Na tragédia grega dos mitos, não há pior castigo divino do que o trabalho forçado: Sísifo, o mais astuto dos mortais, é condenado a carregar uma pedra ao topo de uma montanha, que cairá inevitavelmente para que seja novamente soerguida. Atlas, titã condenado a sustentar os céus para sempre. E como não lembrar os doze trabalhos sacrificantes de Hércules…
Lucas Correia de Lima
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 17/04/2020
Na tragédia brasileira não é diferente o trabalho enquanto imposição vertical tal qual um castigo, como surpreendeu a recente “Ação Estratégica ‘O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde’”, criada pelo Governo Federal, por meio da portaria n° 639, do Ministério da Saúde, publicada na quinta-feira (02/04) no Diário Oficial da União. A ação, que a princípio visa capacitar profissionais de saúde, objetiva ao final criar um “cadastro geral de profissionais da área de saúde, de caráter instrumental e consultivo, visando auxiliar os gestores federais, estaduais, distritais e municipais do Sistema Único de Saúde (SUS) nas ações de enfrentamento à COVID-19”.
Extraindo os floreios: preparar o cidadão profissional de saúde, após a citada capacitação, para prestar seu serviço profissional a serviço do Estado, no contexto atual pandêmico da COVID-19.
Como antessala desse entendimento, para compreender o trabalho forçado é necessário fazer digressões teóricas que afastem o comum turvamento que se faz com outro conceito famigerado: o de trabalho escravo.
Pouco se debate sobre a problemática violadora de trabalhos forçados, sendo comum, embora totalmente equivocado, sua assimilação enquanto trabalho escravo. O ordenamento jurídico brasileiro é fato na discussão dogmática acerca do trabalho a condição análoga de escravo, cuja existência é tipo penal disposto no art. 142 do Código Penal. A confusão, evidentemente, decorre do histórico de produção econômica da sociedade brasileira, nascido sob as agruras do regime escravocrata de afrodescendentes pelo sistema de plantation. [1]
A Convenção da OIT sobre Trabalho Forçado (nº 29), de 1930, define trabalho forçado como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”. Não há nesse conceito qualquer atrelamento à dignidade do trabalho ou degradação do sujeito, como no caso do trabalho escravo indicado na legislação penal. [2] A violação consiste no labor operado fora do âmbito da autodeterminação do indivíduo e sob a ameaça de sanção, seja ela qual for – degradante à dignidade humana no sentido de barbárie ou não. Assim, enquanto que para o trabalho escravo o objeto da tutela material já não é a liberdade, mas a dignidade da pessoa na posição de trabalhador, no trabalho forçado, é a espontaneidade de prestar ou não o trabalho que define sua natureza forçada.
Conforme o Relatório Global sobre Trabalho Forçado de 2005 da OIT, o trabalho forçado não é ferramenta exclusiva do capital empresarial privado, mas também se apresenta como prática do Estado aos seus cidadãos. Ressalvadas reminiscências da Ásia Central, na indústria algodoeira em países como Tajiquistão e no Uzbequistão, a prática estatal sistemática de compelir cidadãos livres a trabalhar, tanto para fins econômicos como políticos, é repudiável. [3] Na contramão das recomendações das agências internacionais, o trabalho forçado imposto pela Portaria Ministerial é retrógrado mesmo para um mundo de sociedades culturalmente heterogêneas e economicamente assimétricas.
A base alegada pela Portaria é o art. 7º da Lei n.º 13.979/20, que permite ao Ministro de Estado, por ato administrativo unilateral, regulamentar as disposições previstas no diploma legal supracitado. Perlustrando a lei, consta no seu inciso VII, do art. 3º, a possibilidade de as autoridades adotarem, entre outras medidas, a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa. Aqui reside o ponto normativo mais próximo do embasamento jurídico da finalidade da Portaria Ministerial. Mas aqui também começa o nó górdio da forca de sua validade.
