País imaginário debate duas propostas para o futuro. Uma “reforma” para reduzir a cota de pães dos idosos? Ou ocupar melhor os que trabalham, para que as riquezas geradas sustentem a todos? Uma das ideias vencerá o debate.
David Deccache
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 22/03/2019
Se no futuro teremos mais idosos em relação ao total da população é natural que uma maior parcela da riqueza produzida seja apropriada por eles. Para entendermos esta dinâmica vamos usar o exemplo de uma aldeia hipotética chamada de República das Laranjas.
Vamos supor que na República das Laranjas se produza apenas pães. Nesta aldeia, os adultos trabalham enquanto as crianças vão para a escola e os idosos, depois de toda uma vida de dedicação ao trabalho, descansam. Os adultos, que podem trabalhar, repartem os pães que produziram com as crianças e os idosos. Portanto, trata-se de um sistema solidário de repartição muito parecido com o que temos no Brasil.
Na tribo vivem, atualmente, 150 pessoas: 100 adultos, 30 crianças e 20 idosos.
Os 100 adultos produzem 150 pães por dia e distribuem um para cada pessoa. Portanto, a “produtividade” de cada adulto é de 1,5 pães por dia.
No futuro, em 2050, há a previsão de que esta aldeia sofra uma mudança demográfica considerável: haverá cada vez mais idosos em proporção ao total da população. Isso aconteceu graças a descobertas de ervas medicinais que irão prolongar a vida das pessoas. A notícia é ótima. Mas os líderes da tribo ficaram preocupados com as projeções, que são as seguintes:
Haverá, na aldeia, em 2050, um total de 175 pessoas distribuídas da seguinte forma: 23 crianças, 52 idosos e 100 adultos.
Se nada for feito para aumentar a produtividade dos trabalhadores do futuro, haverá um empobrecimento da população em relação ao consumo de pães. Caso cada trabalhador continue produzindo 1,5 pães por dia, a produção de 150 pães, que deverá ser repartida com 175 pessoas, fará com que cada um receba menos de um pão (85% de um pão).
Um grande debate político surgiu na aldeia quando eles se depararam com estes dados. Um economista da aldeia, conhecido como Homer Kado, sugeriu que deveria ser feito um ajuste na distribuição de pães para os idosos do futuro. A proposta dele era a seguinte: para mantermos a proporção da distribuição para crianças e adultos como é hoje, temos que distribuir 23 pães para as crianças e 100 para os adultos. Sobrará apenas 27 pães para ser repartido entre os 52 idosos. Assim, teremos 1 pão para cada adulto e criança e, aproximadamente, meio pão para cada idoso. Ele chamou esta proposta de Reforma da Previdência e alegou que era a única saída para o problema do envelhecimento da população. Homer repetia o tempo todo que não era admissível que no futuro quase 30% dos pães fossem destinados para os idosos e que se isto acontecesse faltaria pães para as crianças.
A comunidade, ao se deparar com a proposta, não gostou muito da ideia: pois ora, não seria justo que eles, que tanto trabalham hoje, tenham uma velhice tão miserável. Porém, como Homer disse, eram apenas números, não havia muito o que fazer.
Entretanto, no meio do debate, um ancião propôs uma outra solução: a comunidade deveria pensar em formas de aumentar a produtividade do trabalhador futuro, ou seja, elaborar métodos e projetar máquinas com tecnologias mais avançadas que fizessem com que cada trabalhador produzisse mais pães em um mesmo intervalo de tempo. Aliás, ele alertou que Homer – o economista – estava ignorando a variação da produtividade no cálculo. Segundo o sábio ancião, um crescimento de produtividade na casa dos 2,2% ao ano, em 30 anos, faria a produção dobrar para mais de 300 pães ao dia, ou seja, cada trabalhador no futuro, ao invés de produzir 1,5 pães, como é hoje, passaria a produzir três pães. Se a aldeia alcançasse este ganho de produtividade, mesmo com o envelhecimento da população, todos poderiam ser mais ricos e consumiriam mais pães: haveria 300 pães para serem divididos com 175 pessoas, o que resultaria em um consumo de 1,7 pães para cada indivíduo. A reforma que a aldeia necessitava, segundo o ancião, era estrutural.
Contudo, o ancião foi questionado pelo economista que lhe disse que em uma tribo vizinha, um tal de Brasil, a produtividade cresceu apenas 1% na última década. Sendo assim, a suposição de um crescimento da produtividade de 2,2% seria um absurdo.
Porém, o sábio ancião, que viveu mais que Delfim Neto, lembrou que no Brasil antigo, entre os anos de 1950 e 1980, a produtividade crescia 4,7% ao ano, que é muito mais do que ele estava supondo nos seus cálculos. O ancião ainda lembrou que o crescimento pífio da produtividade no Brasil depois dos anos 1980 tem correlação com o abandono do modelo desenvolvimentista em prol das diretrizes que o próprio Homer Kado defende. Para o ancião, o processo de desindustrialização precoce no Brasil foi desastroso.
É claro que o ancião também alertou que naquele Brasil antigo, ao passo que a produtividade crescia muito, a riqueza não era distribuída de maneira justa e acabava ficando concentrada nas mãos de poucos, mas isso já é outra história.
Enfim, a República das Laranjas ainda está debatendo que proposta irá adotar: a do Homer Kado ou a do sábio ancião. Por falar nisso, fiquei sabendo que Homer Kado, inspirado no Chile de Pinochet e no Brasil atual, pretende abrir o primeiro banco da República das Laranjas com o objetivo de vender fundos de previdência privada. A ver.
* As proporções e projeções demográficas utilizadas na fábula são aproximações da realidade brasileira de hoje. Entretanto, há uma grande diferença: na história narrada, se pressupõe pleno emprego e no Brasil de hoje falta emprego para 25% dos trabalhadores, ou seja, apesar de termos 100 adultos para cada 50 idosos e crianças, apenas 75 adultos produzem, o que faz a taxa de dependência efetiva ser muito ruim por um fator que nada tem a ver com o envelhecimento da população.
** Taxa de dependência no Brasil. Coluna verde: (idosos + crianças)/adultos. Coluna azul: (crianças)/adultos. Coluna amarela: (idosos)/adultos. Elaboração própria, dados do IBGE.
*** A suposição da igual distribuição entre as pessoas foi um recurso para tornar o exemplo menos complexo. Vale lembrarmos que a distribuição é extremamente desigual no Brasil e uma série de benefícios previdenciários visam transferir não só a renda entre as gerações mas, também, entre ricos e pobres.
David Deccache é Mestre em Economia pela UFF, ativista dos direitos humanos e, atualmente, exerce o cargo de Assessor Econômico da bancada de Deputados Federais do PSOL.