A teoria econômica ainda não tem como finalidade remediar o problema das desigualdades sociais e propor fórmulas de distribuição da riqueza que tornem as sociedades mais justas. Mas apesar de ter jogado “para debaixo do tapete, por muito tempo, questões distributivas”, pequenas mudanças começam a surgir no escopo desta grande área, diz o economista Flavio Comim à IHU On-Line. “A teoria econômica tem muita dificuldade em entrar na investigação de motivações morais que estejam por trás de escolhas distributivas sociais. O trabalho de Amartya Sen ou de Alberto Alesina são exceções. É interessante que concepções puramente liberais ou estatais da economia não resolvem esses dilemas cuja origem é ética e de como as pessoas realizam suas escolhas sociais considerando apenas seus interesses pessoais e imediatos ou interesses mais amplos como aqueles ligados ao bem comum”, pontua.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Comim reflete sobre três crises que perpassam a sociedade atual, a econômica, a tecnológica e a pandêmica, e assegura que por trás de todas elas se esconde “uma crise de amor”. “É uma crise de não se importar com outro, de não dar valor às pessoas que sofrem, de desprezo e mesmo ódio em relação aos demais”, explica. Segundo ele, compreender a crise do amor pode ser útil na busca de alternativas para enfrentarmos as desigualdades sociais. “O que quero dizer é que não podemos apenas olhar para os números da desigualdade, mas sim para como são gerados e que isso nos leva a pensar em questões de natureza ética que sinalizam uma degradação de nossos sentimentos morais”. E acrescenta: “Precisamos da fraternidade, ou melhor, eu diria, do amor social. Por muito tempo ignoramos o papel que o amor tem nas nossas decisões, inclusive as econômicas”.
Flavio Vasconcellos Comim é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Atualmente é professor titular do IQS School of Management da Universitat Ramon Llull, em Barcelona, na Espanha, e professor afiliado da Universidade de Cambridge.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A pandemia não inventou a desigualdade, mas desnudou seu rosto. Qual a face da desigualdade no mundo hoje, depois de uma primeira grande onda de epidemia global e diante do início de uma segunda onda?
Flavio Comim – Mais do que isso, eu diria que a epidemia foi um choque exógeno sobre a economia e a sociedade e como tal colocou uma pressão exacerbada sobre os mais vulneráveis. Várias sociedades, principalmente as europeias, correram para prestar auxílios emergenciais para pequenas empresas e pessoas sem recursos. Mesmo assim, não foi suficiente para impedir uma crescente fragilização dos mais necessitados. Prova disso é o aumento de pessoas indo a restaurantes públicos e centros de caridade para pedir comida em toda a Europa. No Brasil, a trancos e barrancos aprovamos um auxílio emergencial que em um primeiro momento chegou a melhorar a situação de algumas pessoas mais pobres. Mas na sequência mostrou que a situação era transitória, e o sinal para o futuro é que essa ajuda não será mantida. Não se iluda. Não é porque você não vê, que a miséria não existe.
Por outro lado, entre as 500 pessoas mais ricas do mundo, segundo o Índice de Bilionários da Bloomberg, houve um ganho combinado de mais de 800 bilhões de dólares desde o início da pandemia. A desigualdade escancarou. Mas o problema que temos pela frente não é esse. Nosso problema é que não se vislumbram no momento forças econômicas ou políticas para reverter essa desigualdade.
IHU On-Line – Se por um lado a pandemia afeta a todos e todos estão vulneráveis à contaminação pelo coronavírus, os impactos são distribuídos diferentemente. O que ilustra essa desigualdade e quais são suas consequências sociais?
Flavio Comim – Eu discordo da premissa. Não acho que todos estão igualmente vulneráveis à contaminação pelo vírus. As pessoas mais pobres não têm escolha de ficar ou não em casa. Elas têm que sair para ganhar a vida. Do menos pobre que tem que trabalhar porque o chefe o obriga, ao mais pobre, que tem que sair para catar material reciclável para garantir a comida do dia, ou pedir nas ruas, existe pouca liberdade. Aquelas pessoas que trabalham para grandes empresas ou organizações vivem outra realidade, muito menos expostas ao vírus, também porque possuem os recursos, inclusive os não materiais, para organizar a vida virtualmente, pedindo comida em casa etc. Tendo dito isso, eu concordo que os impactos são distribuídos diferentemente e que as consequências sociais disso serão mais dramáticas no futuro. Pense apenas no que a perda de um ano escolar representa para centenas de milhões de crianças no mundo.
