Fagnani argumenta que o Brasil é “uma procissão de desigualdades”. Saltam aos olhos desigualdades muito além daquela originada pela renda: “nós não resolvemos as desigualdades do século XIX”.
César Locatelli
Fonte: GGN
Data original da publicação: 08/08/2019
Muitos indignam-se com o retrocesso no processo civilizatório no Brasil representado, entre outros, pelo desmonte da seguridade social pactuada na constituinte de 1988. Não se pode dizer, entretanto, que alguém esteja mais indignado do que o economista e professor Eduardo Fagnani, autor do livro: “Previdência: O Debate Desonesto”, lançado ontem (7/8), na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Sua revolta emerge já na nota do autor que antecede o prefácio:
“Este livro é um ato exasperado diante da estúpida imposição de novo retrocesso no processo civilizatório brasileiro. Foi escrito em muitas horas e poucos dias. Era urgente escrever, porque ainda há tempo para agir. Não tive o tempo necessário para corrigir imprecisões, sintetizar o texto e afinar o tom; reutilizei trechos de estudos anteriores. Entrego trabalho visceral, como o momento impõe, e torço por novos tempos.” Fagnani argumenta que o Brasil é “uma procissão de desigualdades”. Saltam aos olhos desigualdades muito além daquela originada pela renda: “nós não resolvemos as desigualdades do século XIX”. E como se não bastasse, está em curso uma reforma na Previdência Social que vai na contramão do avanço civilizatório: “a Previdência vai ampliar as desigualdades”, completa ele.
A luta para destruir o pacto social, concretizado na Constituição de 1988, começou já no dia seguinte de sua aprovação. O então presidente José Sarney foi à televisão dizer que o Brasil se tornaria ingovernável com a Constituição, ao que Ulisses Guimarães respondeu: “ingovernável é a fome”, relembra Fagnani.
Ele cita o professor Belluzzo, que prefaciou o livro, para dizer que a economia virou a arte da ocultação: vende-se que não há alternativas e que o país vai quebrar sem se promover o debate adequado, lançando-se mão de falácias e de terror. Diz ele:
“Não há vontade de debater porque não há argumentos, só falácias que podem ser facilmente desmascaradas. Não se quer fazer reforma alguma, porque o propósito velado é dar sequência ao processo de implantação do projeto ultraliberal no Brasil, o que requer, dentre ouros fatores, a destruição do modelo pactuado em 1988.
A ‘Reforma’ da Previdência é outra peça deste processo que vem sendo ensaiado desde 1989, que ganhou força a partir de 2016, e que passou a ser tocado em marcha acelerada desde o início de 2019. Para que esse objetivo implícito não seja revelado, a estratégia que resta é disseminar a desinformação e o terror, para assim fazer crer que o destino da nação dependeria, exclusivamente, da ‘Reforma’ da Previdência.”
Há duas teses falsas, sem fundamento, que amplamente divulgadas por “especialistas” do governo e do mercado, especialmente do mercado financeiro, que ao serem “repercutidas sem tréguas pela mídia” passam como verdades cabais. A primeira é de que existe um único sistema de previdência social, “todo ele contaminado por privilégios”. Aponta Fagnani:
“Para facilitar o movimento de iludir a sociedade, tratam a Previdência como um bloco monolítico, desconsiderando a especificidade de cada um dos subsistemas que a compõe: Regime Geral da Previdência Social (RGPS); Regime Próprio da Previdência Social (RPPS); Previdência dos Servidores Federais (civis); Previdência dos Servidores Estaduais; Previdência dos Servidores Municipais; Previdência dos Militares; e Previdência dos Parlamentares.
A engambelação não considera que muito dos ditos ‘privilégios’ supostamente existentes na atualidade já foram corrigidos pela edição de diversas emendas constitucionais e de dezenas de Leis Complementares nas últimas três décadas. Onde, afinal, reside o problema? Em quais desses subsistemas? Em todos eles? O que foi reformado? O que falta reformar?”
