

E homenageou legalizando a terceirização da atividade-fim, anteriormente proibida pela súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. Sindicato de caminhoneiros têm reclamado da medida, pois – na prática – muitos não são autônomos de verdade, mas empregados de transportadoras tratados como “parceiros comerciais”.

Saúdo os trabalhadores do comércio, da indústria, da construção civil e a todos os operários. Seja nas lojas, nas fábricas ou nos canteiros de obras, seu vigor, sua devoção e o seu suor constroem um país cada vez mais forte e respeitado.

Com o aprofundamento da crise econômica, essas categorias foram algumas das primeiras a sofrerem perdas substanciais. Deveriam ter sido as mais protegidos, mas quem teve esse privilégio foram os mais ricos. Dividendos recebidos de grandes empresas continuam sem ser taxados, fazendo com que a classe trabalhadora pague mais imposto através de sua renda assalariada e do consumo do que quem é proprietário ou sócio de grandes empresas. Esses trabalhadores da classe C urbana também sofrem com a falta de uma correção decente da tabela do imposto de renda, o que o governo se nega a fazer.

Faço questão de incluir nessa homenagem todos os servidores públicos, gente de valor que tem como trabalho servir ao povo brasileiro.

Deve ser por isso que, para tentar aprovar a Reforma da Previdência, o governo vendeu a ideia que todo servidor público é um marajá – não raro colocando no mesmo balaio quem ganha mais (magistrados, procuradores, diplomatas, entre outros) e quem recebe uma merreca – como professores e enfermeiros.

Parabéns a todos jovens trabalhadores que inovam a tecnologia, criam aplicativos, os chamados apps e novas soluções para o desenvolvimento do nosso país.

Os tais jovens agradeceriam se, ao invés de um #parabéns, o governo tivesse atendido ao seu pedido de abrir mais linhas de crédito para financiamento de startups de tecnologia, com prioridade de projetos com a participação de mulheres, com juro baixo ou fundo perdido. Lembrando que com a PEC do Teto dos Gastos e com os cortes Orçamentários, a pesquisa em ciência e tecnologia no Brasil está fechando as portas e jovens pesquisadores literalmente passando fome.

Parabéns aos milhões de micro e pequenos grandes trabalhadores. São os nossos serralheiros, mecânicos, carpinteiros, taxistas, cabeleireiras e tantos outros empreendedores. Empresários de si mesmo.

É excelente que as pessoas abram seu próprio negócio. O problema é quando isso não ocorre por opção, mas por falta dela, de forma não planejada, por necessidade e na cara e na coragem. E é isso o que está acontecendo neste momento, pessoas sendo obrigadas a empreender de forma precária. Lembrando que esse tipo de atividade não garante o pacote básico de proteção para ele e/ou ela e sua família, mantendo-os em um grau preocupante de vulnerabilidade social e econômica. Levantamento da Folha de S.Paulo, publicado em janeiro, mostrou que passou de 253,7 mil (no terceiro trimestre de 2016) para 501,3 mil (no mesmo período de 2017) o número de pessoas ganhando o sustento como vendedores ambulantes de comida . Ou seja, gente desempregada vendendo alimento na rua para pessoas que não têm mais dinheiro para comer em restaurantes. Mas, para o governo, são empreendedores que merecem parabéns.

Aos trabalhadores da mídia e da imprensa livre que têm o compromisso com a verdade e merecem toda admiração e respeito.

O redator dos discursos dele é bom em sarcasmo.

E o meu abraço muito especial a todos aqueles que realizam o trabalho comunitário. É preciso celebrar esses verdadeiros anjos da mão de obra do bem, da solidariedade, da cooperação e do amor ao próximo.

Muitos desses “anjos” são defensores de direitos humanos que estão marcados para morrer em regiões de expansão agropecuária e extrativista e nas periferias das grandes cidades. Não precisam de abraço, mas da certeza de que não serão ameaçados e mortos ao fazer um trabalho que deveria ser do Estado. O problema é que os servi.co de proteção aos defensores opera com poucos recursos, apesar da muita boa vontade da equipe. E não há previsão de isso vá melhorar.