IHU On-Line – No começo da pandemia se falava muito em uma mudança de paradigma econômico e da necessidade de se repensar uma economia globalizada. Hoje esse discurso arrefeceu. O senhor vislumbra alguma possibilidade de mudança em escala global?
Flavio Comim – A crise que vivemos na realidade é uma combinação de três crises. Vou falar do Brasil, mas o mesmo, com alguns ajustes, se aplicaria para o mundo. No Brasil, já estávamos com uma crise econômica fruto das políticas anticíclicas usadas lá no final da década passada que esgaçaram em muito a capacidade fiscal do Estado brasileiro. Isso ficou mais evidente no final do governo Dilma, mas o governo Temer e o atual conseguiram muito pouco para reverter convicentemente essa crise. A segunda crise que já estava acontecendo é a crise da automação de processos, a crise tecnológica, que está levando a uma transformação das estruturas produtivas e perfil de investimentos produtivos em todo o mundo. Essa é uma crise que está levando a aumentos significativos de produtividade em todo o mundo, mas que tem um impacto certeiro sobre os trabalhadores menos qualificados. Pense nos robots da Amazon ou da AliExpress e de como compramos cada vez mais de plataformas virtuais que usam vários tipos de inteligência artificial para sua operação. E por fim, veio a crise do coronavírus.
Não creio, portanto, que podemos tirar conclusões baseadas somente nesse último elemento da crise que vivemos, apesar de ser o mais dramático e importante nesse momento. Acredito que o movimento da indústria 4.0, da ‘internet das coisas’ ganhou força com a crise do coronavírus e várias mudanças foram aceleradas. Enquanto isso algumas sociedades e alguns Estados, como o brasileiro, ficam estanques, inertes, contemplativos, olhando algo que parece que não entendem ou não têm capacidade para atuar.
IHU On-Line – No Brasil o auxílio emergencial não salvou somente milhares de brasileiros sem nenhuma outra renda, mas também foi responsável por “salvar” uma queda ainda mais brusca da economia. Como o senhor vê políticas de transferência de renda no combate à pobreza? Quais são seus limites e possibilidades?
Flavio Comim – Vamos ser honestos. As políticas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa Família, foram inventadas para serem um incentivo para a redução da pobreza intergeracional, cobrindo os custos de oportunidade das crianças que estavam fora da escola. Mas nunca funcionou assim. Foi rapidamente assimilada como uma maneira de mudar as estatísticas de pobreza. Vi isso ao longo dos anos na minha própria pesquisa em que famílias beneficiadas pelo Bolsa Família passavam também fome pela insuficiência do recurso. O fato é que o benefício deveria ser maior e deveria vir com o reconhecimento de que é indigno uma pessoa passar fome. Comida básica não deveria ser uma mercadoria, deveria ser um direito de todos. Aí se a pessoa quer comer ‘caviar’, que faça por onde. Mas passar fome, repito, é indigno. É uma afronta à humanidade. Deveríamos ser capazes de reconhecer isso juntamente com o fato de que como sociedade falhamos a milhões de brasileiros que são inúteis ao mercado de trabalho.
Transferências de renda condicionada deveriam ser vistas como políticas compensatórias àquelas pessoas que não receberam uma educação de qualidade para que tivessem a oportunidade de buscar uma inserção produtiva decente. Não se trata de achar que as pessoas vulneráveis são coitadinhas, mas sim de reconhecer as injustiças estruturais na sociedade. A conclusão disso é que os impostos para os mais ricos precisam ser mais altos. Uma sociedade com tanta gente vivendo em condições de vulnerabilidade como a brasileira não pode ter o nível baixo de progressividade de impostos que tem.
IHU On-Line – O senhor concorda que a desigualdade global não é efeito da crise climática, econômica e sanitária, mas sim sua causa? Como entender a relação da desigualdade com essas grandes crises?
Flavio Comim – Eu compro a tese de Thomas Piketty, no seu último livro, Capital e Ideologia, de que a ideologia é responsável pela configuração dos regimes de desigualdade no mundo. O trabalho de Alberto Alesina e Edward Glaeser sobre a “economia política da redistribuição” também mostra que são as crenças que as pessoas têm sobre os beneficiários da ação estatal que influem nas suas ideologias e visões sobre o papel do Estado e seu desejo de pagar ou sonegar impostos. Há uma crise de amor que está por trás de todas essas outras crises. É uma crise de não se importar com outro, de não dar valor às pessoas que sofrem, de desprezo e mesmo ódio em relação aos demais. As raízes dessa crise estão em uma visão conservadora da sociedade que começou lá na década de 80, com Margaret Thatcher, Ronald Reagan, diminuição de impostos aos mais ricos, valorização de uma cultura individualista agressiva, como se “levados por uma mão invisível” fôssemos ser felizes em sociedades cada vez mais desiguais.