A segunda tese, igualmente equivocada, surge do discurso de que existe um déficit monstruoso, crescente e incontrolável. Essa tese é propagada ignorando-se a tibieza atual da economia e sem que se identifique em que sistema ou subsistema existem problemas e em quais a questão do financiamento está equacionada. Diz ele:
“Essa mesma visão equivocada, que entende (erradamente) que haveria no Brasil ‘um sistema previdenciário único’ e um suposto ‘déficit’ único, desconsiderando-se, em ambos os casos, a especificidade da organização e do financiamento dos três grandes sistemas previdenciários, também omite que nas últimas três décadas foram aprovadas por várias Emendas Constitucionais e dezenas de Leis Complementares reformando os diversos subsistemas da Previdência. Todas essas medidas teriam sido inócuas? Nenhum dos pontos críticos revisitados hoje teria sido corrigido antes?”
O professor Luiz Gonzaga Belluzzo também entende que o objetivo final é “desconstituir direitos da Constituição”, entre eles direitos trabalhistas e previdenciários. Ele ressalta que o sistema de previdência é condição da vida humana e que há várias soluções possíveis: “Não há uma forma canônica para se resolver os problemas, Apenas nos modelinhos deles, que são uma porcaria.”
Diz Belluzzo:
“É preciso coragem intelectual para marchar na contramão das unanimidades construídas em torno da Reforma da Previdência. Nas manchetes da mídia impressa e nos blá-blá-blás dos tediosos debates promovidos pelas emissoras de televisão, a cabo e abertas, a reforma é apresentada como a Panaceia Universal. Eduardo Fagnani vai além da coragem e nos oferece uma análise percuciente e abrangente das ameaças que rondam os brasileiros, embuçadas nos disfarces do equilíbrio fiscal e da justiça social”.
O professor Belluzzo cita o próprio Fagnani:
“Na perspectiva democrática”, diz Fagnani, “para que se façam ajustes, o diagnóstico técnico elaborado pelo governo, apontando os reais problemas a serem enfrentados, deve ser amplamente discutido pela sociedade. Entretanto, no Brasil, o diagnóstico é intencionalmente distorcido, impõe falsa ideia da realidade e induz intencionalmente ao erro. Não há debate real, de questões reais. O que se ouve é uma fala convulsiva, mentirosa, ativamente falseada, baseada na desonestidade intelectual de grande parte dos especialistas hoje no poder no Brasil, do próprio governo, do mercado e da mídia corporativa.”
O livro segue por 13 capítulos nos quais são aprofundados todos os aspectos dos sistemas e subsistemas da previdência, bem como das mudanças propostas pela atual reforma. Ressalte-se que o capítulo XII aborda o aumento das desigualdades, se a emenda for aprovada do modo como está:
“Alerta-se a sociedade e os parlamentares para o fato de que a destruição da Seguridade Social vai ampliar ainda mais a obscena desigualdade social brasileira, dado que ela é o principal mecanismo de proteção social e de correção de assimetrias de renda existentes no País.”
Por fim, o capítulo XII, que tem o título “Mas há alternativas para o Brasil não ‘quebrar’ que não destroem a seguridade social”, revela uma saída pelo crescimento da economia:
“Ao contrário do que pregam os adeptos do ‘austericídio’ sublinha-se que a alternativa não é ajustar para crescer, mas crescer para ajustar, dada a importância dos fatores exógenos (comportamento das receitas) em relação aos endógenos (comportamento das receitas).
Ao isolar a ‘crise da Previdência’ e associá-la exclusivamente ao ‘excesso’ de despesas, ficam afastadas de qualquer consideração as decisões do sistema político e as decisões macroeconômicas que afetam as receitas do governo, da Previdência e da Seguridade Social.”
Eduardo Fagnani conclui sua fala, no lançamento do livro, ressaltando que “a sociedade reagiu, especialistas criticaram e as propostas mais excludentes, mais indecentes foram eliminadas, mas o grosso permaneceu”. Por fim, revelando uma ponta de otimismo, confere aos atores sociais e parlamentares, a quem o livro é dedicado, o incentivo: “o jogo não acabou”.
Par ler a íntegra do prefácio do professor Belluzzo: https://editoracontracorrente.com.br/pdf/livro46.pdf
Para a loja virtual da Editora Contracorrente: https://loja-editoracontracorrente.com.br/produto/previdencia/