E você trabalhador que procura trabalho, não perca a esperança.

Tarde demais. Para muita gente, o Brasil simplesmente não vale mais a pena. Boa parte da população, aturdida com uma geração de empregos que patina está deixando de acreditar na coletividade e buscando construir sua vida tirando o Estado da equação. Uns contam com a ajuda dos vizinhos, outros da igreja do bairro. Vão cozinhando sua insatisfação em desalento, impotência, desgosto e cinismo. Isso não estoura em manifestações com milhões nas ruas, mas gera uma bomba-relógio que vai explodir invariavelmente em algum momento, ferindo de morte a democracia.

Talvez o tempo da indignação já tenha passado para muita gente. E, por não ter produzido frutos, abriu caminho para a desconstrução de instituições que três décadas de democracia ergueram por aqui. A busca de soluções fáceis por governos que não se preocupam com a dignidade dos mais pobres, apenas com sua própria sobrevivência, pavimentou essa estrada. A República vai afundando. A dúvida é se a população, maltratada, vai ser irônica a ponto de bater palmas quando ela desaparecer no horizonte.

O Brasil está crescendo, e, a cada dia, estamos criando mais postos e mais oportunidades.

Além da grande quantidade de postos de trabalho informais, o país só criou empregos formais com remuneração de até dois salários mínimos neste ano. Ou seja, postos e oportunidades aparecem, mas são muito ruins.

Nesse Primeiro de Maio, o presidente da República não podia deixar de mostrar serviço. Por isso, anuncio que acabo de autorizar o reajuste do Bolsa Família. E também renovei o programa Luz para Todos, que beneficiará mais de 2 milhões de pessoas que não têm sequer um bico de luz.

A divulgação do reajuste do Bolsa Família (5,67%), que não acontecia há dois anos, foi feita agora para gerar notícia positiva diante das novas acusações contra Temer por lavagem de dinheiro. Mas considerando o valor médio pago pelo programa (R$ 177,71, no mês de abril, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social) a mais de 13,7 milhões de famílias, um aumento representa pouco, mas compra 5 kg de arroz, 5 kg de farinha de trigo ou 2,5 kg de feijão. Daria cinco coxinhas ou os ingredientes para vários sanduíches de mortadela. É muito para quem nada tem, mas pouco pelo fato de sermos um país rico e desigual. Para os mais ricos, descontos nos juros e multas e parcelamentos a perder de vista. Para os mais pobres entre os pobres, um quilo de salsicha de reajuste do Bolsa Família.

O projeto do novo salário mínimo está encaminhado, será o maior salário mínimo da nossa história.

O cálculo do valor do salário mínimo não depende de Temer, ele está previsto em lei. Além do mais, caso a PEC do Teto dos Gastos não for alterada isso vai estrangular novos aumentos.

É isso! Enquanto alguns passam o dia criticando, a gente passa o dia trabalhando.

Bobagem, fazer este texto foi rápido. Demora para passar a depressão após ouvir o discurso.

E nessa data especial, o país agradece a quem faz, a quem produz e a quem realiza. Trabalhadora e trabalhador brasileiro, meus parabéns!

Olha, por um instante, eu li “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Aí, já seria cruel.

Por fim, direitos que você tem hoje, como aposentadoria, férias, 13o salário, limite de jornada de trabalho, descanso aos finais de semana, piso de remuneração, proibição do trabalho infantil, licença maternidade não foram concessões vindas do céu. Mas custaram o suor e o sangue de muita gente através de diálogos e debates, demandas e reivindicações, paralisações e greves, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

É função de empregadores e políticos fazerem parecer que foram eles que, generosamente, ofereceram direitos. E função da História contada pelos vencedores registrar isso como fato inquestionável, retirando do povo, a massa muitas vezes amorfa e sem rosto, o registro dessas vitórias. E se nos esquecemos das vitórias, deixamos em segundo plano o fruto delas.

Sua função, como trabalhador e trabalhadora, é evitar que isso aconteça.

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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