Poder-se-ia suscitar a hipótese de o ato administrativo estatal em questão estar, sob o poder de império inerente da Administração Pública, concitando cidadãos a lhe prestarem serviço sob a rubrica de “enfrentamento”. Mas a que se assemelharia tal serviço? Não há conceituação definida pela lei emergencial ou pela Portaria. Podemos imaginar o conceito de serviço para o Código Civil, o de Defesa do Consumidor, o de tributação, entre muitos outros, mas nenhum colmataria a lacuna de justificar como um cidadão, apenas por sua formação acadêmica, ainda que sequer exerça sua profissão, possa ser compelido a eufemisticamente a prestar serviço (trabalhar, isso sim) forçadamente para o Estado.
A requisição administrativa da Lei n.º 13.979/20 não sobrevive a um escrutínio acadêmico mais intenso sobre a aplicação do instituto, afinal, como requisitar serviço de quem não o presta? Ter um diploma é o suficiente para presumir que presto serviço da profissão que não exerço? O dilema alcança nível constitucional ao colidir com a liberdade de associação profissional (art. 8º, caput) e o livre exercício de qualquer atividade econômica (art. 170, parágrafo único), os quais protegem desta obrigação de exercer a profissão.
Sigamos nas contradições: se no instituto da requisição “somente fará jus à indenização se a atividade estatal lhe tiver provocado danos” [4], o trabalho será a priori gratuito? E quantos danos imateriais não seriam possíveis mensurar neste contexto: 1) dano à liberdade de locomoção pelo sujeito “preso” ao trabalho; 2) perda do tempo livre que poderia estar sendo usado tanto para descanso quanto à busca de emprego para sanar a carência financeira; 3) dano à tranquilidade de estar num contexto de perigo iminente à saúde; 4) dano á saúde, posta a iminente perigo pelo Estado; e, tudo isso, somado ao próprio dano decorrente da geração da força de trabalho. Se a indenização é assim tão evidente por tantos ângulos, não pode ser ulteriormente acordada. Se for previamente acordada, por sua vez, não é o instituto da requisição, mas nítida prestação de trabalho, portanto, fora da previsão da lei emergencial do COVID-19. Somando-se o fato de prestado sem voluntariedade, é obviamente forçado e ilegal.
Não se discute a validade de medidas excepcionais em situações calamitosas à ordem pública, como no contexto pandêmico, porém, mesmo nessas situações – notadamente quando se configuram mecanismos além do leque previsto pelo Sistema Constitucional das Crises [5] (CUNHA JÚNIOR, 2019) – as restrições aos direitos fundamentais devem ser realizadas com cautela e diminuto impacto ao ordinário do sistema normativo. Não se admite, ainda que em regime de exceções, que leis episódicas se arvorem a estabelecer exaustivas limitações. Os limites também têm seus limites [6], mesmo em momentos de crise, e, principalmente, nesses momentos, a fim de que a crise não se transforme como vem sendo posta, em um instrumento de dominação, servindo “para legitimar decisões políticas e econômicas que privam os cidadãos de toda possibilidade de decisão” [7]. Afinal, a nenhum brasileiro deve ser imposto o fardo de herói de uma tragédia grega.
Notas:
[1] WEDDERBURN, C. M. O racismo através da história: da antiguidade à modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 2007. [2] GRECO, Rogério. Código Penal: Comentado. 7. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2013. [3] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Uma aliança global contra o trabalho forçado. Relatório Global do seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho – 2005. Conferência Internacional do Trabalho, 93ª Reunião 2005. Relatório I (B). Genebra, Secretaria Internacional do Trabalho, 2005. [4] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPodvim, 2019. [5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 14. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 623. [6] SARMENTO, Daniel. Interesses Públicos vs. Interesses Privados. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses Públicos, Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. [7] SCHÜMER, Dirk. A crise infindável como instrumento de poder: uma conversa com Giorgio Agamben. Blog da Boitempo. 17 jul. 2013. Disponível em: < https://www.ihu.unisinos.br/noticias/533355-a-crise-infindavel-como-instrumento-de-poder-uma-conversa-com-giorgio-agamben />. Acesso em: 12 abr. 2020.Lucas Correia de Lima é advogado Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Especialista em Direito Processual Civil e Direito Constitucional. Mestre e doutorando pela Universidade Federal da Bahia. Servidor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.