O novo projeto do fundador do Facebook é outra oportunidade para as Big Techs colonizarem nossas vidas, sobretudo no trabalho, em nome do lucro e da vigilância.
Paris Marx
Fonte: Jacobin
Tradução: Sofia Schurig
Data original da publicação: 16/03/2022
Mark Zuckerberg quer que acreditemos que ele descobriu como vamos nos socializar no futuro. Em outubro do ano passado, ele delineou sua visão para o metaverso, um ambiente virtual onde podemos sair, fazer compras e trabalhar. No entanto, essa realização depende do Facebook e várias outras empresas que saltaram para o espaço metaverso para desenvolver as tecnologias das quais dependerá e exige que o público compre uma visão onde passemos mais tempo sentados em casa com óculos de realidade virtual, em vez de sairmos para o mundo físico.
O Vale do Silício tem uma longa história de grandes sonhos que não são realizados, desde a utopia libertária que a internet foi enquadrada em seus primórdios até os veículos autônomos onipresentes que, supostamente, já deveriam ter substituído a propriedade individual dos automóveis. É provável que o metaverso sofra o mesmo destino, mas isso não significa que não terá nenhum impacto. Como Brian Merchant explicou, a indústria de tecnologia está precisando desesperadamente de uma nova estrutura para investir, depois que muitas de suas grandes apostas da última década falharam, e o metaverso poderia estar pronto para tomar esse lugar.
Nas poucas semanas desde o discurso principal de Zuckerberg, outras empresas abraçaram aspectos do metaverso, mas também mostraram como o termo pode ser maleável. Em 2 de novembro, Satya Nadella, CEO da Microsoft, fez seu próprio lançamento metaverso, centrado em torno de empresas e jogos. Ele lançou uma ampla rede argumentando que o conceito englobava as ferramentas existentes de videoconferência e colaboração, assim como jogos como Halo e Minecraft, e que essas aplicações no metaverso seriam aprimoradas por ambientes virtuais. Como Nadella afirmou, o metaverso permite à Microsoft “incorporar a computação no mundo real e incorporar o mundo real à computação”.
Não tenho certeza se essa é uma afirmação tão atraente quanto Nadella quer que acreditemos, mas seu foco em jogos e trabalho pode ser um bom reflexo do que o metaverso poderia ser no final das contas. Resta saber se todos nós seremos empurrados para ambientes virtuais semelhantes a como o uso da Internet se tornou uma parte obrigatória no mundo moderno, mas é muito mais fácil ver como as empresas de videogame e nossos locais de trabalho poderiam incentivar ou mesmo obrigar nossa participação.
Se inspirando nos jogos
Acrescente propaganda em torno do metaverso é inspirada, antes de tudo, pelos recentes desenvolvimentos na indústria de videogames. Não podemos ignorar como a ficção científica como Snow Crash, de Neal Stephenson, onde o termo “metaverso” tem origem, ou Ready Player One, de Ernest Cline, da qual uma cópia do livro costumava ser dada a todos os novos funcionários do Oculus Division do Facebook, inspirados pelo conceito, mas a influência mais forte foi mesmo dos jogos.
No ano passado, o investidor de risco Matthew Ball escreveu um ensaio influente, onde colocou como o ponto central alguns discursos de investidores sobre metaverso e Fortnite. Ele argumenta que o “Fortnite começou como um jogo, mas rapidamente evoluiu para uma praça social”. Os jogadores vinham para jogar, mas ficavam para conversar enquanto o jogo construía espaços adicionais além da experiência com 100 jogadores de batalha.
Empresas realizaram eventos para promover filmes como Star Wars, e grandes artistas como Travis Scott e Ariana Grande realizaram concertos virtuais. As empresas também conseguem explorar sua propriedade intelectual oferecendo itens no jogo, baseados, por exemplo, em personagens Marvel ou DC. É assim que Fortnite faz a maior parte de seu dinheiro: jogadores convertem dinheiro real em V-bucks (dinheiro virtual), que pode ser usado para comprar bens virtuais ou bilhetes para batalhas que fornecem atualizações regulares do jogo.
Ball acredita que o metaverso se estenderá além do que é oferecido atualmente em Fortnite, mas o vê como uma boa demonstração de um “proto-metaverso” por causa da socialização e da atividade comercial que acontece nele. O CEO da Epic Games, Tim Sweeney, aproveitou a narrativa do metaverso para levantar fundos adicionais para a empresa, mas também para se apresentar em oposição à indústria tecnológica existente. Ao invés de seus ecossistemas fechados, ele acredita que o metaverso será uma plataforma aberta e interoperável.
Como parte do esforço para mostrar contraste, a Epic processou a Apple por seus termos da App Store, mas como o juiz do caso observou, a empresa veria ganhos consideráveis se desistisse da ação. É o reflexo de uma tendência na história da indústria tecnológica, onde promessas de abertura e empoderamento individual muitas vezes dão lugar aos interesses corporativos, se não for apenas propaganda desde o início.
No espaço mais amplo do mundo dos jogos, as empresas EA, Square Enix, Take Two e Ubisoft estão embarcando na onda, com recentes declarações positivas sobre NFTs, alimentadas pela quantidade ridícula de investimento em jogos baseados em blockchain. Algumas dessas empresas estão considerando fazer jogos “play-to-earn” (jogue-para-ganhar) que trazem a mania especulativa dos NFTs nesse universo, incentivando jogadores a continuarem jogando pela chance de conseguir NFTs valiosos que possam revender. Em suma, jogar se tornará seu trabalho, pois os bens virtuais poderão valer quantias grotescas de dinheiro real. Mas o metaverso pode mudar muito mais a forma como as pessoas trabalham.