Encontramos nas ciências sociais explicações diversas para esse momento de falta de amor, tais como as dadas por Axel Honneth, Martha Nussbaum e Zygmunt Bauman, para mencionar somente alguns. O que quero dizer é que não podemos apenas olhar para os números da desigualdade, mas sim para como são gerados e que isso nos leva a pensar em questões de natureza ética que sinalizam uma degradação de nossos sentimentos morais.
IHU On-Line – Como explicar que 1% da população detém uma riqueza maior que o restante da população global? É possível enfrentar uma desigualdade desta ordem? De que maneira?
Flavio Comim – A história do século XX nos mostra que tal concentração de renda é perversa à harmonia social. O problema é que essa concentração de riqueza é também uma concentração de poder. E esse maior poder trabalha para concentrar mais renda. Então, não tem mistério. A corda vai ser puxada até arrebentar, de algum modo. Foi assim que aconteceu antes, deve ser assim no futuro. De que forma vai acontecer isso? Protestos, saques, implosão na política, alguma guerra? Não sabemos. Mas é difícil acreditar que o poder vai abrir mão do poder. Vai ter que piorar antes que vejamos qualquer melhora. Nesse ponto não sou otimista.
IHU On-Line – Qual a contribuição das teorias econômicas que tiveram origem na modernidade – seja as de corte estatal ou liberal – no contexto contemporâneo? Até que ponto elas nos ajudam a pensar saídas e a partir de que ponto se tornam travas à imaginação política?
Flavio Comim – A teoria econômica jogou para debaixo do tapete, por muito tempo, questões distributivas. Ainda não é o forte da teoria econômica, mas existem muitos avanços significativos que mostram a importância da distribuição para sociedades mais justas. A teoria econômica tem muita dificuldade em entrar na investigação de motivações morais que estejam por trás de escolhas distributivas sociais. O trabalho de Amartya Sen ou de Alberto Alesina são exceções. É interessante que concepções puramente liberais ou estatais da economia não resolvem esses dilemas cuja origem é ética e de como as pessoas realizam suas escolhas sociais considerando apenas seus interesses pessoais e imediatos ou interesses mais amplos como aqueles ligados ao bem comum.
IHU On-Line – Somos testemunhas de uma grande transição, absolutamente complexa, em que a passagem do Holoceno para o Antropoceno é uma síntese ampla, mas ilustrativa. Neste sentido, qual a importância de a economia abandonar os paradigmas modernos e construir novas bases que tenham como eixo uma humanidade inclusiva?
Flavio Comim – A economia aos poucos caminha na direção de ser uma disciplina mais aberta à diversidade e pluralidade de sentimentos morais que caracterizam a humanidade. Veja tudo o que tem sido feito em economia experimental. Existem algumas dificuldades metodológicas. A sociologia, por exemplo, abre mão do indivíduo para falar de estruturas, que consegue identificar de modo agregado e isolá-las. A economia, centrada no indivíduo, se considerar o outro gera um problema de isolar essas interdependências. O caminho para uma economia mais humana passa pela resolução de questões de interdependência que não são triviais. No entanto, pensar o coletivo é antes de tudo um posicionamento ético e que muitas vezes não vem no pacote que a economia oferece centrada em doutrinas utilitaristas de aplicabilidade dúbia.
IHU On-Line – O papa Francisco publicou recentemente a encíclica Fratelli Tutti, em que fala da necessidade de construir um mundo orientado não pela competitividade, mas pela fraternidade. Como essa perspectiva pode inspirar uma economia outra que não seja fundada na exploração da natureza e das pessoas?
Flavio Comim – O Papa acertou na mosca. Esse é o nosso maior problema. A competitividade é importante, mas não pode ser o único princípio legítimo de organização social. Precisamos da fraternidade, ou melhor, eu diria, do amor social. Por muito tempo ignoramos o papel que o amor tem nas nossas decisões, inclusive as econômicas. É hora de pensarmos o que nos move e como isso afeta nossas decisões coletivas. A economia precisa reconhecer a importância das emoções políticas, como diria Nussbaum, na formação de nossas opções políticas. Precisamos pensar nos outros. Essa ‘sociedade de indivíduos’ é uma ficção que caducou. O século XXI precisa retomar a pauta do significado de ser humano.
Fonte: IHU On-Line
Texto: Ricardo Machado
Data original da publicação: 30/11/2020