Um novo ataque aos trabalhadores
A indústria tecnológica tem um histórico de alteração da forma como as pessoas pensam sobre empregos. Na década de 1980, as empresas do Vale do Silício foram associadas ao impulso por estruturas de trabalho menos hierárquicas, como em empresas como a Apple que, durante o rescaldo da recessão, nasceu como uma gigante economia utilizando prestação de serviços por aplicativo para confundir os trabalhadores, colocando-os como autônomos e, assim, negando-lhes direitos e benefícios que só teriam acesso como funcionários. O metaverso poderia alterar a vida de várias maneiras.
Conforme os recentes anúncios da Microsoft, e com o que as salas de trabalho virtuais Horizon do Facebook mostraram, aplicativos voltados para o trabalho são considerados centrais para o metaverso; mas, porque esse interesse repentino em escritórios virtuais? Durante a pandemia, muitos trabalhadores, incluindo os da área de tecnológica, foram para o trabalho remoto com o objetivo de reduzir a propagação da COVID-19, e muitos não querem voltar ao presencial. Os empregadores implantaram uma variedade de programas para rastrear funcionários, já que eles não estavam no escritório e aplicativo do metaverso ofereceriam novas e melhores maneiras de fazer isso. Se você não puder estar no escritório físico, será esperado que esteja presente no virtual — e monitorado a cada minuto que estiver lá.
Mas a transformação poderia ser muito mais significativa do que uma expansão da vigilância. Empresas como Uber e Amazon não apenas investiram em sistemas de gerenciamento de algorítmico desde anos 2010 para limitar a autonomia dos trabalhadores e aumentar as metas de produção, mas também expandiram o número de trabalhadores autônomos e terceirizados através de gigantes da economia e plataformas como o Mechanical Turk. Ball escreve que o metaverso será “a próxima grande plataforma de trabalho”, enquanto Zuckerberg disse que dará “às pessoas acesso a empregos e mais lugares, não importa onde elas vivam”.
No contexto da relação entre o Vale do Silício e os trabalhadores autônomos e terceirizados, não temos boas notícias. Trabalhadores das Big Techs alertaram que a redução de seus padrões de trabalho foi o primeiro passo num esforço para ampliar as economias das empresas, e que as tecnologias de trabalho anunciadas pelos defensores do metaverso podem ser a chave para permitir o próximo grande ataque aos direitos trabalhistas.
No início dos anos 2000, trabalhadores do hemisfério sul se dedicavam principalmente à “mineração virtual”, onde ganhavam dinheiro em jogos multiplayer online, e depois o vendiam para jogadores frequentemente localizados em mercados ocidentais. Ball usou esse exemplo do que pode ser feito com os trabalhadores no metaverso; mas, como Merchant disse numa entrevista recente ao podcast Tech Won’t Save Us [A Tecnologia Não Nos Salvará em tradução livre, nessa visão], “disparidades existentes serão consagradas e transportadas para o mundo virtual”. A visão das gigantes para o trabalho virtual pode parecer promissora, mas, na verdade, dificultará para os trabalhadores lutarem por seus direitos, serem respeitados e terem qualquer benefício perante seus empregadores.
O metaverso precisa ser parado
O metaverso é uma visão expansiva que pode permitir que tecnologias digitais colonizem muitos mais aspectos de nossas vidas. Como vimos durante a pandemia, receitas e lucros das empresas de tecnologia disparam quando somos forçados a passar mais tempo usando serviços digitais em vez de estarmos no mundo físico. Mas, enquanto o metaverso não alcança as escalas contidas nas visões de Ball e Zuckerberg — se é que alguma vez alcançará —, ele poderá ser uma realidade para jogadores e, certamente, para trabalhadores.
Empresas de videogame tiveram sucesso em alterar a forma como jogos são feitos e em monetizar as estratégias embutidas neles por anos para maximizar lucros, enquanto empresas podem facilmente desenvolver serviços obrigatórios e específicos para o uso do espaço de trabalho, como fizeram com o Slack e o Zoom, lhes dando um ponto de apoio para expandir o mercado consumidor. Mas isso não significa que não existem caminhos de impedir tudo isso.
Em 2017, a EA foi forçada a retirar as microtransações e os caixas para saque de Star Wars Battlefront II diante da insatisfação dos jogadores por conta dos recursos de monetização que foram concebidos no modo “pay-to-win” [pague-para-vencer em tradução livre], incentivando as pessoas a gastarem mais dinheiro real. Após a controvérsia, houve também respostas regulatórias em vários países, e o editor contribuinte da Gamesindustry.biz, Rob Fahey, acredita que os jogos play-to-earn podem enfrentar um escrutínio semelhante. Além disso, há um crescente movimento de trabalhadores no meio tecnológico que estão usando seu poder coletivo para pressionar empregadores quando eles tomam ações que cruzam as linhas éticas ou colocam seus colegas em risco.
O Vale do Silício tende a acreditar que pode fazer o que quiser. Suas maiores empresas ignoraram regulamentações de menor porte, além de terem moldado a forma como nos comunicamos em prol de aumentar seus lucros, a despeito dos danos sociais que causam. Como a pressão pelo metaverso é uma realidade crescente, precisamos estar prontos para nos opor a isso. Mas nós também podemos começar a ir além da visão da indústria tecnológica, que só vê soluções que servem para seus próprios interesses comerciais, e ao invés disso, pensar como a tecnologia pode ser desenvolvida para as necessidades sociais.
Paris Marx é escritor socialista e urbanista. Edita o Radical Urbanist e já escreveu para a NBC News, CBC News e Toronto Star.